
Entrevista Regina Rennó – Agosto de 2015
Assolini & Lastória - Você poderia nos contar sobre a sua história profissional? Poderia falar também sobre o seu interesse, desejo pela arte e vocação artística?
Regina Rennó - Eu, desde pequena, fui criada numa cidade do interior de Minas Gerais, uma cidade pequena, praticamente a minha rua. Era a rua que vivi até os seis anos, seis anos e meio, era de terra, do outro lado tinha uma chácara e nós brincávamos muito, brincávamos na rua, brincávamos de todas essas brincadeiras, de “Mãe da rua”, por exemplo, essas coisas que as crianças, antigamente, brincavam e que as de hoje não brincam. E eu já gostava de desenhar na terra, gostava de traçar coisas na terra, de desenhar na terra, gostava muito de desenhar, e o meu interesse pelo desenho era muito grande, era maior do que de todas as crianças que conviviam comigo naquela época, porque tudo que passava era cenário imenso de vegetação, de animais e pássaros e pipas que as crianças soltavam no campinho. Isso tudo me encantava muito e eu desenhava tudo isso, desenhava, desenhava, desenhava. E lia, porque não tínhamos muitos livros, mas tínhamos, líamos. Minha mãe era professora. O viajante passava vendendo livro e depois ela conseguia, mais adiante, comprar na escola onde trabalhava, porque eles iam vender lá. E essa minha vivência foi muito rica. Eu não sabia que era rica, depois na minha vida fui perceber como foi bom ter tido essa vida lá. Nesse lugar, e com tantas possibilidades, e com um céu imenso, aberto para ser visto. E a noite me encantava muito, as estrelas eram fantásticas, e eu era uma criança que olhava muito para as coisas. Olhava muito, e eu acho que o que mais me encantava era enxergar as coisas, ver as coisas, e tudo me encantava porque a noite era fascinante e aterrorizante. Embaixo era muito escuro, porque não havia uma iluminação, era muito grande, mas o céu acendia. Era uma coisa extraordinária, mas, ao mesmo tempo, em que eu tinha medo, me fascinava. Eu fui uma criança medrosa, mas eu acho que era porque eu olhava muito para as coisas, sei lá se é por isso. E tinha medo de tudo: da imensidão do mundo, do que havia para lá da montanha, eu ficava imaginando o que tinha do outro lado. Eu tinha um interesse enorme, uma curiosidade de saber que mundo é aquele, o que existia atrás da montanha.
Eu sei que a minha infância foi muito rica. Eu desenhava, minha mãe disponibilizava papel, quadro-negro, ela dava aula particular. Enchia de desenhos. E ela foi uma das primeiras pessoas que percebeu o tanto que eu desenhava. Uma vez a gente foi ao clube, pela primeira vez. Eu era bem pequena, e meu pai ficou sócio do clube, e quando eu cheguei a casa eu desenhei o clube inteiro, quer dizer, eu tinha uma idade mínima que não dava para desenhar tudo aquilo e eu desenhei. Aí minha mãe achava que eu era muito inteligente por causa disso, mas... mas creio que ela ficava era espantada, porque ela achava que eu não era tão inteligente na vida, porque eu não ia muito bem nas matérias, principalmente nas exatas, desde o primeiro momento, e isso foi até bem complicado na minha vida, porque o meu interesse não era esse, não é? O que a escola exigia, o que a escola queria, não era o que eu queria. E já comecei a ganhar tinta, bem pequena, ganhar lápis de cor. Eu me lembro da minha primeira caixa de lápis de cor, porque, como eu passava algum tempo do meu dia desenhando, então era natural que eu ganhasse de aniversário coisas para fazer o que eu gostava, que era desenhar. E eu me lembro do primeiro estojinho de guache que meu pai me deu, primeira caixa de lápis de cor, a primeira aquarela que veio da França, eu tinha uma tia que morava na França. Essa aquarela eu tinha tanto medo de usar, para que ela não acabasse, mas amava aquelas cores, o estojo era um estojinho amarelo, a aquarela de pastilhas, e, bom, isso era, isso foi minha primeira infância.
