O LUGAR DE SI, O LUGAR DE NÓS, O LUGAR DE TRAMAS: GEPALLE enquanto locus de formação continuada

O LUGAR DE SI, O LUGAR DE NÓS, O LUGAR DE TRAMAS: GEPALLE enquanto locus de formação continuada

1. Raízes: o Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Alfabetização Leitura e Letramento

 

O Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Alfabetização Leitura e Letramento (GEPALLE) nasceu em 2007, na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP), a qual se insere no Departamento de Documentação, Informação e Comunicação da Universidade de São Paulo (USP). Desde então, conta-se com o apoio do Laboratório Interdisciplinar de Formação do Educador (LAIFE), para a realização dos encontros nesse espaço, os quais ocorrem semanalmente. 

Liderado pela professora doutora Filomena Elaine Paiva Assolini, o GEPALLE percorre seu caminho, com afinco e comprometimento acadêmico, há onze anos. Durante esse tempo, configuraram-se valores e perspectivas os quais se balizam na ética, na seriedade e na responsabilidade de pesquisa, com o desenvolvimento de trabalhos nos três eixos: pesquisa, extensão e ensino.

Ao longo desses anos, pesquisadores engajados se dedicaram aos objetos de pesquisa de maneira a produzir importantes contribuições e inovações a respeito da escrita no entremeio da oralidade, da autoria, da formação de professores, do letramento sócio-histórico, dentre outras temáticas, procurando compreender os sujeitos, os ditos, os silêncios e contextos. De maneira crítica e reflexiva, o ensino é trazido à baila sob diferentes olhares e perspectivas, encontrando na Análise de Discurso (AD) de matriz francesa (pecheuxtiana), na psicanálise freudo-lacaniana e na Teoria Sócio-Histórica do Letramento o embasamento, o referencial para se pensar os discursos, o sujeito e a materialidade.

Desse modo, o grupo volta-se a pesquisas em torno da AD francesa e suas interfaces; da alfabetização, leitura e letramento: discurso e práticas pedagógicas escolares; da interpretação, autoria e práticas pedagógicas escolares e formação de professores; e, também, da educação e psicanálise. Esses são os campos sobre os quais os pesquisadores se debruçam, escavam e prismam os objetos de estudo, de modo a implicar tanto as teorias quanto as práticas e os discursos.

Como resultado das contribuições que as produções vêm alcançando, o grupo tornou-se regularmente cadastrado junto ao CNPq, correspondendo à série de requisitos necessários que estabelecem critérios voltados à responsabilidade acadêmica e à consistência das produções. Nesse sentido, o acervo do grupo conta com diversas dissertações de mestrado, teses de doutorado, pesquisas de iniciação científica e monografias, sendo parte dessas apoiadas e financiadas pela Fapesp.

É importante lembrar que as ações do grupo se estendem para além dos muros universitários. Por meio de parcerias com algumas secretarias de educação da região, o GEPALLE promove cursos, palestras e oficinas, constituindo espaço de fato de formação continuada de professores, uma vez que há a preocupação de ouvir os sujeitos-coordenadores, pensar propostas, pautas e intervenções que se alinhem à realidade daquele grupo, daqueles sujeitos.

Assim, mediante os conhecimentos científicos e acadêmicos que extrapolam o ambiente universitário, abre-se a possibilidade de instaurar um importante processo de reflexão e ressignificação da prática docente, de maneira que sujeito-professor e coordenador compreendam-se também enquanto sujeitos da história, que interferem na realidade, problematizam e repensam seu fazer. Com isso, o GEPALLE proporciona, por meio da investigação da realidade, espaços de possibilidades, de criação e abertura para outros sentidos em torno do ensino e da docência.

2. Análise de Discurso francesa: de onde falamos

A AD tem seus primórdios na década de 1960, quando interseccionou a linguística, o materialismo histórico e a psicanálise. Deu-se efetivamente em 1969, com Michel Pêcheux estudando o discurso em sua íntima relação com a história, com seu contexto.

