O empobrecimento da dimensão da experiência do “tempo” na contemporaneidade

O empobrecimento da dimensão da experiência do “tempo” na contemporaneidade

De autoria do escritor Guimarães Rosa, por quem tenho grande admiração, há uma frase instigante que revela nosso cotidiano – “O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem” (1994, p. 449).

Sabemos que cada época possui suas características peculiares. Essas, por sua vez, são sempre determinadas por condições de possibilidades específicas de seu tempo. Vivemos em um mundo em constante transformação de tal forma que as mudanças acontecem em uma velocidade incrível, portanto, a valorização de cada momento possibilita-nos otimizar ou não o tempo e fazer com que cada experiência seja significativa.

O tempo é um movimento de múltiplas faces, características e ritmos que, em relação à vida humana, implica durações, rupturas, convenções, representações coletivas, simultaneidades, continuidades, descontinuidades e sensações (a demora, a lentidão, a rapidez). Em outras palavras, é um processo em eterno curso e em permanente devir. É justamente o tempo que marca as lembranças do passado, nos permite viver o presente e prospectar o futuro. É o olhar do homem no e através do tempo que traceja/viceja sua própria história de vida, construída a partir de suas visões e representações das diferentes temporalidades e acontecimentos que se transformam em experiências. A singularidade dessas experiências constitui o substrato da marca do tempo.

Como dar-se um tempo na contemporaneidade se, a cada segundo, somos confrontados com a rapidez imediata que nos converte, similarmente a uma engrenagem, em autômatos com produção em série, em que a técnica sobrepõe-se à dimensão orgânica das relações, mutilando a rica experiência com o tempo a ser dado a si mesmo, inventando-se, ressignificando-se, transformando esse eu que anseia, talvez, um tempo concebido devir por afigurar-se como obra de arte?

É a noção de tempo de espera que vai marcar a própria origem da constituição do psiquismo, pois é no espaço da falta, no postergar da satisfação que o sujeito se estrutura. Sendo assim, esse sujeito de experiência se organiza a partir de um princípio de tempo para a transformação, de um modo de ação, possibilitando a si mesmo um vir a ser. A possibilidade de desdobrar-se é a experiência que se abre a transformações e o lugar onde, uma vez aberto, torna possível a ascensão tanto ao outro quanto ao exterior. Lugar esse em que os sujeitos se autorizam a “emergirem outros”. O eu múltiplo, finalmente, é um acontecimento que se constitui por meio da experiência. Assim, percebemos que a experiência torna acessível um campo de possibilidades à abertura para ser de outro modo.

A experiência, como afirma Larrosa (2002, p. 24), é um lugar em que nos chegam as coisas, “um lugar que recebe o que chega e que, ao receber, lhe dá lugar”, sendo que de cada sujeito decorreria um sentido particular, próprio, exclusivo e, por isso mesmo, uma outra forma de opor-se, propor-se, impor-se e expor-se. Ainda em Larrosa (2002, p. 21) encontramos que a

 

experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. Dir-se-ia que tudo o que se passa está organizado para que nada nos aconteça. Walter Benjamin, em um texto célebre, já observava a pobreza de experiências que caracteriza o nosso mundo. Nunca se passaram tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais rara.

 

O que temos presenciado na contemporaneidade é o empobrecimento da dimensão da experiência do tempo, que Benjamin (2012b) denuncia, de certa forma, como advindo do fato de vivermos em um tempo controlado/cronometrado, contado em números, em referência à produtividade, sem restar quase nenhum espaço/tempo para o ócio. Segundo Benjamim (2012b, p. 219), “a cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes”. A experiência deve contemplar um tempo atemporal, tempo sem tempo, dentro do tempo; ela capta o que há de eterno no efêmero, o que há de total no parcial, superando, assim, a distância que separa o presente do passado. Para o autor, a dimensão da experiência é incompatível tanto com a temporalidade veloz quanto com a sobrecarga de solicitações/informações que recaem sobre os seres humanos. Essa é a posição em que nos encontramos em relação ao tempo desde a Modernidade – um tempo esvaziado de sua dimensão subjetiva, uma sequência de acontecimentos com os quais se deve lidar de forma eficaz. Nesse cenário carcomido, não há tempo para que os sujeitos possam elaborar suas vivências, para que elas decantem e se tornem experiência (GURSKI, 2012).

O esvaziamento da dimensão da experiência estaria associado ao modo como se dá a transmissão das memórias[1] do passado e da própria experiência. Nesse sentido, como as condições atuais do laço social podem predispor o sujeito a uma restrição aos elos do passado e da memória, impactando os modos de representação, os registros e, portanto, a constituição psíquica desse sujeito? Questionamos também em que condições o laço social na contemporaneidade – marcada por uma sociedade onde as relações são fluidas – não estaria comprometido em relação à experiência do tempo de compreender, tão importante e tão necessário como suporte à operação psíquica.

 

[...] qual o valor de todo nosso patrimônio cultural, se a experiência não mais o vincula a nós? A horrível mixórdia de estilos e concepções do mundo do século passado mostrou-nos com tanta clareza aonde esses valores culturais podem nos conduzir, quando a experiência nos é subtraída, hipócrita ou sorrateiramente, que é hoje em dia uma prova de honradez confessar nossa pobreza. [...] Surge assim uma nova barbárie (BENJAMIN, 2012a, p. 124-125).

 

Percebe-se, no sujeito contemporâneo, que há um certo encolhimento da experiência do tempo de compreender e, em consequência, o empobrecimento do campo simbólico. Esse encolhimento nos leva a pensar sobre uma possível ou imperceptível passagem direta do tempo de ver para o tempo de concluir, deixando um gap – um tempo esvaziado de sua dimensão subjetiva, levando o sujeito a uma posição de escassez acerca de si. Nesse empobrecimento de si pode ocorrer o apagamento do sujeito do Desejo[2], onde se instala uma espécie de superficialidade que se multiplica nos laços dos sujeitos contemporâneos. 

Além do instante, do tempo e do momento, talvez possa surgir um tempo intervalar em que seja possível evocar o espaço da experiência como espaço de elaboração de si, uma vontade/coragem de ressignificar-se nessa elaboração de si, como bem nos recomenda Guimarães Rosa!

Profa. Ma. Leny Pimenta

Profa. Dra. Elaine Assolini

Referências

BENJAMIN, W. Experiência e pobreza. In: Benjamin, W. Obras escolhidas I: magia, técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 2012a. p. 114-119.

BENJAMIN, W. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Benjamin, W. Obras escolhidas I: magia, técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 2012b. p. 197-221.

GURSKI, R. Três ensaios sobre juventude e violência. São Paulo: Escuta, 2012.

LARROSA, J. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Revista Brasileira de Educação, n. 19, jan./abr. 2002.

ROSA, J. G. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

 


[1] Memórias como possibilidades de emprestar múltiplos sentidos ao vivido, (re)desenhando um horizonte simbólico de representações.

[2] Tomamos aqui o Desejo a partir de Lacan, para quem o Desejo do sujeito é sempre o Desejo do Outro – compreendemos que é a condição de alienação no Desejo do Outro parental e social que fará com que se constitua um sujeito no sentido psicanalítico.

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