Assolini & Lastória - As experiências escolares por você vivenciadas ecoam em suas produções artísticas de alguma forma? E essas experiências de vida estão presentes em seus feitos artísticos?
Regina Rennó - Eu não tenho uma lembrança muito agradável da escola na minha infância, não. Não tenho porque na escola eu não me adaptava muito, e o que eu fazia, o que eu gostava não era importante para a escola, nunca foi, até eu entrar na escola de Artes Plásticas, eu não conseguia ter um desempenho em matemática, ciências e qualquer coisa desse tipo, porque o meu interesse não era esse. Acho até que teria, mas não tive muito jeito não, eu fui mesmo uma estudante que ficava para a segunda época, todo mundo entrava de férias e eu ficava porque tinha que estudar, porque tinha prova para passar de ano, então, para mim, aquilo era um martírio. Agora, gostava, sim, de um ou outro professor de português que valorizava minhas redações, aí, sim, mas isso era raro também. A primeira professora na minha infância, a primeira professora da primeira série, eu já era alfabetizada, porque eu estudei numa escola particular, então eu fiz Jardim e Pré. A única professora que eu me lembro com carinho, que era carinhosa, era a do Jardim, porque ela levava coelho para a gente ver como era o coelho, ela era afetiva e tinha um sorriso largo, a do Pré... nunca. Não me lembro do sorriso dela, era uma mulher de cabelo preto com uma mecha branca, parecia até assim uma personagem do mal, dos desenhos animados, aquela mulher de cara muito fechada, os olhos muito azuis, mas não me lembro de um sorriso dela, mas pelo menos não me lembro de nada ruim dela assim. A da primeira série foi complicado. Certa vez, ela contou uma história. E a história era de um passarinho, isso eu carrego comigo e vou carregar para sempre, uma coisa que foi muito difícil. Ela contou uma história, eu era da última fileira, então a mesa dela ficava do lado de cá, então até ela chegar até mim levava um tempo, ela passava por todos os alunos. Ela contou uma história. Eu não achei a história dela muito interessante, eu me lembro do meu pensamento, e eu sabia que eu estava fazendo coisa errada, porque eu peguei o personagem dela e escrevi outra história. Eu sabia que ela ia ler uma por uma. Ela começou a ler de todas as crianças, então eu fui ficando gelada, morrendo de medo, porque uma hora ela ia ler a minha, e não deu outra: quando ela leu a minha história, ela me bateu, eu apanhei na sala, na frente de todos os alunos, e dali para frente eu acho que eu nunca mais consegui ser uma aluna tranquila. E eu acho até que eu sou autora por causa disso, de birra, porque também eu podia ter feito o contrário: ter passado ali uma tesoura na minha criatividade, porque, como eu disse, em nenhum momento da minha vida escolar, do fundamental ao médio, eu vivi alguma coisa que valorizasse outro lado que o ser humano tem, que é o lado da criação, sendo o lado da inventividade, e essas coisas. Também, lá no final do médio, a minha mãe, coitada, não dava muito conta de mim. Eu passei de colégio em colégio, porque não me adaptava, mas, na verdade, eu não me adaptava com o esquema que era o ensino na época, mas eu fui cair no final do segundo médio num colégio que não fechava o portão, e não tinha uniforme, e era de um educador chamado Padre Mário Penóquio. Era um colégio misto, maravilhoso, e ele sentava no pátio para conversar com os alunos, queria saber de todo mundo, o que queríamos ser na vida, o que gostávamos de fazer. Nunca tinha vivido isso em escola alguma antes, então esse colégio foi o colégio que amei, no finalzinho. O portão não fechava, mas eu jamais fugi, e no outro que tinha um muro imenso, eu cheguei a pular o muro, passar para o outro lado para fugir da escola. Eu não tive uma vida muito tranquila e, coitada da minha mãe, sofreu muito, porque devia se perguntar “como você faz com um filho que não se adapta à escola?”. Mas, no fim, deu certo. Depois que consegui vencer todas essas etapas, com muito sacrifício, eu caí na escola de Artes Plásticas, e foi o que escolhi. Eu não sabia o que era ser artista, mas eu sabia que queria ser alguma coisa num lugar onde pudesse desenhar, pintar e olhar o mundo, e aí minha vida mudou. Eu fui uma excelente aluna, sei disso pelas minhas notas na faculdade, e tinha um imenso prazer em ir! E houve um tempo em que a escola disponibilizava os ateliês, a gente tinha aula num período e podia usar os ateliês no outro, e eu já trabalhava, mas eu ainda achava hora para ir à escola usar as oficinas num período que não era o período de aula, e eu acho que tudo isso influenciou a minha vida, principalmente como autora, porque eu tenho um