LEITURA E LETRAMENTO: CONCEPÇÕES DE PROFESSORES

LEITURA E LETRAMENTO: CONCEPÇÕES DE PROFESSORES

Contextualização da Pesquisa

Entender as relações que professores do Ensino Fundamental estabelecem com a leitura, escrita, literatura e língua portuguesa, ao longo da vida, motivou-nos à realização de ampla investigação de pós-doutorado, em andamento, que busca saber as consequências e implicações dessas relações para os seus saberes, fazeres pedagógicos e constituição de suas identidades profissionais docentes. Partindo do pressuposto segundo o qual a memória discursiva não se apaga, mas continua a reverberar e produzir sentidos, compreendemos que tais saberes, fazeres e identidades não podem ser pensados, analisados ou criticados sem que se considere essa memória, que está continuamente nos afetando.

Podemos entender memória como

...inúmeras vozes, provenientes de textos, de experiências, enfim, do outro, que se entrelaçam numa rede em que os fios se mesclam e se entretecem. Essa rede conforma e é conformada por valores, crenças, ideologias, culturas que permitem aos sujeitos ver o mundo de uma determinada maneira e não de outra, que lhes permitem ser ao mesmo tempo, semelhantes e diferentes. Essa rede, tecido, tessitura, texto, melhor dizendo, escritura se faz corpo no corpo do sujeito, (re)velando marcas indeléveis de sua singularidade (CORACINI, 2007, p.9).

Para este artigo, trazemos o início de uma análise referente à concepção de leitura, de um dos trinta professores do ensino fundamental que nos concederam entrevistas orais e depoimentos escritos, a respeito dessas relações com a leitura, escrita, literatura e língua materna, bem como esses elementos são por eles concebidos. Os professores permitiram gravar aulas de leitura e de escrita por eles ministradas, ao longo dos anos de 2013, 2014 e 2015, em diferentes cidades do interior paulista.

 

Recorte nº 1

Bom, acho que ler é.... também conceituar, é entender o código, quero dizer, tentar entender o que ele quer dizer, acho que é mais ou menos isso: ler tem a ver com decodificar. Mas, hoje em dia, nos cursos de formação continuada, falam pra gente: ler tem a ver com letramento, tem que saber ler para ser letrado. E penso isso mesmo, letrado tem a ver com as letras, com leitura (Professor RFSD-28).

O recorte acima traz trechos de um longo depoimento escrito pelo professor RFSD, que ministrava aulas para o 3º ano do Ensino Fundamental, em 2014. Nosso gesto interpretativo destaca, inicialmente, o conceito de leitura ao qual o professor se filia: ler tem a ver com decodificar.

Entendemos ser pertinente retomar algumas das pesquisas que investigaram a leitura em sala de aula como, por exemplo, a de Coracini (1995), que deu origem ao livro O jogo discursivo na aula de leitura, já em sua terceira edição, tendo sido publicado pela Pontes Editores. Os investigadores, participantes da pesquisa, rastrearam algumas das concepções de leitura no dizer dos professores, seja sob a forma declaradamente assertiva, seja sob a forma de representação que emergiram das aulas que os professores designam como aulas de leitura.

Uma das conclusões a que a citada pesquisa chegou é a de que “(...) as concepções de leitura giram em torno da palavra e do significado atrelado a cada uma, significado tido como imanente; o significado do texto é construído, portanto, pela relação de uma palavra com a outra, sem que se considere a presença ativa e imprescindível do leitor” (CORACINI, 2015, p.111).

Outra pesquisa, relacionada às concepções e ao trabalho pedagógico com a leitura desenvolvido por professores do Ensino Fundamental, em sala de aula, foi realizada por Assolini e Tfouni (2008). Alguns dos resultados aos quais chegamos foram: a) a leitura é concebida, principalmente, como decodificação; os sentidos que irrompem de um texto, por sua vez, são tomados como naturais, óbvios, evidentes; b) as histórias de leitura do aluno e os seus saberes não escolares não são considerados nas aulas de leitura; c) os estudantes ocupam, principalmente, a posição de “escreventes”, ou seja, daqueles que têm a tarefa subalterna de sustentar e de reproduzir sentidos estabilizados; d) algumas das práticas pedagógicas com a leitura remetem aos exercícios pedagógicos medievais.

