O INTERATIVO POR DEMANDA

O INTERATIVO POR DEMANDA

Bandersnatch (sem tradução para o português) é o primeiro filme interativo para adultos da plataforma de streaming Netflix. Apesar de sua conexão com a já consagrada série Black Mirror, esse é um capítulo independente da mesma. No filme conta-se a história de um aspirante a programador que, motivado por um livro-jogo que acabara de ler, começa sozinho a produzir um jogo digital para vender à maior empresa de games da década de 1980.

Os livros-jogos, também chamados RPG (Role-Playing Game ou, em português, jogo de interpretação de papéis) de aventura solo, foram muito famosos na década de 1980. Os livros narram aventuras épicas em que o jogador decide o rumo da história que está sendo lida, seguindo as indicações e opções que a história propõe. Por exemplo, se na aventura o jogador optar por abrir a porta da direita numa sala de artefatos, ele deve seguir para a página 35 do livro e orientar-se de acordo com as instruções a partir de lá. Por outro lado, se decidir abrir a porta à esquerda da sala, ele deve abrir o livro na página 37 e orientar-se com base nas instruções de acordo com sua decisão.

O filme interativo conta justamente a história de um desses livros. Bandersnatch é o nome do livro-jogo usado no filme, mas que nunca existiu de verdade. O nome do livro foi retirado de um poema de Lewis Carroll, de Alice através do espelho (1871), e significa “animal fabuloso”. O jovem programador autodidata tenta passar para os códigos digitais sua experiência extasiante com esse livro para ser famoso e conhecido como um dos pioneiros nessa área.

A interatividade do metafilme começa quando, desde o café da manhã do personagem, nós, telespectadores, temos dez segundos para escolher ansiosos qual cereal o personagem consumirá no seu desjejum. A cada escolha que fazemos mais e mais a inquietação sobre seus possíveis resultados nos assola, pois nos angustiamos em saber quais consequências surtirão a partir de nossas decisões. As primeiras escolhas são bem leves e fáceis de serem tomadas, porém, assim como a série Black Mirror, os julgamentos, decisões e questionamentos se tornam bem difíceis, o que, por outro lado, torna única a experiência de “assistir” a um filme dessa forma.

A complexidade toda começa quando as prévias experiências do personagem, bem como seus medos e traumas, começam a se misturar às suas escolhas e decisões quando já adulto. Nosso julgamento torna-se mais dificultoso quanto mais sabemos do passado do jovem e ponderamos quais seriam suas reações conforme as coisas mudam em sua vida. Por conta de alguns sofrimentos passados, o protagonista procura aconselhamento psicológico profissional, o que progressivamente torna nossas decisões mais demoradas e dolorosas quanto mais sabemos sobre o garoto. Percebemos nossas aflições quando dez segundos não são mais suficientes para tomar uma decisão complexa e nos sentimos frustrados e desconfortáveis – o que parece ser o propósito todo do longa-metragem.

A “mágica” da trama acontece conforme o desenrolar da história, onde nosso protagonista parece começar a perceber que suas ações e decisões não são geradas por ele mesmo, mas sim são fruto somente de suas vontades. Com isso o enredo fica bem denso e segue a linha de desconforto já conhecida que Black Mirror nos causa, provocando profundos questionamentos e reavaliações de conceitos e valores.

Nesta época de interatividade do ser humano, em que o smartphone é como uma extensão do corpo e as decisões são tomadas em segundos na ponta dos dedos, o filme certamente mexe com nossos questionamentos sobre tomadas de decisão, nossos valores como seres humanos e nossa empatia em relação ao outro. A interatividade veio para ficar. Nada mais justo que ela promova ressignificações e questionamentos que nos desconfortem.

A obra vale muito a pena em razão da experiência de onipotência e suas consequências, assim como valem as horas interagindo com esse personagem moderno e suas aventuras não tão simples assim.

Profa. Luciana Galeani Boldorini

Profa. Dra Elaine Assolini

 

Referências

JULIO, R. A. Diretora de inovação da Netflix conta como surgiu o projeto Black Mirror: Bandersnatch. Revista Época NEGÓCIOS, 17 jan. 2019. Disponível em: <https://epocanegocios.globo.com/Tecnologia/noticia/2019/01/diretora-de-inovacao-da-netflix-conta-como-surgiu-o-projeto-black-mirror-bandersnatch.html>. Acesso em: 3 maio 2019.

AMENDOLA, B. “Black Mirror”: o livro “Bandersnatch” existiu de verdade? UOL: filmes e séries, 3 jan. 2019. Disponível em: <https://entretenimento.uol.com.br/noticias/redacao/2019/01/03/black-mirror-o-livro-bandersnatch-existiu-de-verdade.htm>. Acesso em: 3 maio 2019.

 

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