cuidado muito grande quando vou fazer meu trabalho de literatura, de pensar nessa criança que vai receber o livro, dessa criança que vai percorrer esse livro. Não faço nada muito preestabelecido, “isso vai ser por isso ou por aquilo”, com exceção do trabalho paradidático, pois tenho um trabalho paradidático. Esse trabalho paradidático é exatamente o trabalho no qual consigo viver alguma coisa assim, proporcionar um conforto para aquela criança que está percorrendo aquele livro naquele momento, então, esse conforto que eu, com certeza, não tive, principalmente na escola, e o trabalho de literatura, aí eu voo, e qualquer leitor pode voar junto, principalmente porque a maioria da minha produção literária é produção de imagem, são as narrativas visuais, e as narrativas visuais permitem ao leitor uma viagem... ou mil viagens de um mesmo livro. E a criança ou o adulto, acho que não são livros que têm uma idade fechada, pode todo mundo, podem criar a própria história através da sequência de imagens, e voar e eu fico muito feliz, e sempre vou, quando tenho oportunidade, falar dos livros em escolas, ou em palestras, eu fico muito feliz, porque o retorno que eu tenho sempre me traz um aconchego na alma, mostrando que esse trabalho vale a pena, vale a pena ter sido feito, vale a pena continuar.
Assolini & Lastória - Tendo em vista que o seu trabalho abrange narrativas, ilustrações, produção e direção de filmes e documentários, poderia nos dizer onde busca inspiração para tantos trabalhos, marcados pela beleza e criatividade? Como é o seu processo de criação artística?
Regina Rennó - Nunca fui uma pessoa que quisesse trabalhar com um único suporte, um único material, eu já, desde criança, tinha interesses diversos por todas as coisas, por sucata, por tinta, por qualquer coisa, coisas da natureza. Eu penso que meu trabalho é reflexo disso, desse meu interesse, dessa disponibilidade para trabalhar a partir daquilo que já está aí no mundo, é só a gente pegar. Acho que eu, enquanto autora, sou, como todo autor, um catador de histórias, todas estão prontas nos lugares, a gente só colhe e organiza uma linha de pensamento e, de repente, faz um livro.
O livro de imagem ele é um trabalho difícil. Não é um trabalho fácil porque, num livro, por exemplo, de 24 páginas, e acaba não tento 24 páginas de histórias, porque tem página de rosto, de créditos, enfim, mas que sejam 22 páginas, eu tenho que sugerir uma história em pouquíssimo espaço, e eu associo, quando percebia que a virada da página passava o tempo que tinha na narrativa, às vezes era o tempo, e longo, porque era uma história comprida, de anos, ou era uma história curta, tanto faz o tempo da história, mas é o corte. Quando eu percebi esse corte, tive o interesse de estudar cinema, porque o corte no cinema sentia uma familiaridade muito grande com ele, devido à narrativa visual do livro de imagens. O livro de imagens me levou a ter interesse pelo cinema, ou foi o contrário, porque eu gostava, não sei se vou contar, eu gostava de filmes, assistia muitos, muitos filmes. Sempre assisti, sempre fui muito ao cinema, naquela época da minha juventude, tínhamos muitos cinemas nas cidades, e eu ia a muitos, então não perdia um filme que passava, às vezes assistia duas, três vezes. E não sei se foi isso que me levou para o livro de imagens ou foi o livro de imagens que me levou a ter interesse em produzir cinema. O roteiro do cinema é maravilhoso, porque o roteiro a gente faz o mínimo, e é como o corte de livro de imagem, e o tempo que fica entre uma cena e outra é o que mais me encanta, e é aquilo que o espectador constrói na imaginação dele. Então acho que tudo está interligado, e minha Artes Plásticas é uma coisa inerente, é uma coisa meio de pele. Eu amo ficar suja de tinta, nunca pude ter minhas unhas bem cuidadas como toda moça, porque minhas unhas sempre ficam cheias de tinta, ou de grafite, mas gosto muito dessa relação com a plasticidade da tinta, com a textura do suporte, e são linguagens que parecem distintas umas das outras, mas eu não sei. Acho que, no fundo, estão todas interligadas. E gosto de tudo: gosto de ouvir música, nunca tive vocação para isso, mas eu trabalho ouvindo música, às vezes eu desenho a música, pinto a música, eu acho que tudo está aí, tudo uma coisa só, não me vejo “isso ou aquilo”, eu só sei que eu descanso de um trabalho fazendo outro, de outra linguagem, e isso me dá prazer. Praticamente só trabalho na vida porque sou uma pessoa que não precisa muito viajar. Às vezes meus amigos não entendem muito, acham que tenho que viajar, queria viajar, mas eu já viajo tanto no meu trabalho que o tempo não dá, o tempo da vida é pouco, é curto.
Assolini & Lastória - Como você vê a escola na atual sociedade contemporânea? Quais as suas observações? Como essa instituição poderia melhor contribuir para despertar e sensibilizar o educando para a arte, para desenvolver o seu senso crítico?
Regina Rennó - Meus filhos cresceram, eu pude ficar muito perto da escola com o processo dos meus meninos, e a escola continuou me frustrando muito, porque sempre eu achava que a prioridade era para as exatas. E eu tenho experiência, faço parte de um projeto, já fiz parte e continuo fazendo, o Leitura Viva do SESI-SP, e, nesse, os dirigentes começaram a me pedir para falar para os adolescentes sobre a carreira de artista, a carreira de ilustrador, de autor, porque havia um medo muito grande nos meninos de fazerem o vestibular para uma escola de arte, ou para qualquer coisa similar que não fosse Direito, Medicina, Engenharia, essas coisas. E de casa também, porque eu acho que a escola não pode ser dissociada da casa, eu vejo a escola cada dia mais distante da família, e isso penso que é uma coisa que prejudica muito os estudantes, porque alguns lugares onde eu passo, como Rio Grande do Sul, gosto muito de citar essa ida minha lá. Eu fui para o primeiro evento no Rio Grande do Sul. O motorista que foi me buscar no aeroporto para me levar para a universidade, isso era em Passo Fundo, ele sabia tudo que eu tinha feito, porque os livros passam na casa dos pais dos alunos, então eles conseguem envolver a família. A família e a escola caminham juntas, principalmente na questão da Literatura.
Agora arte, Artes Plásticas, artes visuais, música eu não sei, existem alguns projetos para que isso seja mais importante dentro da escola, porque isso continua sendo considerado como uma coisa sem muita importância, mas creio que é um equívoco total, porque isso é importante, até para o desenvolvimento do olhar da criança ou do jovem, para o mundo, por que como você consegue olhar para o mundo se você não enxergar o ambiente que você vive? Você passa perto de objetos da sua casa, de coisas que você não presta atenção. Quando a gente vai dar aula de desenho, a gente percebe o tanto que as pessoas chegam para nós sem saber olhar. Não sabem enxergar aquilo o que faz parte do mundo delas. Penso que a escola continua muito longe de ser uma escola que ajuda o ser humano em todos esses sentidos, esses aspectos.
Assolini & Lastória - Uma de nossas preocupações diz respeito à sensibilidade do educador, mediante uma produção artística infantil. O que você diria para os educadores? É possível desenvolver a sensibilidade artística?