Transcorrida quase uma década da realização das pesquisas, brevemente acima destacadas, ainda é possível identificar, no interdiscurso de professores, quase que praticamente as mesmas concepções que restringem a ação de ler à ida a um código preestabelecido, do qual emanaria supostamente “o sentido verdadeiro”.

Esse interdiscurso, constituído por fragmentos da memória discursiva, traz dizeres e sentidos que nos preocupam, visto que continuam ecoando nos fazeres pedagógicos dos professores, afetando negativamente o seu trabalho com a leitura, interpretação e a escrita, na sala de aula. Essa concepção, recorrente e naturalizada nos discursos dos professores e, também, camufladamente, em documentos e programas oficiais de ensino, pode ser pensada à luz das contribuições de Foucault (1999), em especial as que concernem ao “discurso de verdade” (Foucault, 1999), verdade construída historicamente.

Salientamos, também, que o entendimento decorrente dessa concepção afeta a constituição da identidade profissional do professor, tanto no âmbito da formação inicial, em cursos de licenciatura em Pedagogia, quanto nas experiências de formação continuada, posto que esse sujeito permanece inscrito em formações discursivas que não lhe permitem historicizar os sentidos, ocuparem diferentes posições de sujeito e realizarem gestos interpretativos, a partir do interdiscurso que os constitui. Nessas condições de produção, raramente o futuro professor, ou aquele já no ofício da docência, exerce o direito à palavra, a diferentes leituras, (re)formula e (re)significa os denominados “saberes profissionais”, “da docência”, do “ser-estar professor”, de acordo com o educador Maurice Tardif (2010) e se constitui autor de seu próprio dizer.

Contrapondo-se a essas concepções e práticas, que limitam a leitura à busca de sentidos únicos, preestabelecidos, imanentes à palavra, a teoria discursivo-desconstrutivista propõe a leitura como “gesto de interpretação e vice-versa” (CORACINI, 2015, p.111-112). De acordo com a estudiosa, podemos pensar a leitura como produção de sentidos, considerando que não lemos por “camadas” estanques, que não se interpenetram, como se lêssemos em primeiro lugar, compreendêssemos, em seguida, e, por fim, alcançássemos a interpretação. Desconstruindo esse entendimento, a pesquisadora afirma que: “(...) no exato momento em que lemos, fazemos uso dos olhos e da mente, interpretamos, produzimos sentido: ao ler/ver - afinal, lemos vendo - atentamos para certos fragmentos e não para outros-algo do leitor, da subjetividade do leitor se inscreve no texto para produzir sentido e não construir sentido” (CORACINI, 2015, p.112).

É interessante observamos a distinção entre produzir sentido e construir sentido. Esse se restringe a buscar, na estrutura do texto, pistas deixadas pelo autor, que orientam ou dirigem a ação do leitor. Nesse caso, o “bom leitor” seria aquele que melhor rastreasse e perseguisse as pistas disponibilizadas pelo autor que as toma como intenções ou objetivos conscientes. Diferentemente dessa concepção, os estudos de Coracini (2015) nos ensinam que produzir sentido requer a presença de um leitor ativo, que se inscreve no texto, imprimindo algo de si, de sua subjetividade, portanto. Não se trata apenas de extrair um sentido do texto nem de buscar formar um quebra-cabeça, a partir de suas peças, mas “(...) seguindo o fio ou ao menos um fio do texto, da tessitura, do tecido, bordá-lo com fios de sua subjetividade, de seus aportes” (CORACINI, 2015, p.112).

A pesquisadora, acima citada, aprofunda e avança as distinções por ela realizadas, bem como a noção de leitura por ela postulada (leitura como interpretação e produção de sentido), a partir das contribuições dos estudiosos Derrida (1972, 1991, 2012), Lacan (1985) e teóricos que com eles dialogam, trazendo para discussão as problematizações que envolvem a de-cisão no processo interpretativo e a pulsão escópica e a violência no gesto de leitura. Essas questões instigam-nos a pensar sobre as cicatrizes deixadas no texto, a partir de nossos gestos interpretativos e, também, a respeito de olharmos e sermos olhados, posto que o olhar apela ao outro-Outro- trata-se de um olhar imaginado no campo do outro (cf. LACAN, 1985, ASSOUN, 1999, CORACINI, 2015). As provocações aos entendimentos de leitura, que ainda circulam no Ensino Fundamental brasileiro, incitam-nos não apenas a repensar os motivos pelos quais os professores ainda se apegam e se valem dessas concepções como também ajudam-nos a repensá-las além do âmbito educacional e didático-pedagógico.

