COVID-19, DESIGUALDADE SOCIAL E LETRAMENTO: algumas pontuações para início de conversa

COVID-19, DESIGUALDADE SOCIAL E LETRAMENTO: algumas pontuações para início de conversa

Profa. Dra. Elaine Assolini

 

Em decorrência das medidas de isolamento social, destinadas a conter o avanço da COVID-19, no Brasil e no mundo, mais de 1,2 bilhão de alunos do ensino infantil ao ensino superior tiveram suas rotinas escolares alteradas, de acordo com levantamento da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).

O novo contexto social fez com que o Ministério de Educação tomasse medidas e providências urgentes, autorizando a substituição de aulas presenciais por virtuais, enquanto durar a pandemia provocada pelo vírus SARS-coV-2. Assim, cerca de 52 milhões de estudantes brasileiros, de todos os níveis, foram afetados por essas medidas e providências, e, da noite para o dia, passaram a receber o ensino remoto. Os professores, por sua vez, às pressas, adaptaram, reformularam atividades, exercícios, tarefas, aprenderam a gravar, editar e publicar vídeos, a usar as redes sociais, como Instagram, Facebook, dentre outras, como recursos para suas aulas, a fim de assegurar conteúdos mínimos para os estudantes, buscando manter e ampliar as relações e laços afetivos que estavam sendo criados desde o início das aulas presencias.

Nosso objetivo, neste artigo de opinião, é pensarmos sobre os estudantes, em particular, os que podem ser considerados socialmente vulneráveis, posto que vivem em situação de muita pobreza - em muitos casos, de miséria -, e, portanto, não vivem em casas próprias; os pais, em muitos casos, estão desempregados, não têm plano de saúde, e, muitas vezes, não têm o que comer. Na realidade vivida por esses estudantes, é muito comum faltar a alimentação básica, sendo que muitos se alimentavam apenas da merenda escolar, nos dias de aula regular.

Para esses estudantes, vulneráveis e excluídos socialmente, acompanhar as aulas on-line é especialmente difícil, quase impossível, " um luxo", como afirmou uma das mães das famílias que entrevistei, por ocasião da coleta de dados de uma pesquisa que tem o propósito de investigar como vem se dando o ensino remoto dentro das casas brasileiras. A grande maioria não tem computador em casa, tampouco acesso a um serviço de banda larga, que lhes permitiria conexão ininterrupta. De acordo com dados do recente estudo realizado pelo Comitê Gestor da Internet, 85% das pessoas das classes mais pobres utilizam a internet apenas pelo celular, com pacotes de dados bastante limitados.

Segundo o Anuário 2020, publicado pela Todos pela Educação:

"A existência de recursos tecnológicos nos domicílios rapidamente se configurou como um fator de exclusão. Os dados mais recentes sobre o acesso a equipamentos de Tecnologia da Informação e da Comunicação (TIC) mostram que 99% dos domicílios da classe A têm acesso à internet, item disponível para apenas 40% dos domicílios das classes D e E"

Diante da desigualdade brutal no acesso a conexões rápidas e a computadores com recursos de câmera e som, dentre outros, é imprescindível que as políticas públicas cuidem de proporcionar condições adequadas e favoráveis para esses estudantes, que, por diferentes causas, são deixados à margem do acesso às tecnologias digitais de informação e comunicação. E, quando trazemos para discussão o papel fundamental das políticas públicas, não nos referimos à singela ação de entregar aos pais e aos alunos materiais didático-pedagógicos fotocopiados. Isso é o mínimo que se pode fazer por aqueles que não têm computador, internet, celular, às vezes nem condições dignas de sobrevivência, como alimentação, saúde, transporte. Referimo-nos, também, ao oferecimento de internet gratuita para todos os alunos, bem como computadores, notebooks ou tablets, enfim, um aparelho que fosse de uso exclusivo de cada estudante, tal como acontece em inúmeros países de primeiro mundo.

Há que se considerar, ainda, as questões subjetivas, socioemocionais, físicas e cognitivas, que também foram e continuam sendo impactadas pelo prolongado tempo de isolamento social, pela perda de entes queridos e outras consequências da doença.

Lidar com as desigualdades sociais requer políticas públicas que enxerguem as demandas e gargalos escolares, bem como que os alunos sejam considerados em suas histórias, particularidades e formas de aprendizado. Exige, dessa forma, que a construção de projetos e programas educacionais esteja à altura dessas demandas e gargalos.

Um programa educacional que contribuiria para o enfrentamento da desigualdade social envolve a alfabetização e o letramento, visto que o nível de letramento da criança é impactado pelo nível de letramento daqueles que são por ela responsáveis, e pelas exigências da sociedade letrada na qual se insere.

As interações e conversas realizadas dentro de casa ou em outras agências sociais, como a igreja, clubes, grupos de amigos do bairro, as leituras realizadas pelos adultos, por outras crianças ou por aqueles que exercem alguma função junto à criança, interferem no seu grau de letramento.