Regina Rennó - Tive uma oportunidade de trabalhar num centro de pesquisa, que se chamava Centro de Pesquisa da Antiguidade, onde nós atendíamos, isso em Belo Horizonte, logo que eu me formei, ou mesmo até antes de me formar. Era um centro aonde as pessoas iam, não era escola regular, a idade dos alunos era a partir de dois anos até noventa, para lidar com materiais e vivenciar a criatividade. Isso era extraordinário. Eu aprendi muito mais lá do que em qualquer outra escola da minha vida, aprendi com essa relação: o respeito que o educador tem que ter com uma criança que está criando, é raro. Nas minhas palestras e andanças pelas escolas, é muito raro a gente saber se o professor tem essa atitude, porque, inclusive, ele não tem para dar, porque também não viveu. Eu não o critico, mas ele não viveu, acho que falta esse lado da capacitação, não é mesmo? Precisa trabalhar esse lado, porque uma criança enquanto ela está criando aquele mundo é dela, as sensações são todas dela, o olho dela, o sentimento é dela, a dor é dela, a alegria é dela e não é de mais ninguém, e, infelizmente, a gente sabe das interferências que existem do adulto, nem falo do professor só, eu acho que professor e família são duas coisas que deviam estar juntas, e não estão, então não adianta a escola fazer o papel dela se a família não faz. Não adianta a família fazer se a escola não faz. Eu me lembro de meus dois filhos, o Tiago e o Pedro, quando eram pequenos. Eu fui numa reunião deles num colégio superbacana em São Paulo. Continua sendo um colégio bacana. E tinha uma reunião. Foram convocados 300 e tantos pais, porque eles tinham uma notícia para dar. A notícia é que a educação artística ia diminuir em detrimento da matemática. Isso, para mim, era uma notícia horrível! Mas eu era a única, ou, talvez, devia ter mais umas duas mães que pensavam diferente daquela multidão que estava ali, mas esse era o esquema, eu acho que esse esquema não mudou muito, não mudou, porque eu tenho filhos professores, então sei o que meus meninos trazem de relatos das próprias escolas em que eles são professores. Eu acho que não é muito valorizado, por exemplo, eu tive uma experiência belíssima em Ribeirão Preto, trabalhando no Colégio Metodista. Creio que foi uma experiência riquíssima na minha vida, fui uma louca, porque eu nem tenho formação para dar aula, mas dou aula, quando eles me proporcionam isso eu posso dar aula. Fui trabalhar com crianças da 6ª série ao 2º médio, e foi tão fantástico viver com eles coisas que eles nunca tinham vivido, eles não foram criados só ali não. Eles vinham de diversos colégios, eram muitas crianças ou adolescentes vindos de vários lugares e estavam ali naquele momento. E dificilmente tinha um aluno ali, uma criança, um adolescente preparado para criar, achando que aquilo era uma coisa importante na vida dele, então eu tive essa experiência e foi ótima porque fiquei muito perto desse público que é o meu, que são os meus leitores. Queria saber, inclusive, como meus livros chegavam para eles, e foi uma experiência riquíssima, mas aí eu vejo a lacuna, há, até hoje, escolas que usam a biblioteca como local de castigo. Quer dizer, o que você está falando para uma criança, para um jovem? Ler não é bom. É uma coisa tão ruim que a gente usa um livro para te castigar. Então não tem como, é um esquema que precisa ser aprimorado, tem que ser melhorado, acredito que felizes são os alunos que estudam em estabelecimentos que valorizam a criatividade.
Assolini & Lastória - Quais os desafios que a arte enfrenta no Brasil, hoje?