Antes, é preciso definir o que é discurso. Compreendê-lo, a partir de nossa filiação teórica, é deixar de concebê-lo em sua superficialidade, enquanto meio de comunicação, transmissão de informação, ou mesmo o ato de se colocar como enunciador.

De acordo com Pêcheux (2014), o discurso é o efeito de sentidos entre interlocutores; Orlandi (2015) o define como curso, percurso. Ambos propõem um acontecimento para a realização discursiva, ou seja, discurso é ato, é movimento inscrito na história, é a materialidade da ideologia, assim como afirma Assolini (2003, p. 9), “[a linguagem] enquanto discurso é interação, um modo de ação que é social; um trabalho simbólico”.

Assim, entendemos o discurso enquanto materialidade de uma existência sócio-histórica, o que nos coloca diante da língua não “[...] como um sistema (o software e um órgão mental)” (PÊCHEUX, 2017, p. 101), mas sim um local material onde o discurso se (re)faz, onde os efeitos de sentido afloram, ou seja, é “um real específico formando o espaço contraditório do desdobramento das discursividades” (ibid.). E por isso mesmo, a língua é constituída de falha, equívoco e contradições.

Dessa forma, é imprescindível, na AD, investigar quem é o sujeito, quem fala, onde e quando fala e para quem está falando. Isso implica compreender qual sujeito estamos relacionando – não aquele positivista e cartesiano, mas sim o sujeito descentrado, cindido, passível de falhas, contradições e equívocos.

Em razão disso, com base nas contribuições da psicanálise freudo-lacaniana, temos um sujeito cindido, descentrado e clivado que não tem controle sobre suas palavras ou escolhas. Desse modo, “[...] a AD não pode satisfazer-se com a concepção do sujeito epistêmico, ‘mestre de sua morada’ e estrategista nos seus atos (salvo, nas coerções biológicas); ela supõe a divisão do sujeito como marca de sua inscrição no campo do simbólico” (PÊCHEUX, 2017, p. 103).

Logo, o sujeito é tecido infinitamente na trama discursiva; é pelo trabalho da linguagem que se (des)figura, que se constrói. Portanto, cabe a nós dizer que “[...] os processos de subjetivação ocorrem na esfera do discurso” (DORNELAS, 2017, p. 27).

Diante disso, é necessário nos debruçarmos sobre a questão e elencarmos como esses sujeitos estão inseridos e se relacionam com a realidade natural/social. Se são sujeitos descentrados, há leis e mecanismos que regem a própria inscrição no simbólico; estamos falando da ideologia e do inconsciente. A ideologia, para a AD, é responsável pela ilusão da naturalização de sentidos, como se os acontecimentos fossem evidentes e estivessem na ordem do óbvio.

Por isso, não podemos precisar o achatamento da língua, essa materialidade do discurso que, por sua vez, é materialidade da ideologia e possui uma espessura, a qual é preenchida por sistemas (interdiscurso, memória, historicidade, polifonia, polissemia, falha, o real) que regem e (in)definem o sujeito. Nesse sentindo, temos a ideologia e o inconsciente trabalhando em suas tramas sob o efeito de evidências, encerrando a impressão de transparência, objetividade e univocidade. Desse modo,

 

como todas as evidências, inclusive as que fazem com que uma palavra “nomeie uma coisa” ou “tenha um significado” (incluindo, portanto, as evidências da “transparência” da linguagem, a “evidência” de que você e eu somos sujeitos – e de que isso não é um problema – é um efeito ideológico, o efeito ideológico elementar (PÊCHEUX, 1996, p. 149).

É sob esse efeito ideológico que o sujeito tem a ilusão de liberdade, quando, na verdade, “[...] essa liberdade aparece imediatamente em formas de leis, [...] no sentido de determinação sócio-histórica dessa liberdade de fala” (PÊCHEUX, 2017, p. 69). Por esses motivos, não se pode desvincular o trabalho das estruturas-funcionamento, isto é, da ideologia e do inconsciente na língua.

