A ESTÉTICA SIMBOLISTA NO BRASIL E O POETA CRUZ E SOUSA

A ESTÉTICA SIMBOLISTA NO BRASIL E O POETA CRUZ E SOUSA

Prof. Julio César Pironi

 

No Brasil, o movimento simbolista nasceu dentro do contexto histórico das campanhas de Abolição e Proclamação da República. Todo o fervor em sonhar um país novo ocorreu, sobretudo, com os jovens brasileiros que queriam ver uma pátria livre do Império e a libertação da escravatura. Os jornais e revistas da época, que faziam esforço para sobreviver nos mercados editoriais, auxiliavam nessa empreitada, inserindo documentações referentes às atividades político-sociais dos jovens abolicionistas e republicanos. Nossa nação ainda era conservadora, tinha a maioria da população analfabeta, não havia apreciadores da arte como o europeu e vivia num regime escravocrata.

O Simbolismo teve um período muito curto no Brasil em comparação à estética parnasiana. O movimento simbolista, em terras brasileiras, foi quase inteiramente afastado pelo movimento parnasiano, este calcado numa linguagem da expressão do real, do documental e do objetivo, que gozou de amplo prestígio entre as camadas cultas da sociedade.

Andrade Muricy, autoridade nos estudos sobre o Simbolismo nacional, no livro Panorama do movimento simbolista brasileiro, irá considerar a estética “um corpo estranho na literatura brasileira”, pois foi um movimento aparentemente imprevisto na evolução literária nacional, aparecendo como “fruto de empréstimo europeu”. Afirma também que os simbolistas brasileiros formaram “o seu espírito num ambiente intelectual bastante simplista: um rousseauísmo básico, recebido através da Revolução Francesa e do enciclopedismo, e conservado em parte mercê das tradições maçônicas, que comportava o vago teísmo do século XVIII [...]”.

O crítico literário Álvaro Cardoso Gomes leva-nos à crítica nacional e impressionista da época, frisando ainda que a ideia do vago, do indeciso e do impreciso na poesia brasileira não coadunava muito bem com o esplendor da terra tropical e com o sol a pino, pois o Simbolismo nasceu em regiões industrializadas e frias, como também elegeu o Outono (de preferência) e o Inverno como as estações prediletas para expressar os diferentes estados da alma, portanto, não conseguiria se fixar num país de clima tropical e de atividade econômica agrícola.

Diante de tais reflexões, percebe-se que o Simbolismo não teve condições para se impor naquele momento – final do século XIX –, no Brasil. A linguagem-tipo do movimento, ideal, sugestiva, subjetiva, sutil, misteriosa, evocativa da alma e do inconsciente não foi bem compreendida, gerando várias opiniões controversas e, muitas delas, incompreendidas sobre o movimento.

A arte simbolista, diferentemente da arte parnasiana, foi subjetivista e aristocrática, pois nenhuma tendência poética se preocupou tanto com as realidades suprassensíveis e metafísicas como o novo movimento.

Embora ela não tenha fornecido um projeto de cunho nacionalista para o Brasil, a produção simbolista brasileira deixou contribuições significativas, preparando terreno para as grandes inovações que iriam ocorrer no século XX, no domínio da poesia, como ressalta o professor Antônio Donizeti Pires em sua tese de doutorado.

 

O Simbolismo brasileiro não ofereceu, realmente, um projeto ético-nacionalista para o Brasil, mas preocupou-se com a estética, redescobrindo o valor da palavra e da poesia em si e per si, além de ter comunicado os valores universais e atemporais do ser humano, do Eu profundo do poeta. Assim, por mais que se tenha atrasado o relógio de nossa modernidade literária, é também no Simbolismo brasileiro – e muito pouco no Parnasianismo – que devemos procurar o começo de uma linguagem nova, não representativa, só plenamente possível com o Modernismo. (PIRES, 2002, p.208-209; grifos do autor).

           

Ao falar sobre o Simbolismo, é interessante destacar que, mesmo ele tendo ocorrido num curto espaço de tempo em nosso país, conseguiu deixar vasta fortuna crítica em relação ao Parnasianismo, que gozou de amplo prestígio das camadas elitizadas da época.

O movimento literário no Brasil teve Cruz e Sousa como figura exponencial, seguido por Alphonsus de Guimaraens, Emiliano Perneta, B. Lopes, Nestor Vítor, Gustavo Santiago e outros menores.

Por tudo isso, é notável a contribuição simbolista brasileira, pois ajudou a promover a reforma de nossa poesia, aprofundando e delineando melhor a especificidade e os caminhos de nossa lírica, principalmente com Cruz e Sousa, autor das obras Missal e Broquéis, ambas de 1893, que se tem apontado como marco introdutório do movimento simbolista brasileiro.

 João da Cruz e Sousa (com a alcunha de Dante Negro ou Cisne Negro) nasceu em Desterro (atual Florianópolis), em 24 de novembro de 1861. Era filho da lavadeira Carolina Eva da Conceição (?-1891) e do mestre-pedreiro Guilherme de Sousa (1807(?)-1896), ambos escravos alforriados. Apesar da origem social de seus pais, Cruz e Sousa é criado pelo marechal Guilherme Xavier de Sousa e sua esposa dona Clara Angélica, que lhe deram imenso conforto na infância, pois não tinham filhos.

