Mas afinal, quais são as razões do trabalho com a literatura no processo pedagógico?

Mas afinal, quais são as razões do trabalho com a literatura no processo pedagógico?

As palavras me antecedem e ultrapassam, elas me

tentam e me modificam, e se não tomo cuidado

será tarde demais: as coisas serão ditas sem eu as

ter dito. Ou pelo menos não era apenas isso. Meu

enleio vem de que um tapete é feito de tantos fios

que não posso me resignar a seguir um fio só;

meu enredamento vem de que uma história é feita

de muitas histórias. E nem todas posso contar.

(Clarice Lipector – Os desastres de Sofia)

O questionamento proposto no título deste artigo pode parecer desnecessário para muitos profissionais da educação, mas devemos reavivar a importância do trabalho com a literatura em tempos de planejamento anual nas escolas. Sabemos que estamos imersos em uma sociedade regada por interesses mercadológicos que prezam pela finalização de metas e conteúdos para justificar sua existência e lucratividade. Esse fato pode minar o trabalho pedagógico com a literatura, pois ela demanda tempo e reflexão. Na contramão do mercado.

Por se tratar de um universo artístico, portanto ficcional, a literatura é um lugar privilegiado. No entanto, é portadora de vivências e conhecimento de mundo. Podemos dizer que é a representação da vida pulsando não apenas como ela é, contudo como poderia ser, ou ainda, como deveria ser. É o encontro com o outro, com o diferente e desconhecido, com ações, emoções e subjetividades ora diversas e estranhas, ora familiares, como bem sintetiza Clarice Lispector no trecho selecionado de “Os desastres de Sofia”.  Sendo assim, podemos dizer que a literatura tem o potencial de promover um universo singular de experiências e sensações enriquecedoras capazes de gerar humanização e reflexão crítica: "[...] podemos dizer que a literatura é o sonho acordado das civilizações. Portanto, assim como não é possível haver equilíbrio psíquico sem o sonho durante o sono, talvez não haja equilíbrio social sem a literatura.” (CÂNDIDO, 2011, p. 177). Deste modo, ela é fator imprescindível de humanização e, por este motivo, confirma o homem na sua humanidade.

Na esteira desse pensamento, a literatura é constructo social, isto é, parte da memória de uma civilização. Todavia, ela pode constituir-se como importante mecanismo de alerta sobre os equívocos e atrocidades praticados pela humanidade e pode contribuir para que todos possam, entre paráfrases e polissemias, construir sentidos e dar amplitude ao trabalho de interpretação. Sendo assim, a escola não pode desconsiderar a literatura, já que é um espaço privilegiado para a construção de sentidos.

As obras artísticas que foram criadas por outras gerações ditando regras, leis, ordens, interesses de determinados grupos etc, revelam a força da literatura como uma possível forma de resistência e a busca pela equidade social. A literatura por meio da linguagem artística desempenha uma função crítico-reflexiva e é tão necessária à vida quanto a alimentação, a moradia, a educação plena, a segurança e o amor ao próximo. A literatura é instrumento que pode promover a liberdade de expressão, razão de, às vezes, promover também algum

[...] conflito entre a ideia convencional de uma literatura que eleva e edifica (segundo os padrões oficiais) e a sua poderosa força indiscriminada de iniciação na vida, com uma variada complexidade nem sempre desejada pelos educadores. Ela não corrompe nem edifica, portanto; mas, trazendo livremente em si o que chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver. (CÂNDIDO, 2011, p. 178)

E viver não é só amor e respeito, mas contempla também as desigualdades sociais latentes e muitas vezes ignoradas. O trabalho com a literatura traduz um compromisso ético com a realidade e, qualquer omissão, significa desistência da vida e da possibilidade de um mundo mais humanizado, visto que [...] “A leitura da literatura passada enriquece qualquer vocabulário vivo.” (FISCHER, 2009, p. 138)

Precisamos caminhar pela literatura devido a sua importância como um direito humano, uma necessidade universal, uma possibilidade de manifestação dos seres em todos os tempos e em todos os níveis sociais, no intuito de que sejamos capazes de analisar criticamente o mundo ao nosso redor. Entendemos que a literatura tem o poder de transformar-nos para além da escolarização.

Nesse sentido, a escola representa o espaço de socialização secundária, mediadora entre o ambiente familiar, a sociedade e ainda, “espaço por excelência de contato com o material impresso e com a literatura em particular”. (MAGNANI, 2001, p. 137) Para Assolini (2018, p. 78), o trabalho com a linguagem não deve limitar-se a “levar o aluno a dominar a língua portuguesa, mas que consista em um trabalho que observe como ele (o aluno) relaciona-se com a ordem do simbólico, isto é, com os discursos produzidos da/na escola. ”

Os professores podem realizar um trabalho não apenas de caráter informativo ou o desenvolvimento de habilidades de caráter técnico, mas sim desenvolver o processo pedagógico com o objetivo de possibilitar a leitura de um mundo mais amplo e contraditório. Como assim traz Cademartori (2012, p.53), a “[...] literatura de hoje, [...] combina elementos das culturas mais diversas e estabelece entre elas diálogos capazes de romper com a programação e o condicionamento” que insiste em presentificar-se no processo pedagógico.

Ao manter-se a ideia de estudos programados, currículos engessados ou não ter acesso ao universo da literatura, as possíveis consequências para as pessoas são dificuldades de interpretação e compreensão de si e do mundo.

No sentido de minimizar tais consequências, Cândido (2011, p. 193) declara que “uma sociedade justa pressupõe o respeito aos direitos humanos, e a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável”.

Esperamos ter argumentado sobre as razões do trabalho pedagógico com a literatura. Desejamos que os professores reflitam e analisem suas práticas a fim de contribuir com uma formação significativa de seres humanos e que não sejam apenas reféns de metas e conteúdos.

Profa. Renata Maira Tonhão Bolson

Profa. Dra. Elaine Assolini

Referências

 

ASSOLINI, F. E. P. Intérprete-Historicizado: um conceito em construção. In: Mosaico discursivo: diferentes materialidades e sentidos. Pimenta, L. A. Dornelas, C. C. (orgs). V. 2. Curitiba: CRV, 2018.

 

CÂNDIDO, A. O direito à Literatura”. In: Vários escritos. 5ª ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011. p. 171-193.

 

CADEMARTORI, L. O professor e a literatura: para pequenos, médios e grandes. 2.ª ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012. (Série Conversas com o Professor, 1)

 

FISCHER, S. R. Uma breve história da linguagem. Trad. Flávia Coimbra. Osasco, SP: Novo Século Editora, 2009.

 

LISPECTOR, C. A legião estrangeira [recurso eletrônico]. 1. ed. Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2015. Disponível em: https://lelivros.love/book/baixar-livro-a-legiao-estrangeira-clarice-lispector-em-pdf-epub-e-mobi-ou-ler-online/

 

MAGNANI, M. R. L. M. Leitura; literatura e escola. 2.ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. (Texto e linguagem)

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