O LETRAMENTO LITERÁRIO E O DIREITO À LITERATURA A PARTIR DA ANÁLISE DE DISCURSO

O LETRAMENTO LITERÁRIO E O DIREITO À LITERATURA A PARTIR DA ANÁLISE DE DISCURSO

Carolina Nakamura Silveira

Júlia D’Elia Vinhal Rodrigues de Sousa

Elaine Assolini

               A língua é uma das muitas possíveis manifestações de um povo no mundo, apresentando essencialmente um caráter ideológico. Por esse motivo

 “(...) o ato de fala, ou, mais exatamente, seu produto, a enunciação, não pode de forma alguma ser considerado como individual no sentido estrito do termo; não pode ser explicado a partir das condições psicofisiológicas do sujeito falante. A enunciação é de natureza social.” (BAKHTIN, 2006, p. 109).

Natureza social esta que a Análise do Discurso (AD) de matriz francesa contempla, tendo como foco de seu estudo o

“(...) discurso, palavra que, etimologicamente, tem em si a ideia de curso, de percurso, de correr por, de movimento. O discurso é, assim, palavra em movimento, prática de linguagem: com o discurso, observa-se o homem falando.” (ASSOLINI, 2003, p. 11)

Em contrapartida, dentro da linguística saussuriana, o signo é arbitrário, ou seja, a forma que uma palavra é escrita para significar algo se dá por meio de uma convenção reconhecida pelos falantes de uma língua e é esse sistema de sinais convencionais que forma a linguagem. Entretanto, no nível pragmático (a língua dentro do contexto comunicacional), a palavra não apresenta tal arbitrariedade, uma vez que seu significado depende do discurso e situação em que se está inserida. Sendo assim, são objeto da pragmática (e do discurso), inclusive, orações que apresentem variações da norma culta.

Retomando os conceitos de AD, Assolini (2003) ressalta que o discurso está em constante movimento e mudança devido a sua origem, que se dá a partir das vivências histórico-sociais do sujeito, que significa seu discurso a partir de suas experiências e, nesse processo, consequentemente, significa-se.

A significação do discurso ocorre quando o sujeito o adapta à sua realidade; esse movimento acontece a partir da memória discursiva do sujeito, ou seja, do interdiscurso, a apropriação do indivíduo de outras falas, assim como do intradiscurso, em outras palavras, da sociedade em que está inserido e sua historicidade.

É exatamente essa capacidade de mutação e adaptação da linguagem que diferencia a leitura literária do letramento literário. Este último engloba diferentes procedimentos para o ensino da literatura em sala de aula que se apresentam em uma sequência básica formada por quatro etapas, de acordo com Coson (2006): motivação, introdução, leitura e interpretação.

Em qualquer uma dessas etapas, o professor deve lançar mão de uma gama de estratégias visando atrair o interesse do aluno para a leitura de um dado livro, além de despertar seu senso crítico e de comunidade. Justamente por esse último objetivo que a interpretação é a parte mais importante no processo de letramento literário; entretanto, esta deve estar sempre ativamente ligada às demais etapas.

A motivação tem como objetivo preparar o aluno para entrar no texto, portanto, segundo Cosson (2006), as práticas mais bem-sucedidas nessa etapa seriam aquelas que provocam um estreitamento de laços do aluno com a obra a ser lida posteriormente, por meio, geralmente, do posicionamento do estudante diante de algum tema presente no livro. Vale ressaltar aqui que “(...) a motivação exerce uma influência sobre as expectativas do leitor, mas não tem o poder de determinar sua leitura” (COSSON, 2006, p. 56), sendo assim, nessa primeira etapa o aluno deve ser preparado para a leitura, sem que haja um silenciamento do texto ou do próprio leitor.

Ao chegar na introdução, Cosson (2006) define-a como a apresentação da obra e do autor da mesma, explicando que esta se trata de um momento muito importante para a motivação da leitura, pois, se bem feita, provoca o interesse do aluno pela obra.

O autor esclarece que a introdução deve ser realizada de forma breve e recomenda que o professor se limite a uma apresentação dos pontos mais relevantes da vida do Escritor, sem se estender na biografia deste e, sim, centrando-se na apresentação de uma prévia do conteúdo da obra, que pode ser exposto diante das especulações dos alunos em relação à história do livro, realizada a partir da apresentação da obra física e da leitura de trechos desta.

Na etapa da leitura, o autor chama atenção para a importância do acompanhamento, por se tratar de um momento que possibilita que o professor perceba e então auxilie o aluno com dificuldades de leitura, até mesmo aquelas ligadas ao ritmo. A sequência básica propõe que, diante de textos extensos, esse diagnóstico seja realizado em intervalos de leitura, em que os alunos possam discutir entre si sobre as próprias experiências.

