MEU AMIGO NIETZSCHE: um estudo sobre o curta-metragem a partir da Análise de Discurso de matriz francesa

MEU AMIGO NIETZSCHE: um estudo sobre o curta-metragem a partir da Análise de Discurso de matriz francesa

Carolina Nakamura Silveira

Profa. Dra. Elaine Assolini

O curta-metragem de Faúston da Silva, Meu amigo Nietzsche, de 2002, conta a história do jovem menino Lucas, um migrante nordestino que vive com sua família na periferia de Brasília e apresenta dificuldades em seu aprendizado. A trama tem início com o diálogo entre Lucas e sua professora, a qual o alerta sobre a possibilidade de o garoto reprovar de ano e indica a ele ler tudo a sua volta, já que a fonte de suas notas baixas seria, segundo ela, sua dificuldade em leitura.

Seguindo o conselho de sua professora, o garoto se apropria de um livro que encontra no lixão enquanto brinca com seus colegas. O livro em questão é Assim falou Zaratustra, uma das principais obras do renomado filósofo alemão Friedrich Wilhelm Nietzsche. Lucas se depara, logo na capa, com seu primeiro desafio, qual seja, o nome do autor – para o garoto, é um amontoado de letras que não fazem sentido. Após falhar em compreender o nome do autor de seu novo livro, o garoto pede auxílio aos pais. Nesse momento, percebemos um pouco mais sobre os membros da família de Lucas: sua irmã, seu pai e sua mãe. Também nos é dada uma amostra de sua rotina, eles se reúnem para assistir ao futebol, demonstram interesse e preocupação com os estudos do garoto, mesmo que o incentivem por meio de ameaças, não existindo contribuição ou participação real nos estudos do menino, sendo a atenção voltada somente aos resultados.

Os pais de Lucas também não compreendem o nome do autor, afirmando que se trata de uma palavra em inglês. “Mas dentro do livro está escrito em brasileiro, fala sobre super-homem” (MEU..., 2012, on-line), afirma o garoto, ao que sua mãe responde: “Pois é, e o super-homem é estrangeiro” (MEU..., 2012, on-line). Nesse primeiro momento é possível constatar que tanto Lucas quanto sua mãe, relacionam a palavra super-homem ao super-herói fictício da DC Comics – personagem conhecido por eles –, e não à ideia de superação humana trabalhada por Nietzsche.

Assolini (1999) introduz a noção de que, a partir de Pêcheux (1995), nas teorias de Análise de Discurso de matriz francesa (AD) compreende-se a subjetividade como parte da composição de um discurso, em que o indivíduo cria sentidos a partir de si e do que conhece sobre o mundo a sua volta.

 

Apresentemos, primeiramente, o princípio teórico fundamental para a A.D.: a consideração de que há uma relação entre linguagem e exterioridade, que é constitutiva. Essa é uma relação orgânica, e não meramente adjetiva, supérflua. Dessa forma, os interlocutores, a situação, o contexto histórico-social, ideológico, isto é, as condições de produção, não são meros complementos, pois eles constituem, segundo Pêcheux (1995), o sentido da seqüência verbal produzida (ASSOLINI, 1999, p. 22).

 

 Assolini (2003) descarta, a partir de conceitos de Orlandi (1987), a ideia da língua como algo puro e imutável, afirmando que as interferências feitas pelos sujeitos – os quais significam as palavras de acordo com a sua realidade – são fundamentais para a formação dessa. Ao mesmo tempo que a linguagem é significada pelo sujeito, o sujeito se significa nesse processo por meio de sua percepção. Pode-se dizer que o discurso é formado a partir da visão do sujeito em relação ao mundo diante do que o mundo fez dele, ou seja, as influências externas às quais foi submetido, os conhecimentos que possui, seu ambiente social e interações com seu meio.

 Assolini (2003) explica que, diferentemente da linguística, dentro da AD a língua “é tomada enquanto ordem significante, capaz de equívoco, de deslize, de falha”, sendo a língua e suas linguagens algo muito além de uma forma de comunicação, código ou registro. A língua depende da falha, assim como de ideologias e de sujeitos – a ideologia constitui os sujeitos que, por sua vez, formam e reproduzem ideologias e cometem falhas, encerrando um ciclo, tal como a Fita de Möbius.

 

Dessa forma, destacamos que os sentidos não estão predeterminados por propriedades da língua. Dependem de relações constituídas nas/pelas formações discursivas. É pela referência à formação discursiva que podemos compreender, no funcionamento discursivo, os diferentes sentidos. Palavras iguais podem significar diferentemente porque se inscrevem em formações discursivas diferentes (ASSOLINI, 2003, p. 51).