Assim, essas estruturas-funcionamento são a condição para a constituição do sentido do discurso e do sujeito, pois, ao trabalhar produzindo certos regimes de verdade, elas se naturalizam e, ao mesmo tempo, se dissimulam. Esse é o trabalho da ideologia e do inconsciente, a saber, provocar um efeito de evidência como se o sentido só pudesse ser aquele, como se a relação com a realidade só pudesse se dar daquela maneira, e não de outra.

Tais processos ideológicos e inconscientes colocam o sujeito entre margens, em delimitações que determinam ou não suas inscrições nos discursos, isto é, toda relação do sujeito com o contexto sócio-histórico-ideológico está marcada por funcionamentos discursivos, os quais o levam a se filiar a determinadas formações discursivas, a sustentar imaginários e produzir discursos através de algumas posições.

Esse sistema, esse processo discursivo, leva-o a produzir e a se filiar a determinados sentidos, por isso a relação com a realidade é multifacetada e não unidirecional. Desse modo, por meio da interpelação ideológica, o sujeito se submete às “regras” no/pelo discurso, as quais permitirão ou não sua tomada de posição e, também, o seu dizer.

A formação discursiva, por sua vez, é conceito nodal da AD, a qual permite ao analista descortinar as filiações de sentido, as regularidades do discurso, a memória discursiva, o interdiscurso e o modo como se trava a relação do sujeito com o contexto sócio-histórico-ideológico.

Essas formações nos interpelam, em determinados momentos, para nos identificarmos e nos filiarmos a uma rede de sentidos, assim como coloca Orlandi (2015), para quem a formação discursiva é uma regionalização do interdiscurso, pois disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito significa, sendo que, em uma situação discursiva dada, essa memória é referente ao já-dito por alguém em outro lugar.

É no fio de discurso que o analista pode remeter o dizer a determinada formação discursiva e não outra. Esse fio é o que chamamos de intradiscurso, pertencendo a ordem da enunciação, da organização das frases, da sintaxe, da gramática; é o próprio ato de enunciar. Mas não é apenas o intradiscurso que está presente no momento da enunciação. O analista, por sua vez, deve se atentar ao interdiscurso, o qual permite compreender o dito, os não-ditos, os sentidos presentes no intradiscurso, bem como a formação discursiva do sujeito, seus processos de assujeitamento, sua memória discursiva e as outras vozes que constituem o discurso.

O interdiscurso é o feixe de dizeres que constitui o sujeito, é o já-lá, aquilo que fala antes em outro lugar, é

 

[...] o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, o já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada da palavra. O interdiscurso disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma situação discursiva dada (ORLANDI, 2015, p. 29).

 

Desse modo, não é possível que os sentidos sejam inaugurados no sujeito, eles podem ser recriados, mas nunca advindos de um discurso autônomo, considerando que há sempre os implícitos, as remissões. Assim, “os sentidos apenas se representam em nós: eles são determinados pela maneira como nos inscrevemos na língua e na história e é por isto que significam e não pela nossa vontade” (ORLANDI, 2015, p. 33). Ou seja, os sentidos são produzidos infinitamente na trama da memória, e quando o sujeito nasce, os discursos já estão em processo, inserindo-se, apenas, nessa história.

 

3. Nas tramas da formação continuada

 

Marcado pela heterogeneidade, o GEPALLE conta com graduandos, pós-graduandos e pós-graduados, integrantes de diversas áreas, jornalistas, psicólogos e psicanalistas, fonoaudiólogo e, majoritariamente, coordenadores pedagógicos e professores da rede privada, municipal e estadual de Ribeirão Preto e região – sendo eles de diversas áreas do conhecimento, como, por exemplo, filosofia, história, sociologia e química. Todos unidos no propósito de se debruçar sobre a educação, compreender os sentidos construídos historicamente em torno do ensino, repensar o que vêm a ser os discursos encetados em um determinado contexto sócio-histórico, as políticas, e a partir daí problematizar possibilidades de intervenção na realidade.

É nesse sentido que se destaca ainda mais a constituição do grupo enquanto espaço para construção do que de fato é formação continuada de professores, valorizando “[...] paradigmas de formação que promovam a preparação de professores reflexivos, que assumam a responsabilidade do seu próprio desenvolvimento profissional e que participem como protagonistas na implementação das políticas educativas” (NÓVOA, 1992, p. 16). Tais paradigmas passam e perpassam o trabalho do grupo, promovendo a abertura de um espaço para o sujeito de fato, aquele que, ao se des-cobrir, se coloca, assume a responsabilidade do seu dizer, marca-se na história e, assim, ressignifica seus saberes. É no intenso processo de olhar o ensino, perscrutar a prática docente e colocá-la em confronto com a teoria que se faz o trabalho dos pesquisadores.

É importante lembrar que o lugar o qual esses sujeitos assumem para dizer sobre a escola, o ensino e as práticas pedagógicas é marcado pela AD, que vem para desestabilizar não apenas o óbvio, mas também os sentidos em torno da língua e linguagem sustentados pela linguística tradicional, instaurando olhares para o sujeito que é descentrado, bem como para o contexto no qual se desenrola sua existência.

Assim, a configuração formativa está pautada nos estudos dos processos discursivos e seus desdobramentos ideológicos, tratando de compreender não somente os sujeitos, suas relações com o objeto e as filiações de sentido, como também o contexto sócio-histórico-ideológico.

É desse lugar de sujeito-pesquisador que se torna possível aos sujeitos-professores desnaturalizar discursos, compreender o funcionamento da ideologia, colocar a opacidade da língua em cena, duvidar de sentidos cristalizados e compreender que as verdades possuem seus funcionamentos discursivos.

O que é urgente, pois, são processos que configuram a própria desestabilização, haja vista as condições de produção crescentes de controle, interdição e silenciamento no que diz respeito às práticas docentes e, ainda, suas formações. Tal contexto de enfraquecimento é assinalado pelo sócio-histórico no qual estamos inseridos, marcadamente sustentado pela ideologia neoliberal. Como elenca Ball (1999, p. 126), vivemos a “crescente colonização da política educacional pelos imperativos da economia”. Diante disso, as práticas em torno do ensino são travadas, visando a possibilidade de formar mãos de obra para o crescimento e eficiência da economia, o que acarreta ao trabalho do professor intenso controle e, por conseguinte, sua interdição, assim como apontado em Bocchio (2017).

Nesse contexto de silenciamento e enfraquecimento do trabalho docente, faz-se urgente colocar o sujeito-professor em intenso debate, na abertura para o deslocamento de sentidos sobre seu fazer, no estranhamento dos discursos e das políticas, na problematização de sua profissão, isto é, na ressignificação de si e do trabalho. O que só é possível se a formação configurar-se como meio que autoriza e incentiva os sujeitos-professores a assumir a autoria do próprio fazer, e não capacitá-los a fim de aplicar regras, receituários e metodologias, existindo enquanto fôrma-ação. Uma vez que

 

[...] um professor de profissão não é somente alguém que aplica conhecimentos produzidos pelos outros, não somente um agente determinado por mecanismos sociais, mas sim é um sujeito que assume sua prática a partir dos significados que ele mesmo lhe dá (TARDIF, 2002, p. 9).

A partir disso, percebemos que há a intencionalidade e a responsabilidade desse grupo de pesquisas em criar um contexto de formação de fato, no qual propõe-se não apenas acessar os conhecimentos, mas também produzi-los, configurando a “possibilidade de criar espaços de participação, reflexão e formação para que as pessoas aprendam” (IMBERNÓN, 2009, p. 18), para que extrapolem a paráfrase, neguem a posição de reprodutores e elaborem novos saberes, o que, segundo Pimenta, se transforma em praticum. Em suas palavras, [...] é nesse confronto e num processo coletivo de troca de experiências e práticas que os professores vão constituindo seus saberes como praticum, ou seja, aquele que constantemente reflete na e sobre a prática (PIMENTA, 1997, p. 11).

 Desse modo, por meio de estudos, discussões, problematizações e, inclusive, a troca entre pares, o grupo se constitui enquanto locus da “articulação entre o trabalho docente, e o conhecimento e o desenvolvimento profissional do professor, como possibilidade de postura reflexiva dinamizada pela práxis” (LIMA, 2001, p. 30). Isto é, embasados na AD francesa, tanto sujeitos-professores como coordenadores se colocam na posição de quebrar paradigmas, romper com os efeitos de evidências sobre o ensino e a escola e, a partir disso, repensar a prática, (re)criar seus processos pedagógicos e intervir nas (de)cisões da profissão.

            O processo reflexivo, é, pois,

 

[...] uma forma de praticar a crítica com o objetivo de provocar a emancipação das pessoas, quando descobrem que tanto o conhecimento quanto a prática educativa são construções sociais da realidade, que respondem a interesses políticos e econômicos contingentes a um espaço e a um tempo e que, portanto, podem mudar historicamente (PÉREZ GÓMEZ, 1998, p. 372).

Indubitavelmente, a possibilidade de o sujeito-professor assumir as rédeas de seu fazer, passando pelo movimento crítico-reflexivo, cria o espaço da polissemia, ou seja, de se colocar na possibilidade de ruptura do soar ideológico, provocando o deslocamento e o rearranjo da memória, a qual está na ordem do já-dito, do já construído – entretanto, não acabado –, oferecendo possibilidades de deslizes, desdobramentos, furos e resistências, ocupando, assim, a posição de autor, de produtor de conhecimento.

Tal posição se assenta naquilo que Pimenta vem nos iluminar a respeito da diferença entre o que é informação e conhecimento. Segundo a autora, o sujeito-professor deve ir além do acesso a dados e fatos – esses se constituem enquanto informação –, deve haver o movimento dialético de colocá-los à prova, questioná-los, ressignificá-los, atribuir-lhes novos sentidos e, consequentemente, direções. O sujeito-professor deve inscrever-se no ato de construção do conhecimento, ter condições de produção favoráveis para que seja autor.

Ser professor-autor designa a nós, pela discursividade, o sujeito que ao assumir

 

[...] a autoria do seu fazer, busca controlar a coerência e coesão do seu trabalho, tratando de amarrar toda sua prática na busca por ser original (apesar de ilusório) nas ideias, na metodologia, nas propostas, entre outros fazeres; é desse movimento que ele tenta dar o sentido de plenitude (também ilusório) da profissão e de sua função social. Isto é, envolver os sujeitos desse trabalho em um fio a ser tecido (BOCCHIO, 2017, p. 38).

No trabalho com autoria, por sua vez, o sujeito existe na tensão entre a paráfrase e a polissemia, ou seja, entre a estabilização de sentidos, que é da ordem do já-lá, e a possibilidade de rupturas, de outros devires. Isso significa que a formação e, inclusive, o trabalho docente encontram-se no entremeio da memória e do furo para instaurar o novo.

Isso retrata exatamente o processo no qual os espaços formativos devem buscar percorrer, aquele de passar da informação ao conhecimento de fato, em que há a retomada do já-dito, do arquivo e do interdiscurso situando o dizer na história, pois é o que torna possível o dito, ao passo que novos sentidos são produzidos e sustentados, avançando na construção do conhecimento.

 Esse processo torna-se tangível aos sujeitos-professores do GEPALLE a partir do momento em que esse espaço formativo oferece condições de produção para que o efeito-sujeito[1] aconteça. Isso quer dizer que há sustentação da autoimagem do professor se pautada na ideia de que ele pode ser a fonte do que diz, do que produz, que seus ditos e produções são inéditos de maneira que (re)formule os sentidos sobre si e (re)crie sua relação com a profissão.