Regina Rennó - Penso que ser artista é um preço alto, quando a gente quer, de fato, seguir essa carreira. Mas acho que, como toda carreira, todas elas, você tem que se entregar, se entregar totalmente, mas, quando a gente entra numa escola de Artes Plásticas, a gente não tem ideia que caminho é esse, aí você começa a perceber o processo que você está vivendo. A hora que você precisa do mercado, eu não posso reclamar, acho que sou feliz. Desde 1988, que trabalho com uma galeria de São Paulo que, para mim, é a cidade onde o mercado de arte existe no Brasil, acho que existem outras, mas em São Paulo tem-se conhecimento de que realmente existe um mercado. Agora, esse mercado é como qualquer outro mercado. É um mercado onde quem determina tudo é o marchand, eu não acho que é muito fácil, porque quando eu era estudante eu tinha o sonho de que um crítico iria descobrir o meu trabalho e os meninos saem da faculdade achando isso, hoje. Isso não existe. Até porque está tudo atrelado ao mercado, acho que o mercado que dita as normas, que impõe as regras, e feliz do artista que consegue chegar nesse lugar, mas é raro e é muito difícil, e isso vai fazendo com que os artistas façam outras coisas, vão arrumando outras maneiras de sobreviver. A maioria que se forma numa escola de Artes Plásticas acaba ficando como professor. Não estou diminuindo, absolutamente, um professor de arte, mas é exatamente porque ele precisa de emprego para sobreviver e que não dá para viver só do seu trabalho de arte. Eu não fui ser professora. Dei aulas algumas vezes na minha vida, mas não, não me enquadro na questão dos horários e do rigor que é, que são essas... grades nas escolas, e eu preciso ficar solta, porque eu crio a qualquer hora, de madrugada, então não teria como ser professora durante muito tempo, alguns conseguem, e eu acho até que o trabalho deles fica mais prejudicado, porque o professor também trabalha demais, não é mesmo? E aí, o que eu faço, ilustrar livros, foi fantástico, porque foi isso que me deu uma condição de sobrevivência para educar meus filhos, difícil, porque isso teve que crescer junto, então ganhava super pouco, tinha pouco trabalho. Só agora eu posso falar que eu estou um pouco mais tranquila, mas longe de qualquer artista, todo mundo acha que a gente sai na mídia e a gente tem muito dinheiro, tem dinheiro nenhum, a gente tem o suficiente para viver e para continuar criando, mas feliz, é isso que importa. E, em relação a esse mercado, não há outro caminho ainda a não ser as obras, o artista tem que estar numa galeria, se ele não está numa galeria, ele não tem como sobreviver. Acho belíssimo esse movimento de Arte na Rua, essa arte de rua, belíssimo, não sei como esses meninos da arte de rua estão sobrevivendo, mas acho belíssimo esse trabalho. Penso que isso deveria se espalhar mesmo, é uma tendência, acho fantástico. Agora, existem obras que eu fico tentando entender como esse artista sobrevive se ele vive só de arte, as obras que elas passam, são as cibernéticas. Eu não sei como esse povo vive. Eu acho que é fantástico, mas não sei como fica essa questão da sobrevivência desse profissional, não consigo entender. Consigo entender que você está numa galeria, a galeria vende, e é a galeria que vende a sua obra, porque se você for trabalhar, o trabalho independente, é como um autor independente, ele manda rodar mil exemplares, é até muito rodar mil exemplares, de um livro, e ele vende para as pessoas que ele conhece, os que ele conhece vendem para os outros que ele conhece e, no fim, aquilo fecha, quer dizer, a distribuição não existe, e o mercado de arte não é diferente disso. Você vende para os seus amigos, é uma delícia vender para os seus amigos, porque os seus amigos gostam do seu trabalho, mas se você fosse viver disso seria impossível, então é necessário você estar no mercado, e o mercado tem um preço, tem as regras, como qualquer mercado, de qualquer profissão, eu acho. E não é fácil para ninguém que quer ser profissional, quer se consolidar como profissional, penso que, para ser artista, você paga um preço muito alto, mas, quando você consegue sobreviver, aí dá um alívio. Aí é a hora, quando as pessoas estão se aposentando, você está começando a parar para trabalhar mais, porque você já tem uma condição melhor para a sobrevivência.
Assolini & Lastória - A arte no Brasil ainda se destina a grupos minoritários? Como você vê a possibilidade de a arte ser acessível a diferentes níveis sociais e culturais? Acha que a mídia tem grande influência nessa acessibilidade e divulgação? E quais seus planos?