Cosson (2006) chama a atenção para uma preocupação comum dos professores nos intervalos: a possibilidade dos alunos que leem mais rápido “estragarem” a história, contando o que ocorre mais adiante aos alunos que leem mais lentamente. Segundo o autor, isso seria nada mais que um exemplo de “falácia fabulística”, uma vez que o que mais importa em uma obra é a forma que a história é contada e não exatamente o que se conta (por isso é possível aproveitar a leitura de livros clássicos mesmo sabendo todos os seus “segredos”). Diante disso, torna-se evidente como a leitura se modifica de acordo com o leitor, já que em uma troca de impressões sobre um mesmo texto, cada aluno terá uma experiência (mesmo que por vezes muito semelhante) única.

A última (mas não menos importante) etapa do letramento literário é a interpretação do texto lido, que deve ser realizada, segundo o autor, em dois momentos: um interior e outro exterior.

 O primeiro momento

 “(...) acompanha a decifração, palavra por palavra, capítulo por capítulo, e tem seu ápice na apreensão global da obra que realizamos logo após terminar a leitura. É o que gostamos de chamar de encontro do leitor com a obra. Esse encontro é de caráter individual e compõe o núcleo da experiência da leitura literária (...). Ele não pode ser substituído por nenhum mecanismo pedagógico” (COSSON, 2006, p. 65)

Percebe-se então novamente o caráter individual da leitura na sequência básica idealizada por Cosson. Isso se dá porque a ideia de um letramento literário pressupõe que a leitura não é um processo passivo ou desconectado da realidade, estando diretamente ligada às experiências prévias do leitor, sendo assim, “a interpretação é feita com o que somos no momento da leitura. Por isso, por mais pessoal e íntimo que esse momento interno possa parecer a cada leitor, ele continua sendo um ato social”. (COSSON, 2006, p. 65)

É no segundo momento (o externo) que a interpretação como ato social fica totalmente evidente. Nele se dá “(...) a concretização, a materialização da interpretação como ato de construção de sentido em uma determinada sociedade” (COSSON, 2006, p. 65), e é justamente nesse ponto que acontece a diferença entre o letramento literário e a leitura literária realizada por conta própria.

Segundo Cosson (2006), qualquer pessoa pode ler um livro e se envolver, falar e criar uma opinião sobre, porém é na escola que ocorre uma ampliação de sentidos originados de forma individual por meio da troca de interpretações, criando assim uma comunidade de leitores ao despertar no aluno uma consciência de coletividade, além de fortalecer e ampliar seus horizontes de leitura.

Essas interpretações ampliadas variariam, ainda que mantendo a essência da obra original, de acordo com a sala de aula (e comunidade de leitores) em que o letramento literário é (bem) aplicado e isso se dá por conta do teor social da literatura, já que nela, como Candido (2017) explica, a verdade pode ser manipulada, capaz de manter ou quebrar paradigmas. Sendo assim, a literatura tem uma força e poder que não devem ser subestimados, pois por meio dela se é capaz de criticar e quebrar ideais como também justificá-los e mantê-los.

“(...)a literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e, portanto, humaniza. Negar a Fruição da literatura pode ser um instrumento consciente de desmascaramento, pelo fato de focalizar as situações de restrição dos direitos, ou negação deles, como miséria, a servidão, a mutilação espiritual.” (CANDIDO, 2017, p. 186)

Além de ressaltar a relevância da literatura para a estrutura social, Candido (2017) a atribui como um direito humano, trazendo como justificativa a necessidade humana de fugir da realidade, como também de compreendê-la. Explica que, assim como a literatura é capaz de tirar suspiros, inspirar, ensinar, é também capaz de traumatizar.

“Ora, se ninguém pode passar vinte e quatro horas sem mergulhar no universo da ficção e da poesia, a literatura concebida no sentido amplo a que me referi parece corresponder a uma necessidade universal, que precisa ser satisfeita e cuja satisfação constitui um direito” (CANDIDO, 2017, p. 175)

Diante de tantas nuances contempladas pela literatura, Candido (2017) critica o ato de validar ou desvalidar determinadas formas desta, explicando a tendência do sujeito de validar aquilo que corresponde aos seus ideais, atitude que, além de corromper as funções da literatura, trata-se de uma ação autoritária e arrogante.

É possível concluir com Candido (2017) que a realidade ideal seria aquela em que todos os indivíduos fossem capazes de ler e compreender tanto a literatura popular, folclórica, como também a erudita, mas, principalmente, que todos tivessem acesso à literatura, por esta ser um direito: um direito humano, por ser capaz de humanizar.

 

Bibliografia:

ASSOLINI, F. E. P. Interpretação e letramento: os pilares de sustentação da autoria. 2003. 269 f. Tese (Doutorado em Ciências – Área Psicologia) – Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2003.

BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi. 12 ed. São Paulo: Hucitec, 2006

CANDIDO, A. Direito à literatura. In: Vários escritos. 6. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2017. p.169-191

COSSON, R. A sequência básica. In: COSSON, R. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2006. p. 51-73

SAUSSURE, F. Curso de linguística geral. 26. ed. São Paulo: Cultrix, 2004

Compartilhar: