O ESPETÁCULO MIDIÁTICO

O ESPETÁCULO MIDIÁTICO

“Agora, o critério da verdade é a imagem que se apossa da vídeosfera: uma foto será mais “crível” do que uma figura, e uma fita de vídeo do que um bom discurso” (BUCCI, Eugênio, Videologias). 

  No debate sobre a pós-modernidade, certas concepções se destacam e podem ser tomadas como referência. Dizem respeito às caracterizações da sociedade da imagem e da sociedade do conhecimento. Na primeira, considera-se que vivemos em uma cultura dominada por imagens, onde a mídia tem um papel fundamental na produção de narrativas que criam um universo de ilusão. O "espetáculo" midiático atinge as diversas esferas sociais, produzindo uma "realidade à parte" ou o "hiper-real", segundo a expressão de Baudrillard (1997), coleção de cópias cujos originais foram perdidos ou, dito de outra forma, onde o referente vivido pelos homens desapareceu. Tudo vira espetáculo, tanto os conflitos afetivos, familiares e de vizinhança das populações pobres pacificadas pelo Ratinho quanto as peripécias sexuais de Bill Clinton. O subtítulo do Fantástico, o show da vida, é muito apropriado como atestado da miragem eletrônica.

 A sociedade do conhecimento é vista pela disseminação do conhecimento a todos os planos da vida social e a filtragem de informação relevante nas rotinas e no cotidiano. A aspiração de que através da razão os homens controlariam seu destino e alcançariam a felicidade derivou para um mundo fora de controle, processo de amplas conseqüências sobre a economia, a política, a cultura e a subjetividade. Essas idéias não seriam tão fecundas se não tivessem atravessado o debate sobre a pós-modernidade.

Os antecedentes do conceito de sociedade da imagem remontam à década de 1960 na França através das formulações pioneiras de Guy Debord, o visionário cineasta, filósofo e militante político. Debord (1997) sustentava que a onipresença dos meios de comunicação de massa e suas encenações espetaculares ampliavam a coisificação e a reificação. Posteriormente, Baudrillard (op. cit.) adicionou que a "produção de realidade", a partir de narrativas midiáticas, criava um mundo de "simulacro" que dispensava a experiência vivida.

O fenômeno é por demais conhecido, mas vale a pena repetir: a guerra do Golfo e as investidas militares anglo-americanas contra o Iraque foram assistidas ao vivo como um jogo de vídeo-game. Não se viu sangue nem a vivência do horror da guerra, no máximo imaginaram-se tragédias. A atmosfera de ‘limpeza’, ‘assepsia’ e ‘espetáculo’ permitiu um estado de suspensão com relação à morte e à destruição. Parece uma "lição de comunicação" aprendida da guerra do Vietnam, onde a presença da imprensa no campo de batalha teve importante papel sobre a opinião pública norte-americana e internacional, com influências sobre a negociação política e as possibilidades de paz. Quando a guerra vira um espetáculo, uma "realidade à parte", a consciência do espectador é convidada a entrar em regiões estranhas de cognição.

  A sociedade da imagem e a indispensável onipresença da mídia é o ambiente em que se processa uma nova expansão do capitalismo. Segundo Jameson, assim como a industrialização e a urbanização mudaram o ritmo e as feições da vida no século XIX, as linguagens midiáticas alteraram decisivamente os modos de vida atuais. A cultura baseada na imagem, dispondo de meios como a televisão, os computadores, a publicidade etc., suplantou a cultura literária anteriormente predominante. O que se vê é a "estetização da realidade" (expressão que Jameson toma emprestado de Walter Benjamin) em que a arte se mistura indissoluvelmente à compra e venda de produtos através da criação de narrativas que favorecem investimentos imaginários e libidinais dos consumidores em torno das mercadorias.

 Nas palavras de Guy Debord (1997), proferidas há trinta anos, "a imagem é a forma final da reificação" ou derradeira realização do capital, fundamento da sociedade da imagem ou do espetáculo. A estetização da realidade promove a colonização do inconsciente e da natureza pelo mercado, processo indissociado do pós-modernismo considerado por Jameson a lógica cultural do capitalismo tardio. Enquanto o modernismo e suas vanguardas exprimiam a ambigüidade da exaltação da novidade permanente e do desconforto com relação ao mundo das mercadorias, o pós-modernismo revela uma nova dinâmica da sociedade:

As transformações no sistema, que se estendem à cultura e ao cotidiano, são mudanças no âmbito do próprio modo de produção. O imaginário, as pulsões da intimidade, as maneiras de ser e os sentimentos foram incorporados ao universo das mercadorias através de narrativas estéticas e da cultura. A utilização dos termos "fusão" e "eclipse" para tratar da relação entre a base e as superestruturas busca ressaltar que, mesmo que não tenham sido quebradas as relações sociais que constituíram o capitalismo e a modernidade, a cultura atual faz mover o capitalismo segundo padrões não observados anteriormente na história. A dilatação da esfera da mercadoria, na qual a mídia é imprescindível, evidencia uma "desdiferenciação" (o termo é de Jameson) entre a economia e a cultura que acompanha o pós-modernismo enquanto atmosfera cultural do capitalismo tardio. Ou ainda, segundo outra expressão utilizada por Jameson, uma "revolução cultural" no próprio modo de produção.

O fluxo ininterrupto de imagens está em todo lugar e os enredos dos meios de comunicação de massa produzem um "real" (ou hiper-real) que substitui a vida pelo que ocorre a partir dos monitores. Em A rosa púrpura do Cairo, de Woody Allen, personagens entram e saem da tela na busca louca de satisfação de seus desejos de romance. O "filme" da sociedade contemporânea talvez seja ainda mais fantasioso. Jameson (1996), marxista norte-americano proveniente da crítica literária,  assim como Debord, Baudrillard e outros,  sugere que as multidões entraram na tela e de lá não mais saíram. Nessa mesma linha de reflexão, Umberto Eco salienta, a propósito da Disneylândia, que o "Falso Absoluto" lá canonizado é uma metáfora de toda a América, cheia de cidades que imitam cidades.

Uma publicidade recente de um aparelho de televisão de tela plana mostra uma cena em que, pela absoluta indistinção entre imagem e realidade, animais da selva africana entram dentro do monitor e lá são aprisionados pelos componentes de uma tribo através do controle remoto. Ao final, vê-se o televisor suspenso numa vara apoiada nos ombros de seus ‘caçadores’, como estes habitualmente carregam suas presas. Em outro exemplo, no enredo do filme publicitário do mesmo produto de uma firma concorrente, vê-se pela janela do interior de uma casa um trem aproximando-se em alta velocidade enquanto uma mulher arruma a sala ajudada por sua filhinha. No momento imediatamente anterior ao choque do trem com a casa, a moça desliga o ‘monitor-janela’ e rende o espectador à indistinção entre a imagem e o real pela ‘perfeição’ tecnológica. Essas peças publicitárias são extremamente expressivas dos mecanismos vigentes na sociedade do espetáculo. A cultura pós-moderna, segundo Jameson, interfere profundamente na cognição e na constituição da subjetividade: produz-se assim "tipos de pessoas" que incorporam em seu cotidiano a substituição da realidade pelo espetáculo. Fábulas e oferendas midiáticas como essas compõem a colonização do inconsciente. Teleassistir passivamente é preciso, viver não é preciso.

Elaine Assolini

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