Regina Rennó - Eu penso que é a mídia, esse mundo de hoje no qual a gente tem acesso a tudo, ele tem um lado fantástico, maravilhoso, mas também tem outro lado que acho que não é tão legal, tão fantástico. Em relação à arte, tudo se divulga, tudo pode chegar a qualquer lugar. Bárbaro isso, eu própria tiro um proveito grande dessa questão porque meu trabalho eu posso publicar no blog, posso publicar no Facebook, e todo mundo faz isso! A gente, inclusive, passa a perceber a produção dos outros, as pessoas que estão escrevendo, um pensamento, tem um lado muito legal, mas acho que tudo é muito sem filtro, então tem tudo: tem uma coisa boa, tem a coisa mais ou menos e tem a coisa muito ruim. E penso que o que falta é esse critério, porque não sei como isso se dá, mas creio também que dá uma aparência de facilidade, por exemplo, eu fico imaginando um estudante que vai visitar uma exposição, como eu fui visitar agora o Kandinsky, e está perto da obra dele, da pincelada dele, da vibração, da alma do artista, é impossível, exceto se você esteja realmente em contato com a obra, ela respira, ela tem uma energia própria, e quando você estuda através da mídia, não dá para você entrar em contato, você não tem noção do tamanho da pincelada, não tem noção do movimento de punho do artista ou coisa parecida, e creio que a mídia dá uma mascarada nisso, as pessoas ficam, claro, acho que todo professor vive isso, quando você pede para o seu aluno fazer uma pesquisa e ele chega com aquilo pronto, está tudo pronto no computador, é só colher, e ele nem lê aquilo que está colocando, então penso que tem um ganho por um lado e uma grande perda pelo outro.
Eu sou uma autora. Sei que existem alguns, eu já conheço alguns, que trabalham como eu, e meu projeto é feito por inteiro. Eu faço, eu crio, eu ilustro, ou escrevo e ilustro, ou eu ilustro, faço projeto gráfico, e quando ele vai para a editora ele vai pronto. Isso é bom, mas, por outro lado, nem todas as editoras estão preparadas para receber esse tipo de trabalho, porque há uma equipe que produz. É o pessoal da arte, e eles interferem no projeto no autor. Às vezes interferem de maneira que atrapalha o trabalho do autor, às vezes não, às vezes melhoram o trabalho do autor, mas, em geral, assim, tem uma coisa, agora, a necessidade de “mexer nisso, mexer naquilo”, e às vezes a gente se frustra bastante, e eu não vivo muito essa frustração porque o meu trabalho, como ele sai pronto, é um livro de imagem não tem como você quebrar uma sequência de imagens, mudar alguma coisa, a não ser na embalagem, no papel que vai ser usado, então eu tenho ainda um privilégio em relação a isso, porque, quando o trabalho sai da minha casa, ele já sai pronto para ser rodado, para ser impresso, ele já sai hoje, inclusive, digitalizado. Antigamente era fotolito, dava mais trabalho, chegar à cor, hoje não, o jeito que ele sai é a maneira que ele vai ser impresso. E os meus projetos eles vão acontecendo, eu não tenho, por exemplo, uma produção imensa, tenho uma compulsão por trabalhar, como eu disse, como não faço uma coisa só, saio de um trabalho e entro no outro, então sou uma pessoa que trabalha sem parar, meu nome é trabalho, então os meus projetos eles vão acontecendo, por exemplo, acabei de lançar dois livros agora, tenho outro livro chegando, que foi feito junto, antes desses que eu lancei agora, mas agora ele está sendo produzido na editora, é “O menino que entregava leite”, eu estou ansiosíssima para recebê-lo. A gente fica doida para ver o resultado. Porque enquanto ele não vira um objeto... a gente tem que pôr a mão, ver, mas depois guarda, não é mais da gente, é do leitor, a gente não tem mais nenhuma propriedade sobre aquilo, sobre o que vem através dele.
E eu tenho alguns sonhos. Eu tenho um filme para fazer, que foi aprovado no MinC, mas não consegui captar, foi um período difícil, mas ele volta agora, entra num outro processo de captação, e eu tenho um grande desejo de fazer, espero que eu consiga. Agora, é isso, pode muita coisa acontecer, ou amanhã, ou depois de amanhã, essas são as coisas que sei que estou fazendo, e estou produzindo uma série, agora, de pinturas. Estou indo aos ensaios de música erudita, os cantores... e eu estou desenhando os cantores, e, pela primeira vez, os meus personagens não aparecem na tela com óculos e chapéu, agora eles estão, assim, como eles são. Bom, é isso.