Desse modo, a proposta de formação do grupo vai além de tornar acessíveis os conhecimentos acadêmico-científicos, o que provoca um deslocamento de seu lugar sacro, inquestionável e autoritário tão presente em propostas formativas desenvolvidas no estado de São Paulo, onde os sentidos devem permanecer intocáveis e a relação do sujeito-professor com o trabalho é sustentada pela ideologia de mercado, fazendo reverberar o discurso penoso numa tensão esvaziada entre o sou e o não sou. No contraponto, justamente o que o grupo faz é alavancar o processo crítico-reflexivo, colocar o conhecimento na berlinda, fazê-lo no reconhecimento de si, do outro e de nós.

Há, portanto, abertura para o que Orlandi instaura enquanto discurso polêmico, no qual há a disputa pelo referente, a busca em dominar os sentidos do objeto em cena, dando-lhe direção, argumentando, refletindo e deixando que o efeito-sujeito entre em cena e encene (ORLANDI, 2011).

Isso ocorre pois, no debate, na reflexão, o discurso polêmico traz à tona a possibilidade de jogar com as regras da enunciação, isto é, imaginar um ouvinte, colocar em curso um discurso pautado na argumentação e, para isso, trazer a memória, elaborar ideias, conceitos e colocá-los à prova pelo intradiscurso, permitindo que o professor se posicione, implique, refute (ORLANDI, 2011, 2016; ASSOLINI, 1999, 2003).

Nesse processo lida-se com o conhecimento, com o percurso da pesquisa, no qual há necessidade de marcar a posição-sujeito para, então, fazer com que o indivíduo assuma a autoria do próprio discurso, o que implica autorizá-lo a ocupar a posição de intérprete-historicizado. Isso significa permitir que atribua sentidos ao conhecimento e à prática, inclusive refute-os e reformule-os, em um processo particular de significância da profissão docente, no qual “[...] ultrapassa, transpassa os sentidos literais, unívocos, desprendendo-se da relação termo a termo, palavra-sentido. Nessa posição, a de intérprete-historicizado, inscreve-se e formula outros sentidos” (ASSOLINI, 2013, p. 43), marcando a historicidade e a polissemia no/do sujeito.

Assim, torna-se possível ao sujeito-professor descortinar sentidos que ressoam em suas práticas, sentidos esses legitimados e cristalizados, uma vez que

 

eles não são meros executores de políticas definidas de fora para dentro, mas sim capazes de definir novas formas, com base na própria experiência. Eles são capazes de pensar, têm uma sabedoria, têm uma experiência que os coloca em condições de gerir novas práticas. Eles não são meros executores de currículos, mas formuladores desses currículos (PIMENTA, 2002, p. 11).

Desse modo, abrir espaços para que o sujeito-professor se coloque, fale do objeto e, nesse desenrolar, fale ao mesmo tempo de si, constitui caminho ávido, vigoroso e significativo no que diz respeito à tomada de posição, à tomada do lugar que é do sujeito-professor.

Assim, salta aos olhos a urgência em manter um lugar para o sujeito, uma vez que, dado o seu descentramento, é impossível separar a pessoalidade da profissionalidade do professor, como nos ensina Nóvoa (1992). É preciso aquele lugar que, além de tratar da formação científico-acadêmica, extrapole, trate o sujeito, marcando-o, des-cobrindo-o, que o faça se ouvir e ouvir os outros que o constituem. Portanto, torna-se de extrema importância olhar para o sujeito, sua composição e suas tonalidades.

Tal abertura é possível criando o que Assolini vem desenvolvendo em seus estudos – os chamados espaços discursivos. Segundo a autora, esses espaços “[...] ofereceriam condições adequadas de produção para que o futuro professor pudesse expressar sua subjetividade, por meio do ‘falar de si’” (ASSOLINI, 2018, n.p.). Esse lugar para o sujeito é intencionalmente pensado no âmbito do grupo de estudos e pesquisas ao passo que permite, por meio de narrativas orais e escritas, depoimentos, entrevistas, rodas de conversa e vídeos, que os sujeitos se coloquem, se inscrevam, argumentem, contra-argumentem, o que faz com que emerjam.