Ressalto que o letramento é mais amplo que a alfabetização, podendo acontecer inclusive sem a presença desta, segundo o que nos ensina a Teoria Sócio-Histórica do Letramento - abordagem discursiva, tal como pensada por TFOUNI (1995). Sendo assim, mesmo que a criança não seja alfabetizada, ela poderá ser letrada, visto que vive em uma sociedade letrada e vivencia e experimenta práticas discursivas letradas.

Ocorre, entretanto, que o nível de letramento não é igual para todas as crianças, visto que em nossa sociedade o conhecimento não é distribuído de forma igualitária, equânime, ainda mais em uma sociedade desigual como a nossa. As vivências e experiências com as práticas discursivas letradas são, portanto, muito diferentes. Se, para aqueles que possuem uma condição socioeconômica razoável ou acima do razoável, isto é, acima de seis salários mínimos, é possível conhecer as funções sociais da escrita, ler um livro ou gibi desde a tenra idade, por exemplo, para outros, o acesso a bens e patrimônios culturais, à leitura, à interpretação, ao entendimento do funcionamento ideológico da linguagem, às possibilidades de aquisição de conhecimentos em outras agências sociais que não a escola são limitados, e, em muitos casos, inacessíveis, improváveis para aqueles que estão excluídos socialmente e vivenciam a desigualdade social.

O exercício da cidadania exige que o sujeito seja alfabetizado e letrado. Defendo que cabe à escola oferecer condições favoráveis de produção para que os alunos sejam alfabetizados, aprendam a ler, a interpretar e a escrever, colocando-se como autores de seu próprio dizer. Quando ressalto que a alfabetização é tarefa da escola, não me refiro à compreensão segundo a qual, ser alfabetizado é simplesmente conhecer e adquirir o código da escrita. Sim, a aquisição do código escrito é fundamental, mas não basta.

Alfabetizar de modo a permitir que o sujeito leia e interprete, considerando que a linguagem não é neutra, nem os sentidos evidentes, bem como o funcionamento ideológico das práticas discursivas letradas, implica considerar o letramento, que a todos afeta, indistintamente. Dessa forma, todos possuímos saberes sobre a escrita. Certamente, não estamos todos no mesmo nível, no mesmo grau, mas, de forma alguma, um sujeito pode ser considerado iletrado, quando vive em uma sociedade letrada, pois algum saber sobre a escrita ele possui. E é por isso que defendo que a escola deveria partir do letramento para a alfabetização. E não ao contrário.

Ter em mente que as práticas sociais letradas são conhecidas por todos os sujeitos, incluindo os não alfabetizados, permite-nos reconhecer e valorizar os conhecimentos escolares e não escolares do educando, o que significa compreendê-lo como sujeito que tem o que dizer, expressando sua subjetividade. Além disso, o trabalho pedagógico com o letramento permite total valorização do discurso da oralidade do educando, o que significa que mesmo os excluídos socialmente poderão encontrar na escola, e na sala de aula, espaço para (se)dizer, para (se) significar.

Como mulher, cidadã e pesquisadora, gostaria de encerrar esta reflexão destacando o papel da escola na (trans)formação do sujeito, que, nessa agência, pode aprender a ser cidadão alfabetizado e letrado, a escutar a sua própria voz e a de seus semelhantes, a conhecer a sua história e de sua nação - saberes fundamentais, a meu ver, para a construção e o exercício da democracia.

 

Referências:

08-07-2020.ANUÁRIO BRASILEIRO de EDUCAÇÃO BÁSICA. Todos Pela Educação.Editora Moderna, 2020.Disponível em: todospelaeducacao.org.br/_uploads/_posts/456.pdf?1969753478/=&utm_source=content&utm_medium=site-todos

ASSOLINI, F.E.P. Como fica a aprendizagem dos alunos por meio do ensino remoto: contribuições para os fazeres dos professores? Pesquisa em andamento. FFCLRP-USP-DEIC-GEPALLE, 2020.

ANUÁRIO BRASILEIRO de EDUCAÇÃO BÁSICA. Todos Pela Educação.Editora Moderna, 2020.

ASSOLINI, F. E. P. A dor de aprender. Revide, 2019. Disponível em: https://www.revide.com.br/blog/elaine-assolini/dor-de-aprender/ Acesso em: 17 abr 2020.

ASSOLINI, F. E. P.; LASTÓRIA, A. C. A aprendizagem, a formação e a experiência como elementos centrais dos processos educativos de professores. In: Formação continuada de professores: processos formativos e investigativos. Ribeirão Preto, SP: Compacta Editora, 2010.

ASSOLINI, F. E. P.; RIVAS, N. P.; PADILHA, L. M. A. Saberes Constituintes da Docência: repercussões e influências na identidade do sujeito-professor. In: ASSOLINI, F. E. P.; DORNELAS, C. C.; PIMENTA, L. A. (ORGs.). (Entre)laçamentos discursivos: docência e práticas pedagógicas. Coleção Educação, discurso e ensino. 2. ed. Curitiba: CRV, 2018.

TFOUNI, L. V.Alfabetização e letramento. Coleção Questões do nosso tempo. Cortez, 1995.

UNESCO-Site oficial: https://en.unesco.org/ https://en.unesco.org/covid19;

https://en.unesco.org/news/covid-19-threatens-set-aid-education-back-six-years-warns-unesco

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