 

Na trama, Lucas segue perguntando às pessoas a sua volta qual o significado da palavra misteriosa gravada na capa de seu livro e, vencido pelo cansaço de não encontrar quem a compreendesse, joga o livro fora em um carrinho de mão de coleta de recicláveis. O senhor dono do carrinho o intercepta e incentiva o garoto a ler o livro. Lucas explica que sequer compreende o que há na capa, mas o senhor pronuncia a palavra “Nietzsche”, explicando que se trata do nome do autor da obra e que o mesmo tem esse nome por ser do Nordeste da Europa, mais precisamente da Alemanha. Lucas imediatamente retoma seu interesse, já que relaciona a Alemanha à liga de futebol e o Nordeste à sua região de origem, o dono do carrinho dá ao garoto a falsa promessa de que o livro trata sobre futebol, mas só na última página, e prossegue dizendo que, caso não entenda alguma palavra, pergunte a outras pessoas.

Assim, Lucas retoma sua leitura, questionando a todos que vê sobre as palavras que não compreende, a subjetividade aparece também nesses momentos, tal como quando o garoto pergunta a uma senhora o significado de aurora e essa afirma se tratar do nome de sua vizinha, ou mesmo ao questionar o pastor de sua igreja sobre qual o significado de santo. Esse, apesar de explicar a definição da palavra separadamente, também introduz ao garoto a ideia religiosa não associada aos pecados. Podemos afirmar, com isso, que “o gesto de interpretação é o lugar em que se tem a relação do sujeito com a língua. Esta é a marca da ‘subjetivação’; o traço da língua com a exterioridade” (ORLANDI, 1996, p. 46 apud ASSOLINI, 2003, p. 72).

A partir de sua leitura, Lucas passa por um processo de superação de si, as notas do garoto melhoram significativamente, mas também cresce um certo receio por parte dos adultos em relação a ele, pois Lucas, que antes era visto como vítima do fracasso escolar, passa a ser reconhecido como ameaça à ordem social em que se encontra.

 

Notamos em Nietzsche que a superação de si, isto é, o ir além, depende da obrigação de varrer para longe toda forma de tirania, seja ela vinda do conhecimento, da moral escrava ou da fé metafísica (NIETZSCHE, 2008). O ir além significa a afirmação de uma vontade de criar, uma nova moral capaz de rejeitar a reatividade e o ressentimento, assumindo a tarefa de decretar a morte do Deus severo, punitivo e salvador, para celebrar a alegria, a expansão de si mesmo, assumindo a crença no corpo, no instinto, na liberdade, na transmutação do espírito (CAIRO, 2013, p. 88).

 

A libertação de Lucas – e, em consequência, a mudança acerca de como é visto por seus pares – é percebida em situações tais como aquela em que, ao perguntar para sua mãe se Deus está morto, ele é levado à igreja para ser exorcizado. Outro exemplo se dá quando sua professora se refere a ele como uma “dinamite” ao vê-lo incentivando seus colegas a partir de um discurso sobre a superação do humano, durante o intervalo da aula. Com isso, percebemos que o curta-metragem mostra a progressão do menino, que passa a ver outro sentido na palavra composta “super-homem”, não relacionando-a mais somente ao herói dos quadrinhos e das telas de cinema. Além disso nota-se que ele principia um processo de tornar-se o super-homem percebido por Nietzsche.

A conclusão da trama se dá com a mãe do menino jogando seu querido livro fora, fazendo com que Lucas volte ao lixão para procurar Assim falou Zaratustra, o qual já havia lido três vezes e pretendia reler quantas fossem necessárias para extrair mais conhecimento da obra. Porém, no lixão, dessa vez, encontra o Manifesto comunista, de Karl Marx, já iniciando sua leitura, o que transmite a ideia de que Lucas seguirá buscando por conhecimento e cada vez mais questionará o mundo a sua volta.

Referências

ASSOLINI, F. E. P. Interpretação e letramento: os pilares de sustentação da autoria. 2003. 269 f. Tese (Doutorado em Ciências – Área Psicologia) – Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2003.

ASSOLINI, F. E. P. Pedagogia da leitura parafrástica. 1999. 236 f. Dissertação (Mestrado em Ciências – Área Psicologia) – Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 1999.

CAIRO, C. B. O nascimento de um super-homem – linguagem e subjetividade em “Meu amigo Nietzsche”. Linguagem – Estudos e Pesquisas, Catalão - GO, v. 17, n. 2, p. 81-99, jul./dez. 2013.

MEU amigo Nietzsche. Direção: Faúston da Silva. 2012. 15 min. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=FroyMvgYfm0>. Acesso em: 13 abr. 2020.

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