Dando sequência, vamos nos ater à sequência discursiva tem que saber ler para letrado

De acordo com o entendimento do professor RFSD, o letramento seria alcançado pelos alunos se esses soubessem ler. Essa concepção que pressupõe duas distintas etapas, alfabetização e, em seguida, o letramento, foi concebida e divulgada por Soares, no início dos anos noventa. Muitos documentos curriculares, programas oficiais de ensino, além de propostas e materiais pedagógicos são fundamentados nessa concepção, ainda vigente, em alguns estados brasileiros, como mostramos em pesquisas anteriores (ASSOLINI, 2012).

Nesse contexto, letramento está sustentado no entendimento de literacy, enquanto aquisição de leitura e escrita, sendo imprescindíveis para tanto o domínio de “habilidades”, e “competências”, voltadas para a codificação e decodificação de textos escritos. Letradas, nesse contexto, seriam somente pessoas escolarizadas e que sabem ler e escrever. Outra característica dessa concepção, conhecida também como a-histórica, tem a ver com o pressuposto de que somente alunos alfabetizados conseguiriam produzir textos caracterizados pela autoria. A abordagem estruturalista de linguagem, língua, fala, por exemplo, sustenta tanto o entendimento de alfabetização quanto o de letramento.

É possível, portanto, observar, nos dizeres do professor, indícios linguístico-discursivos, que remetem a essas concepções e entendimentos. A observação de suas práticas pedagógicas com a leitura e a escrita indicia forte preocupação com o ensino da língua culta, a partir de atividades gramaticais e ortográficas; a produção textual, por sua vez, não acontece regularmente e o discurso oral não é considerado como modalidade onde poderia ocorrer a emergência da autoria.

Contrapondo-se a essa abordagem de letramento, encontramos, nos estudos de Tfouni (1995, 1996, 1997, 2001, 2010, 2013....2015, 2016, 2017), o entendimento de letramento como processo, cuja natureza é sócio-histórica. As pesquisas da autora, que se iniciaram na década de oitenta, estão ancoradas nos pressupostos das teorias do discurso e na psicanálise freudo-lacaniana.

Essa abordagem, à qual nos filiamos, contrapõe-se à teoria da grande divisa e traz para discussão o fato de que não é mais a língua que deve ser considerada como parâmetro, mas os discursos que servem de suporte às práticas letradas.

Estudar o letramento como fenômeno sócio-histórico implica estudar as transformações que ocorrem em uma sociedade quando suas atividades passam a ser permeadas por um sistema de escrita, cujo uso é irrestrito, comum, generalizado. Implica investigar, ainda, não somente quem é alfabetizado, mas, também, aqueles que não tiveram acesso a esse fenômeno.

Tfouni (1992) distingue alfabetização de letramento, mostrando que a alfabetização é um dos aspectos do letramento. Existem, de acordo com o que postula, letramentos de natureza diversa, inclusive sem a presença da alfabetização.

É dentro desse enfoque que a autora propõe o “eixo do continuum”. Nas várias gradações possíveis desse eixo, ficariam as pessoas em um dado momento histórico. Entretanto, “(...) não está implícito nem que essa distribuição seja homogênea, nem que essas posições sejam, intercambiáveis ou equivalentes” (TFOUNI, 1994, p.56). Assim tanto do ponto de vista das desigualdades, quanto do ponto de vista das aquisições, temos diferenças.

Os postulados acerca da alfabetização, do letramento e do continuum trazem contribuições importantes para a educação escolar, pois se considerarmos que o educando vive em uma sociedade permeada por um sistema de escrita cujo uso é amplo e generalizado e, portanto, sofre a influência (mesmo que indireta) do código escrito, não o representaríamos, como em alguns casos, como sujeito que chega à escola desprovido de conhecimentos acerca da linguagem escrita, posto que as práticas sociais letradas influenciam, de maneira desigual,  todos os indivíduos de uma sociedade.

Gostaríamos de dizer, por fim, que a pesquisadora Tfouni formulou e publicizou em 1994 a proposta pedagógica alfabetizar-letrando, considerando aspectos importantes como a subjetividade do educando e do educador, sua memória, as posições discursivas que podem ser ocupadas, as práticas sociais mais amplas para as quais a leitura e a escrita são necessárias e colocadas em prática, dentre outros aspectos.

Desde o ano de 2003, vimos nos dedicando ao aprimoramento da proposta.

Elaine Assolini

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