O GAMBITO DA RAINHA E SEUS CONTRIBUTOS PARA A EDUCAÇÃO

O GAMBITO DA RAINHA E SEUS CONTRIBUTOS PARA A EDUCAÇÃO

Daniela Cristina Rubi Brecci[1]

Elaine Paiva Assolini
 

O Gambito da Rainha (The Queen’s Gambit), minissérie produzida por Scott Frank e transmitida na plataforma Netflix, tem atraído a atenção de muitos, alcançando marcas significativas, tanto pelo número exponencial de expectadores, quanto por seu impacto socioeconômico. Visto por mais de 62 milhões de assinantes, a maior marca da história dessa plataforma de filmes, foi capaz de surpreender pelo modo como atraiu o público para o universo do xadrez, esporte visto muitas vezes como algo complexo e reservado para poucos. O aumento das buscas no Google por “como jogar xadrez”, a expansão no número de registros em sites de jogos online ligados ao esporte e o crescimento nas vendas de tabuleiros de xadrez e acessórios em diversos países, na mesma semana em que a série teve sua estreia, despertou a atenção da mídia.

Baseada no romance homônimo escrito por Walter Tevis, publicado em 1983, a trama gira em torno da vida de Elizabeth Harmon, protagonista interpretada por Isla Johnston (Beth criança) e Anya Taylor-Joy (Beth jovem e adulta), jovem órfã que, entre perdas e traumas, destaca-se como garota prodígio num esporte essencialmente praticado por homens, nas décadas de 50 e 60. A cada episódio, somos convidados a descobrir um pouco mais acerca do passado de Beth e a acompanhar sua luta contra os vícios enquanto busca conquistar o auge da carreira no esporte. As contradições vividas pela personagem, os benefícios do xadrez, a adoção, e até mesmo os aspectos cenográficos realistas na gravação da minissérie seriam de grande valor e importância, porém, pretendemos neste momento nos ater ao processo educacional vivido por Beth e, para tanto, manteremos nosso foco nos dois primeiros episódios da minissérie.

Quais os contributos da minissérie para o âmbito educacional?

Logo no primeiro episódio, deparamo-nos com a pequena Beth Harmon, aos nove anos órfã e institucionalizada. Diante desse contexto, o educador atento logo lembra de outras crianças como ela, presentes em sua sala de aula e com suas mais adversas condições. Como auxiliá-las nesse processo? O educador, muitas vezes, vê-se impotente e um tanto confuso sobre seu papel no “plano de redenção” da vida do sujeito que lhe foi confiado. Tal situação nos traz à memória os escritos de Charlot[2], quando em seu artigo faz referência às contradições vividas pelo professor na sociedade contemporânea, especialmente a que trata do “professor herói ou professor vítima?”, esclarecendo sobre os discursos heroicos que subsistem nas professoras, visto que satisfazem a “parte do sonho” e possibilitam que “aguentem” as condições desafiadoras que a profissão lhes impõe.

Se por um lado temos a reflexão acerca do papel do professor, de outro encontramos um caminho para a análise a respeito da educação personalizada e não massificadora que o sujeito aluno necessita, e a consideração pelo letramento, anterior ao ensino institucional. Quando Beth Harmon passa pelas portas da fria instituição, embora seja acolhida com afeto pela diretora, a Sra. Deardorff, e por seus subordinados, inicia-se ali um processo de desconstrução de sua identidade, desconsideração por suas dores e desejos e por seus conhecimentos prévios, simbolizados na queima de seu vestido, no corte dos cabelos, na uniformização, nas filas para o recebimento de cápsulas tranquilizantes, modo homogêneo de caminhar e falar...

Apesar de Beth contar com oportunidades de aprendizado formal por meio de professores socialmente reconhecidos como aptos a ensiná-la, foi nos porões da instituição e na companhia do zelador, Sr. Shaibel, que Beth encontrou para si um caminho mais interessante. Evidenciando tal contraste, a minissérie possibilita a observação das diferentes configurações, sejam elas relacionadas ao ambiente de ensino e as disposições das carteiras ou até mesmo na metodologia de ensino utilizada. Quais são os requisitos para que o ensino e a aprendizagem ocorram satisfatoriamente? Qual o melhor método de ensino? São indagações como essas que a minissérie nos possibilita perscrutar, e, a partir delas, esboçamos a seguinte sequência didática, observada no processo de ensino utilizado pelo zelador.

1. Curiosidade

2. Observação

3. Apelo

4. Argumentação

5. Nova busca pelo saber

6. Desafios

7. Treinos

8. Vivências

9. Celebração da aprendizagem

10. Novos horizontes: para além dos muros institucionais

Tais etapas seriam úteis para a reflexão sobre a prática docente? Em um primeiro momento, Beth não faz ideia do que seja seu objeto de estudo. Ele está diante dos seus olhos, porém não há referências acerca de suas especificidades. O olhar atento do educador sobre o objeto atrai o olhar do estudante, instigando-o à curiosidade. O segundo encontro entre professor e aluno acontece e a observação traz respostas e supre as carências iniciais de entendimento. Do simples ao complexo, a observação do aluno proporciona o alcance de habilidades essenciais — e não seriam estes os primeiros passos do aprender e do ensinar?

Conhecimento do tabuleiro

Posição das peças

O que vemos a seguir é o apelo da estudante para que possa entrar no processo de ensino e aprendizado:

- Como se chama esse jogo? Quero saber o que você está jogando.
- Se chama Xadrez.
- Você pode me ensinar?
- Não jogo com estranhos.

Que professor recusa o ensino de um aluno interessado? No entanto, podemos considerar que esse primeiro obstáculo possa ter servido como combustível no interesse da menina pelo saber. Ao mesmo tempo, podemos analisar as barreiras que foram evidenciadas para, posteriormente, serem rompidas no inconsciente do sujeito professor, pois quantas vezes nos vemos diante de obstáculos internos que interferem na prática pedagógica e são percebidas somente quando verbalizamos a respeito deles? Eis aí alguns dos contributos da psicanálise para a educação. O exercício de talking cure[3] entre professor e aluno certamente curou a ambos, pouco a pouco. O que ocorre, em seguida, é a exposição dos argumentos do aluno sedento pelo conhecimento, diante da resistência oferecida pelo “professor”.

- Eu não sou uma estranha. Eu moro aqui. Eu até sei jogar um pouco... só de olhar.
- Meninas não jogam xadrez.
(Segunda barreira.)
- Essa se move pra baixo e pra cima ou pra trás e pra frente... (Provo que sou capaz.)
- E essa aqui?
- Só na diagonal...
- Vamos jogar. Eu jogo com as brancas.

(Incerteza de Beth, demonstrando um certo medo do desconhecido.)

- Agora ou nunca.

A pequena Beth demonstra que sua sede de saber é suficiente para confrontar as barreiras iniciais impostas por seu “mestre”, e confirma isso ao enfrentar a segunda barreira, desta vez, social, utilizando o argumento da demonstração de suas habilidades. Por meio da observação realizada anteriormente, Beth foi capaz de aprender os movimentos das peças mesmo que ninguém tenha lhe ensinado formalmente. O zelador, então, desafia-a, dando-lhe a oportunidade de demonstrar seus saberes de modo efetivo. Uma nova etapa do ensino é iniciada:

- Isso se chama mate do pastor.
- Como se faz?
- Hoje não.
- Mostra pra mim!
- Não hoje.

À medida em que o “professor” prossegue ensinando, novos desafios lhe são impostos também. O “hoje não” utilizado pelo Sr. Shaibel possibilita algumas interpretações. “Hoje não”, pois não tenho tempo? “Hoje não”, pois não sei ao certo como explicar? Ou “Hoje não”, porque não quero lhe dar todas as respostas a fim de despertá-la a querer saber mais e mais?

Quais são os nossos “hoje não” como professores? Quais são os nossos “hoje não” como pais educadores?

Nas cenas seguintes, vemos Beth enfrentando seus primeiros erros, chamados de gafes no mundo enxadrístico.

- Você desiste agora menina.
- Desisto?
- Sim, quando você perde a dama desse jeito.

(Beth, então, insulta o “professor” da mesma forma que presenciou uma garota fazer.)

