LETRAMENTO E (SOBRE)VIVÊNCIA

LETRAMENTO E (SOBRE)VIVÊNCIA

Fabiana de Oliveira Ribeiro

 

Embora “abraçar o letramento seja sempre um ato social”, como afirmava Brian Street, o maior expoente dos Novos Estudos do Letramento, vemos ainda hoje, quase três décadas depois de publicadas suas palavras, poucas mudanças na realidade pedagógica escolar, pois “currículo, metodologia e políticas públicas voltadas para a educação, sempre estarão permeadas de intenções que subjazem às relações de poder” (RIBEIRO, 2018, p. 40). Devido a isso, é comum os textos escritos serem abordados como objeto linguístico (PONTE E TERZI, 2006), porém, totalmente desvinculados dos fatores sócio-históricos de sua produção e trajeto de leitura.

Ocorrendo tal fato, notamos a presença da ideologia advinda da “grande divisão” sobrepondo os letramentos e elevando o escolar ao patamar exclusivo de garantias aos avanços e progressos econômicos, sociais em detrimento dos outros vários, presentes na sociedade. Dessa forma, “o ensino de escrita e leitura, na escola básica, está voltado, muitas vezes, para a versão do que, na 2ª Revolução Industrial, impulsionou as campanhas de alfabetização: a produção [industrial]” (RIBEIRO, 2018, p. 41), que, aplicado aos nossos dias, é uma fitada ao mero sucesso no ENEM.

Sobre isso, gostaríamos de chamar a atenção, especialmente, para o ensino da escrita, associado ao sinônimo “redação”, conforme termo usado pelo supracitado Exame, que carrega em seu bojo toda a carga de significados que representa tal prova na vida, não mais só escolar dos alunos, mas também profissional. Quando falamos em redação, principalmente, se estamos tratando do ensino médio, independente da série, o senso comum já estabelece a relação com o gênero dissertativo argumentativo, ainda que não o conheça totalmente. E como não bastasse, as escolas públicas, devido ao baixíssimo número de aulas destinadas ao ensino da língua materna, reduzem o currículo de redação, praticamente, à dissertação argumentativa mesmo, pois temem não preparar bem seus alunos nem para entrar na universidade.

Consequentemente, todos, silenciados pela ideologia capitalista, somos, até algum ponto, seduzidos pelo desejo do sucesso econômico do país e individual, dedicando-nos ao ensino e aprendizagem do gênero “redação do ENEM”, pois queremos todos na universidade, já que esse é o caminho para um bom emprego, que por sua vez renderá um (bom?) salário, capaz do sustento e satisfação dos desejos consumistas da sociedade.

É ingênuo pensar que a governamentalidade trabalha para que todos os jovens tenham acesso a uma boa formação escolar cidadã que lhes permita vidas melhores em qualidade, competências, habilidades, inclusive socioemocionais. Da mesma maneira, a manutenção das instituições, com recursos material e pessoal para formação de seres humanos, antes de profissionais, ou seja, uma educação para a sensibilidade e empatia parece apenas ficar no papel e na propaganda, uma vez que, infelizmente, é a briga pelo crescimento econômico, num injusto “vale tudo” moral que impulsiona a maioria das relações políticas.

O resultado é que, sem saber, muitas vezes, somos levados pela ideologia dominante, já que a neutralidade ideológica é um mito e, assim, não notamos o genocídio dos futuros poetas, cientistas, prêmios-Nobel, entre outros gênios em fecundação. A educação básica, dessarte, acaba assumindo um perfil tecnicista, de controle social ao invés de

[...] preocupar-se em atender as necessidades de seus alunos, no sentido de vivenciarem várias práticas sociais da leitura e da escrita, para que se tornem cidadãos capazes de influenciar nas decisões, atitudes de suas famílias e de sua comunidade, contribuindo para a construção de uma sociedade mais ativa e participante das mudanças sociais por que passa o mundo atual. (RIBEIRO, 2018, p. 41)

A Metáfora da Ecologia gerada por Barton (1994), dentro da Teoria Social do Letramento, também estabelece uma relação entre as complexas relações entre letramento e os diferentes aspectos da vida social. Nessa metáfora, da mesma forma em que os organismos biológicos relacionam-se com o meio ambiente, o letramento é visto como o “conjunto de práticas culturais cuja forma e função são formatadas pelos contextos sociais, políticos, históricos, materiais e ideológicos” (TÔRRES, 2009, p. 39). Então, ser letrado, que é mais que ser meramente alfabetizado, é ser um sujeito ativo nas práticas de escrita na sociedade, é conhecer as práticas sociais, os sentimentos, valores, atitudes e relações sociais que as compõem, mesmo não observáveis (RIBEIRO, 2018), mas que deveriam ser naturais em nosso “habitat”.

Por isso defendemos que, deveria haver o envolvimento do sujeito-aluno no maior número possível de eventos de letramento, o que proporcionaria a este, um maior número também, de práticas de letramento efetivas, dentro de atividades sociais e contextos específicos, envolvendo pessoas com suas crenças, valores culturais e ideológicos. Quando a escola, mesmo que por falta de tempo, privilegia um gênero em detrimento dos demais, está tirando do aluno a chance de introduzi-lo em diferentes letramentos e suas práticas, necessários para sua formação global de pessoa letrada.

Contudo, ao invés disso, somos obrigados a reconhecer que o letramento autônomo, aquele que valoriza as habilidades individuais, desenvolvidas independentemente de contextos culturais, continua presente no ensino da escrita, por mais que a maioria dos linguistas critiquem-na veementemente. Nesse ínterim, estamos colocando no mercado, já que este seria o grande objetivo da governamentalidade, pessoas que foram privadas de entrarem em uma condição outra, tanto social, quanto cultural, prejudicando, também, as atividades laborais. Por outro lado, quando analisamos a questão da consciência a ser manipulada, com toda a certeza, são pessoas mais vulneráveis a servir nas relações de domínio e opressão, o que talvez seja uma meta ainda maior e projeto político nacional.  

Provas disso encontramos na situação precária dos postos de trabalho que são criados no Brasil no momento em que redigimos este texto. Em matéria veiculado pelo site G1, em 12 de maio de 2022, o professor da USP, José Pastore afirma:

Eu diria que a causa fundamental dessa precariedade que temos ainda no mercado de trabalho está ligada à estrutura da nossa economia, que está toda ancorada em atividades muito simples, muito elementares, que remuneram mal e que dão muita rotatividade para os trabalhadores. Essa tendência é histórica. Agora, ultimamente, ela foi agravada pelo fato do país ter encolhido muito os investimentos. São investimentos que foram muito retraídos ao longo do tempo e que deram como resultante essa maioria de atividades muito simples, muito elementares.

Em tal realidade, os maiores afetados sempre serão os socialmente mais frágeis, diante disso nos perguntamos, como a escola pode ajudar a combater a realidade do desemprego, da informalidade trabalhista, das vagas de emprego muito elementares que remuneram mal e não dão estabilidade?  O ensino do letramento Ideológico (STREET, 2005), que é aquele que reconhece os múltiplos letramentos, em prática nos contextos reais em que a leitura e a escrita estão inseridas, pode contribuir para a emancipação do sujeito, permitindo-lhe uma comunicação efetiva com as sociedades letradas. Dessa feita, a escola, realmente, será veículo de cidadania e inclusão social, quando o ensino do letramento passar a ser tão contextualizado como ele é na realidade social (RIBEIRO, 2018, p. 41).

Desafortunadamente, para isso, dependemos, também, de políticas públicas e boa vontade dos governos em investir em educação, pesquisa, conhecimento, valorização dos profissionais ligados às escolas, campanhas publicitárias tão poderosas quanto às partidárias. Enquanto tudo isso não é feito podemos começar com o que está ao nosso alcance, não negociando nossa ética e fazendo o melhor que podemos para mudar o possível.

 

REFERÊNCIAS

RIBEIRO, Fabiana de Oliveira. A escrita na "idade mídia": aprendizagem e aprimoramento por meio da gamificação. 2018. 123f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal de Alfenas, Alfenas, MG, 2018.

TORRES, M. E. A. C. A leitura do professor em formação: o processo de engajamento em práticas ideológicas de letramento. 2009. 212f. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2009.

Qualidade das vagas novas de emprego piora no Brasil. Disponível em: https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2022/05/12/qualidade-das-vagas-novas-de-emprego-piora-no-brasil.ghtml. Acessado em 13/05/2022.

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