THE HANDMAID’S TALE – O CONTO DA AIA – A distopia nossa de cada dia

THE HANDMAID’S TALE – O CONTO DA AIA – A distopia nossa de cada dia

 

Profa. Luciana Galeani Boldorini
Profa. Dra. Elaine Assolini

Em seu livro de 1985, O conto da Aia (The Handmaid’s Tale), a autora canadense Margaret Atwood conta a história distópica de um golpe de estado aos Estados Unidos da América.

Após o ataque a um presidente, o Congresso Americano, tendo sua maioria cristã, decide por uma retomada aos valores fundamentais de uma sociedade. Valores estes impostos por esta bancada majoritária de governantes aos modos do Antigo Testamento bíblico cristão sob o pretexto de uma tentativa de salvação da sociedade.

É instaurada a República de Gileade (que na Bíblia significa “monte de testemunho”), um estado totalitário, militarista e cristão. Todos os habitantes têm suas vidas reorganizadas em castas e funções pré-definidas.

Homens considerados anteriormente poderosos ocupam todos os cargos de chefia e liderança. Todos têm cargos políticos e trabalham para o novo estado. Os homens menos influentes possuem cargos de soldados e seguranças das famílias mantendo a ordem e regras estabelecidas. Eles têm o direito de ir e vir sem questionamento.

As mulheres que ficaram em Gileade e não conseguiram fugir foram as que sofreram mais com a reorganização. As esposas dos comandantes (como se autodenominam os homens de poder) vestem-se inteiramente de azul, sempre de vestidos e pequenos saltos, cabelos presos e sem qualquer maquiagem. Elas ficam em casa organizando o lar exclusivamente. Não têm função política ou mesmo exercem função remunerada.

As demais mulheres foram divididas entre estéreis e férteis. As estéreis trabalham como empregadas nas casas das famílias dos comandantes, são chamadas de Martas. Elas se vestem de cinza com um lenço igualmente cinza nos cabelos. Elas cozinham e limpam somente.

 As mulheres férteis são as chamadas Aias e elas se vestem com longas túnicas vermelhas e chapéus que impossibilitam olhar para os lados. As aias têm o papel de reprodutoras da sociedade e podem sair somente para fazer compras no mercado local, porém acompanhada de outra aia vizinha. Todas as aias são rebatizadas. Seus nomes são mudados de acordo com a casa do comandante a quem servem. Por exemplo, se o comandante da casa se chama Wilson, sua aia se chamará OfWilson (vindo do inglês: de Wilson, como um sinal de posse). As aias têm os seus ciclos férteis monitorados e quando estão ovulando, participam de um “ritual” onde são banhadas e posteriormente levadas até o comandante e sua esposa. Numa antessala, trechos da bíblia são lidos e então todos se dirigem ao quarto onde as aias são estupradas por seus comandantes e assistidos por suas esposas. Aguarda-se o nascimento deste bebê e a esposa do comandante que será a mãe da criança. A aia poderá ficar na mesma casa e gerar mais filhos para aquele comandante e esposa ou então ser designada para outro lar onde dará filhos a uma outra família.

Uma dessas mulheres transformada em aia, é a narradora do livro que deu origem à série de TV que foi lançado em 2017 e está em sua 3ª temporada.

June, agora chamada de OfFred (trad. de Fred), era uma editora de livros e com o advento do golpe, ela, o marido e a filha tentam fugir para o Canadá, país vizinho que acolhe os refugiados de Gileade. Porém é capturada e como ainda é fértil, foi designada na nova ordem como aia.

A série foi muito premiada pelo enredo controverso e a interpretação da atriz principal. Com uma excelente produção e ambientação é possível se sensibilizar e sentir todo o terror que seria viver numa sociedade onde não há mais jornais, revistas, tv, rádio, telefone ou internet. Onde não se pode caminhar livremente. Não se pode vestir, pensar ou agir de forma diferente da sociedade reorganizada. Não se pode expressar opinião e qualquer ato considerado fora dos padrões estabelecidos socialmente por essa nova ordem cristã-totalitária tem como punição a morte por enforcamento.