Embora muitos estudiosos do “Cisne Negro” enfoquem sua criação pelos “pais adotivos”, os pais biológicos, segundo o mesmo biógrafo, também contribuíram com a educação de seus filhos, pois não queriam que eles passassem pelo mesmo sofrimento que passaram.

Desde pequeno, Cruz e Sousa demonstrou sinais de vocação para a poesia, declamando versos. Embora tivesse inteligência e uma criação exemplar, Cruz e Sousa sofria preconceitos por causa de sua cor. As discriminações rodearam toda sua vida, ainda mais por ter certo comprometimento com a causa abolicionista. Era realmente difícil viver e se relacionar numa sociedade extremamente racista, mesmo tendo o conhecimento e o talento que tinha. Quase chegou a ser nomeado promotor por Francisco da Gama Rosa, em 1883. O único impedimento foi sua descendência africana, que os políticos não aceitavam. É talvez, a partir desse momento, que aparecem as verdadeiras frustrações do poeta por conta de sua etnia.

O mundo de injustiças que sofreu lhe será um tema peculiar em algumas de suas poesias simbolistas. Refinado pelo seu labor inteligente e fina educação recebida, Cruz e Sousa conseguiu criar um simbolismo elevado e próprio.

E, dentre essa riqueza poética, a dor de existir é um tema característico do Simbolismo que foi abordado por Cruz e Sousa sob diversas circunstâncias. Sua maturidade mental o conduziu a uma análise metafísica da mesma. Eis o exemplo do poema “Vida obscura”, extraído de Últimos sonetos (1905), que ilustra a profunda vivência do poeta e revela que por meio do sofrimento poderão vir a purificação e a transcendência, tão caras aos poetas simbolistas.

                                     Ninguém sentiu o teu espasmo obscuro,

                                         ó ser humilde entre os humildes seres.

                                         Embriagado, tonto dos prazeres,

                                         o mundo para ti foi negro e duro.

                                            

                                     Atravessaste no silêncio escuro

                                         a vida presa a trágicos deveres

                                         e chegaste ao saber de altos saberes

                                         tornando-te mais simples e mais puro.

 

                                         Ninguém te viu o sentimento inquieto,

                                         Magoado, oculto e aterrador, secreto,

                                         que o coração te apunhalou no mundo.

 

                                         Mas eu que sempre te segui os passos

                                         sei que cruz infernal prendeu-te os braços

                                         e o teu suspiro como foi profundo!

                                                       (CRUZ E SOUSA, 1981, p.115).

           

O poeta, ao mesmo tempo em que nos revela a sua dor de viver, cristaliza em seu texto poético a beleza de expressão cuidadosamente buscada pelos simbolistas: no seu caso, tal beleza se torna mais formosa na medida em que consegue conciliar seu sofrimento com os altos ideais estéticos do Simbolismo. O uso cruciano de palavras é caracteristicamente simbólico, por isso Cruz e Sousa era realmente um “Alquimista do Verbo”.

Ivan Teixeira, em prefácio à edição fac-similar de Faróis (1998), acredita que há quatro significados essenciais para a compreensão da poesia cruciana: a) a poesia de Cruz e Sousa possibilitou o estabelecimento “de uma dimensão de pesquisa metafísica do indivíduo” (TEIXEIRA, 1998, p. XIII); b) em segundo lugar, o poeta associa sua condição étnico-social à do poeta maldito; c) “a terceira noção para a leitura de Cruz e Sousa reside no fato de se tratar de um escritor que trabalha tanto o verso quanto a prosa poética.” (p. XVI); d) finalmente trata-se da “investigação de sua relação com a estética simbolista” (p. XVII), isto é, como incorporou o Simbolismo, tornando-se seu poeta de maior destaque.

 Tais considerações do estudioso são de extrema importância para a análise de suas obras, pois conforme o Cisne Negro escrevia, alcançava um grau de maturidade em relação à estética simbolista. Tal maturidade poética o levou aos caminhos de uma riqueza simbolista incontestável, criada num espaço restrito de tempo (1892-1898), que evolui das pesquisas de Broquéis para a expressão do sentimento profundo de dor nos Últimos sonetos. Cruz e Sousa sabia trabalhar verdadeiramente a palavra.  E cada palavra lapidada e criada se transforma em algo novo, hermético, dando vários sentidos para sua poesia, cuja identificação com a estética simbolista encontra-se em sua obra póstuma.

O poeta do Desterro sabia expressar, por meio do verso, a verdadeira essência da estética que seguiu. Em síntese, expressando de maneira sistemática os temas de Ideário simbolista, a linguagem do “Cisne Negro” foi tão revolucionária que, segundo Bosi, os traços parnasianos mantidos pelo poeta (como adesão ao soneto) acabam por integrar-se num “código verbal” novo e a remeter a significados novos, o que é um indício de que sua obra mereça ser estudada com afinco e atenção, sob a dominante simbolista.

           

REFERÊNCIAS

 

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