Falar de si faz o sujeito percorrer caminhos, é mais que dizer, é narrar sobre si, é descortinar o sujeito dos véus do eu, é desmarcar marcando o sujeito do discurso (PÊCHEUX, 2014), é permitir que o inconsciente desabroche num movimento de assinalar o narrador, não mais enquanto cientista esvaziado de pessoalidade, mas alguém preenchido pela falta, sujeito das lacunas e dos descentramentos, sujeito da linguagem e, portanto, do inconsciente. Por isso, “o falar de si constitui um exercício de escritura, num movimento de auto-narração que permite diversas maneiras de experimentar sua identidade – que é sempre fluida, inapreensível, metamorfoseada” (ECKERT-HOFF, 2008, p. 119).

Apenas assim há condições de produção favoráveis à compreensão de si, das identidades que o atravessam, das ideologias que o compõem, bem como as angústias, as faltas e as falhas, fazendo emergir sua subjetividade, uma vez que é um engodo apagar quem é o sujeito no professor, ambos são um ao mesmo tempo em que se tornam vários – antes de docente, se é sujeito marcado, clivado, atravessado pela linguagem e, portanto, pelo simbólico, torna-se sujeito da história, da memória, do Outro e, só assim, da profissão. Nesse sentido, o sujeito “[...] aprenderia a escutar a si próprio, o outro (o semelhante), e também o Outro (a cultura, a tradição, normas e regras), que o constituem” (ASSOLINI, 2018, n.p.).

Assim, o trabalho com a subjetividade faz ressoar os sulcos que rasgam o sujeito e as marcas que carrega; as nuances que o compõem permitem o avanço no reconhecimento de si enquanto sujeito-professor. Como me constituo enquanto profissional? Quais são os ditos que me perpassam? Em quais tramas desenrolo a minha existência? Quais os efeitos de sentido que ecoam por mim? Quais as minhas identificações com o saber docente? Quais identidades assumo na profissão professor?

Isso nos mostra que procurar a profissionalidade docente sem antes passar pelo sujeito constitui caminho sem fim, é andar no vazio, é buscar pela copa sem antes pensar nas raízes. Confrontar-se abre portas para a construção do que de fato vem ser a profissionalidade do professor; descortinar suas identificações e composições levanta a possibilidade de redesenhar quem é esse sujeito que um dia se tornou professor, pois, no reconhecer-se,

 

[...] reforça-se um sentimento de pertença e de identidade profissional que é essencial para que os professores se apropriem dos processos de mudança e os transformem em práticas concretas de intervenção. É esta reflexão colectiva que dá sentido ao desenvolvimento profissional dos professores (NÓVOA, 2009, p. 42).

A profissionalidade, portanto, vai além do que muitos estudos elencaram até agora sobre a docência, ou seja, é necessário discutir-se a profissão; no entanto, antes, é urgente pensar quem é o sujeito, inclusive porque há uma relação de proporção entre ele e a produção de saber: ao passo que produz conhecimento, se (re)produz, uma vez que não há objeto sem sujeito. É necessário se des-cobrir para construir o saber de fato, é imprescindível a erupção do sujeito na implicação, o que torna possível o caminho que, saindo de si, vai ao outro e passa pelo sujeito, re-fazendo-o e (des)organizando-o.

Por isso não há formação em um processo solitário. É imprescindível o coletivo, o outro, outras identidades, uma vez que os sujeitos são constituídos de outros sujeitos e não há voz sem outras vozes. É necessário que se reconheça a importância de desenvolver uma cultura de formação (cultivar) calcada no coletivo, a fim de tecer identidades forjadas no imaginário fortalecido, pois a constituição do sujeito pelo (O)outro define sua identidade, uma vez que ela é arquitetada nas tramas do simbólico, nas relações com o imaginário e as formações ideológicas.

