A NARRATIVA ESCRITA NA EDUCAÇÃO BÁSICA: RECURSO PARA A ESCRITA DE SI

A NARRATIVA ESCRITA NA EDUCAÇÃO BÁSICA: RECURSO PARA A ESCRITA DE SI

Quando pensamos em construção de narrativas em sala de aula, logo visualizamos as construções de textos propostos pelo professor em início do ano letivo, em avaliações mensais e bimestrais, para cumprir o currículo ou as exigências do livro didático. Esta postura faz com que as narrativas escritas sejam instrumentos de avaliação, cujo objetivo é “sondar” se o aluno sabe ou não e como classificá-los.

No entanto, pesquisas apoiadas na Análise de Discurso de matriz francesa, na Psicanálise freudo-lacaniana e na Teoria Sócio Histórica do Letramento apontam que as narrativas escritas podem guardar, além do exigido pela escola, segredos de quem a escreve, ou seja, em seu entremeio poderá conter de forma disfarçada, uma auto narrativa, uma escrita de si. Uma criança, quando conta algo, inconscientemente fala de si. Por mais que uma narrativa possa aparecer neutra e condizente com o solicitado em sala, encontramos rastros, marcas do sujeito. Em alguns momentos, essas marcas, esses rastros na narrativa podem ser evidentes como os atos falhos, as repetições e trocas de palavras. Os menos evidentes são as recusas tênues, que visam evitar outras interpretações de quem lê, diferente da pretendida por quem a escreve. A narrativa para essas teorias é um instrumento capaz de oferecer ao sujeito uma escuta que beneficia o inconsciente, materializando a subjetividade através de narração do passado no presente, para um possível leitor ou ouvinte, fazendo levar sua mensagem.

Lacan (1949) afirma que recebemos mensagens em forma invertida, como um espelho, no qual nomeou de Estádio do Espelho. Essa “fase” tem início bem cedo e causa estranhamento de nossa parte em relação a nós mesmos, o que nos instala ao lado da dúvida e não da certeza. Esse conflito, que é constitutivo do sujeito, poderá se materializar em palavras que muitas vezes dizem coisas que não pretendíamos, até mesmo ao contrário do que conscientemente queríamos dizer.

Assim, em uma narrativa, o estudante cria um espaço de escuta, de reflexão de seu desejo, sobre o que lhe falta (CARREIRA, 2002) um lugar discursivo com possibilidades de tropeço e de elaboração, onde podem misturar ficção com elementos de sua vida e, com isso, falar de emoções, desejos, frustrações sob proteção de figuras imaginárias, fictícias. A ficção dentro de uma narrativa, vem no lugar de um fato, atribuindo-lhe sentido, que pode ser verdade ou ficção. Verdade pois fala de si, ficção porque fala de si utilizando outros cenários e outros personagens. Dessa forma, a ficção torna-se um recurso para que os estudantes falem de assuntos importantes e incômodos por meio da criação de personagens, de metáforas, tramas construídas com fundo de verdade, sem exposição direta.

As narrativas infantis tomadas como cumprimento de normas e metas escolares promovem um apagamento do sujeito em sua singularidade, uma falta de oportunidade para que seja visto, notado nos entremeios de seus escritos. O educador, envolvido com as exigências do currículo embebido de métodos e conteúdo de ensino, não percebe o sujeito camuflado nas histórias, pedindo para ser visto, ouvido/lido.

Foucault (1982) afirma que o “si” vai de encontro a uma atividade de escrita constante e é algo sobre o qual há assunto a escrever. Escrever sobre si é uma tradição antiga pouco valorizada e percebida pela escola que, como Aparelho Ideológico do Estado, favorece somente o que está lá, posto, perpetuado e legitimado pela ideologia dominante, sem abertura para o novo, inesperado, para a (re) formulação dos sujeitos. As narrativas escritas, olhadas e sentidas pela perspectiva da (re) formulação de quem a escreve e propostas em condições favoráveis de produção, possibilita ao estudante atribuir e produzir sentidos a partir de sua memória discursiva, (re) significando sentimentos, emoções, frustrações, desejos. Segundo Kupfer (2013) quando o educador se posiciona a serviço do sujeito, abandona técnicas e metodologias, renuncia à preocupação excessiva com métodos e conteúdos estritos, fechados e inquestionáveis em prol de uma nova relação, de um novo olhar para seu aluno. Descobre-se, então, que não há e nunca houve fronteiras entre professor e aluno e, sim, equívocos nas relações.

As narrativas infantis tomadas como momento de reformulação e ressignificação, podem dar abertura a perguntas, relatos de experiência, exposição de dúvidas e angústias, uma alternativa para falarem de si e expressarem sua subjetividade mesmo que de maneira disfarçada. As narrativas podem auxiliar os estudantes a efetuarem sozinhos ou com auxílio de outros, certo número de operações sobre seus corpos e almas, seus pensamentos, suas condutas, seus modos de ser e de se transformarem, a fim de atender certo estado de felicidade, de pureza, de sabedoria, de perfeição ou de imortalidade (FOUCAULT, 1982, p. 82).

 

JOSIANE AP. DE PAULA BARTOLOMEU

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