Talvez não soubesse, mas o Sr. Shaibel estava ensinando a Beth muito mais do que as lições do xadrez. Eram lições para a vida. Não havia lágrimas nos olhos de Beth, embora houvesse inúmeros motivos para evidenciar sua dor e fraqueza. “Desistir” no xadrez era uma lição sobre a possibilidade de demonstrar sua vulnerabilidade, comum a todos os seres humanos.

Sabemos que o professor, na sociedade, além de ensinar Língua Portuguesa, Matemática, Ciência e outros componentes curriculares, exerce também a função e o papel de educador, sendo inegável sua influência no desenvolvimento socioemocional do estudante, mesmo que ele, o professor, não se dê conta disso. Como bem nos ensina Nóvoa (1992), não há como separar o " eu profissional" do " eu pessoal" na vida dos professores. Portanto, um pouco ou muito de nós (gestos, tom de voz, valores, princípios, didática, maneira de conduzir os desafios) sempre fica na memória de nossos alunos.

Diante da afronta, a porta do saber se tranca e Beth perde o acesso ao local do ensino, ao objeto de estudo e ao seu mestre. Outra lição é vivenciada por ela. Quanto vale para mim, sujeito aluno, um professor? As cenas evidenciam a tristeza pela distância entre professor e aluna. Treino solitário. Vitória solitária. Com a porta trancada, a menina busca por outras portas abertas, encontrando ali outros “saberes” até que haja uma nova oportunidade.

Agora sim. Tabuleiro pronto, professor pronto, aluna pronta. A porta é reaberta, desvendando um caminho para o perdão, após reflexão de ambos, e uma partida de xadrez inaugura um novo tempo de aprendizado. O professor, então, nota o desenvolvimento de sua aprendiz.

- Está se gabando?
- Não estou.
- Foi quase.
- Mesmo assim, venci.
- Poderia ter me vencido antes.

Com a vitória de Beth, outros novos desafios são trazidos à mesa, e o professor se doa, se entrega, e às vezes sofre, ao mesmo tempo em que percebe que a estudante está superando-o em seu saber.

- Tá irritado?
- Não estou irritado. Jogue!

Enquanto novas estratégias são utilizadas no xadrez, percebemos também o uso de novas estratégias na vida de Beth, e a relação com o título da minissérie começa a fazer sentido. Beth está amadurecendo e se tornando a “Rainha”, vencendo e surpreendendo. A “Dama” tão admirada no tabuleiro por sua capacidade de transitar com elegância entre uma casa e outra é a representação de Beth, menina que aprendeu a transitar entre os desafios de sua jornada.

A aprendizagem é coroada por uma celebração, e Beth é presenteada por seu professor com um livro para o aperfeiçoamento de suas habilidades e competências - o passaporte para alçar outros e mais altos voos. O professor admirado, então, enfrenta suas contradições internas: se, por um lado, alegra-se, por outro, está triste. Não é mais tão necessário quanto antes, e a menina Beth está crescendo na vida e no tabuleiro. Agora, outros horizontes a aguardam e a coragem que a vida lhe impôs lhe ensinará também a coragem devida para enfrentar os torneios que virão.

- Eu me senti bem. Nunca tinha vencido nada antes. – disse Beth, enquanto contava ao seu professor como foi vencer um simultâneo contra 12 rapazes do Ensino Médio. O que Beth não sabia é que já tinha vencido muitas outras batalhas, provavelmente, tal como seu “professor”.

O seriado deixa lições incríveis e emocionantes, possibilitando-nos pensar sobre a vida e os desafios que ela traz de maneira ampla, ensinando-nos a olhar e observar atentamente cada jogo, seus jogadores e suas jogadas.

 

 


[1] Pedagoga e praticante do Xadrez desde os 9 anos, assim como Beth.

[2] CHARLOT, Bernard. O professor na sociedade contemporânea: um trabalhador da contradição. Revista da FAEEBA–Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 17, n. 30, p. 17-31, 2008.

[3] “Cura pela fala”, termo apelidado por Anna O., paciente de Josef Breuer, para o processo de terapia verbal que vivenciou.

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