A ESCRITA FEMININA: ALGUMAS QUESTÕES

A ESCRITA FEMININA: ALGUMAS QUESTÕES

A inspiração para a presente reflexão baseia-se no texto A ESCRITA FEMININA, da autora Rita Maria Manso de Barros. O citado texto foi publicado no livro ESCRITA E PSICANÁLISE, que tem como organizadoras as psicanalistas Ana Costa e Doris Rinaldi.

Somos seres de linguagem, isto é, somos estruturados pelo inconsciente que é articulado como linguagem. Como tal, acumulamos, ao longo de nossa formação, uma relação advinda do Outro. Uma relação esteada na linguagem, ou seja, em tudo que ela encerra: o amor, o olhar. A voz, o corpo. O Outro é, como sabemos, “(...) o lugar do tesouro do significante” (LACAN, 1966/1988, p. 820) e, assim, nossas primeiras relações objetais cravam em nós marcas que nos falarão e que falarão de nós. A priori, nascemos no Outro, nele somos constituídos.

Assim, a linguagem é o que vem marcar a presença do ser humano no mundo, é o registro simbólico, o registro que vem dar a dimensão existencial humana e suas particularidades. Conforme Lacan, “(...) o Outro é o lugar em que se situa a cadeia do significante que comanda tudo o que vai poder presentificar-se do sujeito, é o campo deste ser vivo onde o sujeito tem que aparecer” (LACAN, 1964/1986, p. 193, 194).

Afirmar a constituição do sujeito como um efeito de linguagem implica insistir que a constituição do sujeito é dada por essa via, um sujeito sujeitado à lei do significante, à lei do desejo, à incompletude, à falta de significado. Assim, o significante metaforiza para o sujeito a castração, esse corte afiado que é a linguagem que se inscreve na falta.

Portar a falta! Ser faltoso! Que dor!!!

Mas, de acordo com a autora do riquíssimo texto em questão, Rita Maria Manso de Barros (2009), “as mulheres, que fingem não ter o que de fato não têm” (o falo) (p.174) e “precisam mascarar a ausência de algo que nunca tiveram” (o falo) (p.174). Para dar conta de uma falta, que a princípio não há, as mulheres servem-se das palavras, que a exemplo bordado, do crochêt ou do tricôt são entrelaçadas e tecidas em torno do vazio.  Nesta posição, o sujeito, em particular, a mulher, não nega a falta. Ela a enfeita em seus contornos.

Cumpre notar que escrever é um dos recursos de que dispomos para impor algum domínio sobre o real. Quando escrevemos nos distanciamos de nós mesmos, o que pode nos ajudar a elaborar situações traumáticas e ressignificar acontecimentos e situações dolorosos e não elaborados. O sujeito encontra na escrita um meio propício e adequado para expurgar sua dor e conservar suas alegrias, e, assim, pode aplacar a angústia da castração, a dor de existir.

E, as mulheres, que por milênios estiveram confinadas ao exílio, no interior de suas casa e de si próprias, vivendo e experimentando toda a sorte de situações catastróficas, violentas e dolorosas parecem conseguir escrever a partir de suas entranhas, desnudando o íntimo, o recôndito, o subterrâneo. Nesse sentido, a internet, mais do que um modismo, talvez possa se constituir numa bem-vinda via escrita de pulsão.

Mas, havemos de lembrar, que à mulher sempre foi vedado o direito à leitura e à escrita. É recente na história da humanidade, a entrada e jovens mulheres no campo escolar. De acordo com Áries (1981, p.233), apenas no final do século XVIII, devido à disseminação da alfabetização, as mulheres passaram a ter acesso a essas práticas sociais. Para enfrentar as agruras do cotidiano e as dores da alma, o recurso da escrita não poderia ser mobilizado pelas mulheres.

Hoje, século XXI, o desejo e a inveja do falo, a perspectiva narcísica, imaginária e ilusória da completude ainda são marcas do feminino. Entretanto, podemos nos valer abertamente da escrita, quer seja para produções intelectuais, literárias, e também para nos expressarmos por meios de diferentes gêneros discursivos. Há avanços em relação aos impedimentos e censuras que marcaram, histórica e ideologicamente, as possibilidades de as mulheres (se) dizerem pela escrita.  Nossa percepção, portanto, é a de que as mulheres possam, de fato, autorizarem-se à escrita, quer seja a de um simples bilhete, quer a de um preenchimento de formulário, quer a literária, capaz de refaze a sua história.

Destacamos a questão do “autorizar-se a escrever” porque não podemos negar que, em alguns casos, algumas mulheres ainda se submetem aos mandos desmandos de uma sociedade ainda com traços machistas e autoritários. Outro dado importante diz respeito ao fato de ainda termos no Brasil milhões de mulheres brasileiras não alfabetizadas e com baixo nível de letramento.

Encerramos a presente reflexão com a resposta de Clarice Lispector a Berta Valdeman (1981), que lhe perguntou porque escrevia:

Escrevo porque, se dó muito escrever. Não escrever dói também e mais..... Escrevo para saber porque nasci. E às vezes escrevo como quem de comer a mim e aos outros.... Ao escrever, eu me dou as mais inesperadas surpresas. É na hora de escrever que muitas vezes fico consciente das coisas, das quais sendo inconsciente, eu antes não sabia que sabia”.

 (LISPECTOR, 1981, p.13-15).

Elaine Assolini

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