DIALOGAR SOBRE GÊNEROS EM SALA DE AULA NÃO TRANSFORMARÁ SEU FILHO EM PABLO VITTAR

DIALOGAR SOBRE GÊNEROS EM SALA DE AULA NÃO TRANSFORMARÁ SEU FILHO EM PABLO VITTAR

Ao exercer a minha leitura diária sobre as principais notícias no Brasil tive acesso a um print de Instagram denunciando mais um caso de abuso sexual neste país, nesta imagem havia uma menina que aos três anos foi estuprada pelo pai sobre o pretexto, segundo ele, que “tinha que aguentar porque era mocinha”.

Vejamos, só de ler um pequeno parágrafo é notório que há claramente um problema sério de entendimento de gênero e sexualidade no contexto atual brasileiro. Dentre as treze sentenças diárias de feminicídio no país e as equivalentes vinte denúncias assumidas de assédio a crianças de até nove anos de idade, o caso da garotinha de três anos representa a fusão de dois grandes fatores de preocupação: a masculinidade tóxica e a submissão do feminino.

Em outras palavras, as nossas crianças estão, atualmente, inseridas em uma sociedade constituída por comportamentos naturalizados de agressividade entre gêneros, nos levando a refletir que porventura trabalhar concepções de gênero e sexualidade em sala de aula seja, necessariamente, uma questão de seguridade social. Afinal, pautas humanitárias, como combater o estupro, a discriminação, a tortura, o machismo e o feminicídio são um dever de todos, não é mesmo?

Não, não foi bem assim a reação de algumas seguidoras, sim, no feminino, ao lerem minha colocação em redes sociais. Neste caso, convidarei você, leitor, a problematizar e refletir a respeito das seguintes respostas que recebi naquele dia:

“A escola vai também se responsabilizar por isso?”

“A escola sem partido não quer que a escola se envolvam na educação que diz respeito a outras instituições...”

“As mães precisam estar mais atentas em relação aos homens que tem dentro de casa...”

Vamos começar esclarecendo que dialogar sobre concepções de gênero e sexualidade é algo ainda, ou infelizmente, bastante desafiador que evoca diversos lugares de fala e efeitos de sentidos subversos à causa.

Para isso precisamos viajar no tempo e estudar muita história social e antropologia para entendermos que o ser humano é necessariamente um sujeito sócio historicamente constituído e suas ações estão diretamente ligadas a um fluxo discursivo e ideológico que, à sua época, cerceia e marca as principais funções sociais que esse pequeno ser humano exercerá enquanto um sujeito atuante e contribuidor para com o modo de produção em que incide.

Vamos simplificar, pense que a percepção do que é ser um “Homem”, ou uma “Mulher”, depende de qual época e sociedade em que essa pessoa nasceu, por exemplo, as concepções de “Homem” e “Mulher”, em Esparta e Atenas, eras coexistentes na Grécia 700 a.C. a 500 a.C., foram completamente diferentes, conflitantes e antagônicas ao ponto de implicarem diretamente em como, ou se (!), iriam viver plenamente em sociedade. Pensemos, o “Homem” e a “Mulher” em Roma, no período Feudal, na Idade Média, no Imperialismo, ou no atual Neoliberalismo foram e são necessariamente atravessados pela ideologia de gênero imposta, posição-sujeito, que cada um vivenciara, ou vivencia em sua época. Pois bem, aqui surge o famigerado termo “ideologia” para confrontá-lo sobre o conceito de sujeito social e dizer-lhe que é perfeitamente normal a sua existência, que o sujeito não escapa do atravessamento ideológico e que o fim de uma era é impor, obviamente, o início de uma outra.

Como bem explica Michel Pêcheux (PÊCHEUX, 1995, p. 160):

É a ideologia que fornece as evidências pelas quais “todo mundo sabe” o que é um soldado, um operário, um patrão, uma fábrica, uma greve, etc., evidências que fazem com que uma palavra ou enunciado “queiram dizer o que realmente dizem” [...]

Perceba, ao colocar que - “A escola sem partido não quer que a escola se envolvam na educação que diz respeito a outras instituições...”- a autora, aparentemente, apoia em sua escrita um ideário de uma escola supostamente “sem ideologia” que se isenta de sua responsabilidade enquanto uma instituição de constituição humana.

Ora, meu caro leitor, mas seria possível inaugurar uma educação em um campo não ideológico?

Eni Orlandi (ORLANDI, 2012, p. 15) pontua muito bem, para o entendimento desta questão, ao afirmar que “não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia”, nos levando, portanto, a refletir e entender a subversão político-ideológica que constitui intimamente o termo “Escola sem Partido”, afinal implicar uma lei em sociedade é necessariamente assumir um partido, uma ideologia, não é mesmo?

Para podermos amarrar nossa linha de raciocínio, voltemos novamente no tempo, com o Rei Luís XVI em pleno Bucolismo francês em 1774, casado com Maria Antonieta e dono de uma riqueza inestimável, usava naturalmente maquiagem, perucas, roupas bufantes e saltos para poder afirmar a sua posição enquanto “Homem” digno de sua supremacia social, arquétipo que, convenhamos, não seria considerado tão “masculino” assim nos tempos atuais em terras tupiniquins. Dessa forma, meu caro leitor, Simone de Beauvoir (BEAUVOIR, 1980) foi muito certeira ao dizer que “não se nasce Mulher, torna-se Mulher”.

Pincelemos melhor a nossa discussão com Judith Butler ao dizer que o sujeito não é imutável, ele é um sujeito em constante processo de constituição e identificação, ou seja, é por intermédio de suas experiências pessoais e sociais que a identidade de gênero se inaugura. Afinal, todo corpo está inscrito na cultura, independentemente de suas genitálias, ser um homem de peruca e maquiagem em 1774 como Luís XVI, ou um homem de peruca e maquiagem em 2019 como Pablo Vittar, é a bela comprovação de que a identidade do sujeito é inevitavelmente inscrita por e pela história social, e o que difere a posição de respeito dos dois exemplos é como o coletivo evidencia moralmente o lugar de cada um em sociedade.  

Ou seja, o que estamos defendendo não é uma questão de transformação, ou imposição de comportamentos individuais, afinal já está claro que a diversidade é constitutiva do sujeito social, o objetivo aqui é o de educar através de um campo ideológico humanístico que trabalhe o entendimento da subjetividade e do respeito pelas pluralidades que coexistem no coletivo.

Mas, “a escola vai também se responsabilizar por isso?”

Sim! A educação e a cultura social são constitutivas da cidadania.

Foi somente na década de 1990 que ocorreu a inserção da sexualidade na Educação, ganhando formas de legitimidade com a firmação dos compromissos assumidos pelo governo brasileiro após a promulgação da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA em 1996.

É necessário ensinar ao cidadão sobre os seus fundamentais direitos constitucionais e, principalmente, que as estruturas sociais foram e são móveis, flutuantes e intercambiárias. A concepção de “Mulher” e “Homem” não deveria ser enrijecida, verticalmente fechada em uma perspectiva geométrica de encaixe, na verdade a pluralidade e a subjetividade humana não poderiam nunca constituir somente uma única verdade, isto é, o que cabe a “Mulher” e ao “Homem” atualmente enquanto determinação social e posição-sujeito pode sim ser ressignificado via emancipação social. Quero dizer, a famosa ideia veiculada pela Revista Veja, por exemplo, sobre ser uma mulher “bela, recatada e do lar” é uma dentre várias outras perspectivas que circundam a posição-sujeito do feminino em sociedade e o ensinar o que é ser “Mulher”, o que é exercer sua cidadania enquanto “Mulher”, é algo profundo e complexo que requer erudição, profissionalismo e formação continuada.

Reflita, prezado leitor, é esse tipo de visão do feminino que alimenta os padrões de beleza, a falta de voz e de autonomia da “Mulher” contemporaneamente fadada a culpabilização daquilo que a interpela, quero dizer, não é culpa da esposa o estupro de sua filha pelo marido, não é culpa da criança ter sido estuprada por ser “mocinha”, não é viável dizer que “As mães precisam estar mais atentas em relação aos homens que tem dentro de casa...”.

Portanto, não será a instituição familiar que estudará sociologia, antropologia, história e licenciatura para garantir a fundamental noção de emancipação do sujeito; que o mesmo se veja enquanto um ser transformador e influenciador na sociedade, esse papel é, ou deveria ser, da instituição educacional! É o profissional da educação que propiciará, através da erudição e de um projeto político pedagógico adequado a seu entorno, a mediação dos processos vividos por seus alunos e alunas para que estes possam se apropriar de outras informações e reflexões capazes de ampliar o conceito de sujeito, de posições sociais, de seguridade, de respeito e de sociabilidade.

Assim sendo, espero, meu caro leitor, que o tenha feito entender que é por intermédio de uma educação crítica e emancipatória que ressignificaremos comportamentos agressivos, abusivos e depreciativos entre gêneros, para que doravante evitemos situações como a de uma criança de três anos sendo obrigada a aguentar um estupro por ser simplesmente uma “mocinha”.

Em uma “nova era” bicromática, estudar questões de gênero é colorir a mente.

Profa. Angélica Müller

Profa. Dra. Elaine Assolini

Referências:

BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo, v.I, II. Tradução Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

ORLANDI, E. P. Discurso e leitura. 9a. ed. São Paulo: Cortez, 2012.

PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução de Eni Orlandi etal. Campinas: Editora da Unicamp, 1995.

www.youtube.com/temperodrag.

Ilustração: Ana Luiza Wan Der Mass.

 

 

 

 

 

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