Tanto a série como o livro nos fazem refletir sobre igualdade, direitos, liberdade e o simples ato de expressão de opinião. O papel do sujeito dentro de uma sociedade e como esta se organiza para o bem comum do indivíduo.

Quando fazemos uma análise das obras, é impossível não traçarmos um paralelo contrastante com o filósofo francês Michael Foucault que publicou vários estudos políticos em sua vida. Um deles, um prefácio para o livro O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia (Gilles DeleuzeFélix Guattari,1977) chamado de Introdução a uma vida não-fascista, leva a uma reflexão maior sobre o antagonismo desses dois sistemas de governo e a um manual anti-fascista por ele assim chamado.

Disse Foucault:

“(...) Essa arte de viver contrária a todas as formas de fascismo, que sejam elas já instaladas ou próximas de ser, é acompanhada de um certo número de princípios essenciais, que eu resumiria da seguinte maneira se eu devesse fazer desse grande livro um manual ou um guia da vida cotidiana:

 - Libere a ação política de toda forma de paranoia unitária e totalizante;

- Faça crescer a ação, o pensamento e os desejos por proliferação, justaposição e disjunção, mais do que por subdivisão e hierarquização piramidal;

 - Libere-se das velhas categorias do Negativo (a lei, o limite, a castração, a falta, a lacuna), que o pensamento ocidental, por um longo tempo, sacralizou como forma do poder e modo de acesso à realidade. Prefira o que é positivo e múltiplo; a diferença à uniformidade; o fluxo às unidades; os agenciamentos móveis aos sistemas. Considere que o que é produtivo, não é sedentário, mas nômade;

- Não imagine que seja preciso ser triste para ser militante, mesmo que a coisa que se combata seja abominável. É a ligação do desejo com a realidade (e não sua fuga, nas formas da representação) que possui uma força revolucionária;

- Não utilize o pensamento para dar a uma prática política um valor de verdade; nem a ação política, para desacreditar um pensamento, como se ele fosse apenas pura especulação. Utilize a prática política como um intensificador do pensamento, e a análise como um multiplicador das formas e dos domínios de intervenção da ação política;

 - Não exija da ação política que ela restabeleça os “direitos” do indivíduo, tal como a filosofia os definiu. O indivíduo é o produto do poder. O que é preciso é “desindividualizar” pela multiplicação, o deslocamento e os diversos agenciamentos. O grupo não deve ser o laço orgânico que une os indivíduos hierarquizados, mas um constante gerador de “desindividualização”;

- Não caia de amores pelo poder.” (...)

Neste guia, Michel Foucault deixa bem evidente que para se evitar sistemas totalitários, como já vistos ao longo de nossa história da humanidade como organização social, deve-se preferir em suma o que é positivo, o múltiplo, a diferença, o fluxo e a mobilidade. O que refuta completamente um regime totalitário.

A série, leva ao extremo visual dos conceitos de mutilação de direitos e expressão. A simbologia da repressão é escancarada quando muitas das Aias têm suas bocas literalmente lacradas por argolas de ferro como punição a tentativa de se expressar como indivíduo e se rebelar perante a condição imposta. O amor pelo poder levado às ultimas consequências por aqueles que o detêm. A subjugação de seus semelhantes pela força justificado apenas pelas diferenças sociais, físicas ou de gênero.

A série O conto da Aia, com certeza nos deixa desconfortáveis sentados no sofá. Há um incômodo físico ao assistirmos as cenas. Nossa empatia aflora, pois, com certeza, nos colocamos no lugar das personagens e nos imaginamos vivendo nessa louca distopia diária. Vale ser analisado como obra de ficção somente e como alerta para alguns retornos históricos já presenciados por nós no passado.

Atwood, M. O conto da aia. Editora Marco Zero, 1987.

Foucault, M. Introdução à uma vida não-fascista. Prefácio em: Gilles Deleuze e Félix Guattari. O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia, Nova Yorque, Viking Press, 1977, pp. XI-XIV.

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