Portanto, o espaço discursivo enquanto lugar dos sujeitos não se constitui em simples abertura à pessoalidade, assim como elencariam as formações ideológicas cartesianas. Esse espaço permite que o sujeito se escute e perscrute, levante questionamentos sobre si, confronte a profissionalidade e a pessoalidade, faça emergir suas identidades e identificações e, inclusive, coloque-se enquanto sujeito que se inscreve e, portanto, se implica no objeto do conhecimento, (re)produzindo-o e (re)significando‑o.

Isso posto, é importante destacar que a formação continuada, a profissionalização e a produção do conhecimento não podem ser pensadas fora do sujeito. Apenas assim a profissionalização desponta enquanto constituição de um profissional dotado de saberes específicos, munido com seus conhecimentos singulares e, com isso, capaz de assumir a profissão como tal, intervindo nela e sobre ela. Tal profissionalidade, constituída no seio do sujeito, pode abrir a possibilidade ao pertencimento, à tomada de posição política e à compreensão do compromisso social. Assim, desponta uma relação professor-trabalho vigorosa, crítica e reflexiva, que antes se compreende.

É importante destacar a urgência de os grupos de estudos que intervêm na docência repensarem suas pautas. O GEPALLE, pelo viés da psicanálise freudo-lacaniana, tem olhado para os professores enquanto sujeitos, tem possibilitado a inscrição desses na produção do conhecimento, tem permitido que a subjetividade seja colocada em questão. Dessa forma, caminhamos em direção ao encontro de uma profissionalidade que, de fato, é significada, pois não se separa da pessoalidade, mas, antes, a compreende para ser arquitetada.

Conclusão

A partir disso, podemos perceber o trabalho voltado à ressignificação do que vem ser a docência, o ensino e, consequentemente, o sujeito-professor em confronto com sua profissionalidade. O GEPALLE, enquanto grupo de pesquisas, vem (re)pensando o que é a profissionalidade docente, pensando primeiro em quem é o sujeito. Isto é, a autoria docente, vivenciada por toda polissemia e desestabilização de sentidos, só se torna viável se antes considerarmos o professor como alguém que se insere na história, marcado por outros discursos e, inclusive, sentidos.

Por isso, oferecer condições para que esse sujeito ocupe a posição de intérprete-historicizado é permitir que a multiplicidade de sentidos o atravesse e assuma a responsabilidade pelo que diz, sustente um imaginário pautado na reflexão e criticidade da profissão, de si e do outro, desdobrando-se de acordo com o contexto no qual se desenrola a vivência de sua profissão.

É nesse processo de dar voz e vida ao sujeito, por meio dos espaços discursivos, que o GEPALLE torna possível a constituição de fato da profissionalidade docente, pois considera o sujeito no professor de maneira que identidades, subjetividades e composições emerjam e apontem a possibilidade de ressignificação da profissão no emaranhado de si – o que é de extrema importância quando nos voltamos ao contexto crescente de enfraquecimento da reflexão e intervenção no contexto sócio-histórico pela docência. Vivenciar o grupo de pesquisas, portanto, permite (re)significar a profissão professor ao passo que des-cortina, pelo discurso, a historicidade que atravessa a materialidade e o sujeito, colocando-o em revisão constante da profissão pelo movimento de análise crítico-reflexiva.

 

Profa. Maria Julia Camargo Bocchio

Profa. Dra. Filomena Elaine Paiva Assolini

Referências

ASSOLINI, F. E. P. Espaços discursivos: possibilidades de o professor “falar de si”. Revide: Blog Educação Escolar. Ribeirão Preto, 19 jul. 2018. Disponível em: <https://www.revide.com.br/blog/elaine-assolini/espacos-discursivos-possibilidades-de-o-professor-/>. Acesso em: nov. 2018

ASSOLINI, F. E. P. Interpretação e letramento: os pilares de sustentação da autoria. 2003. 269 f. Tese (Doutorado em Ciências – Área Psicologia) – Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2003.

ASSOLINI, F. E. P. O discurso lúdico na sala de aula: letramento, autoria, subjetividade. In: ASSOLINI, F. E. P.; LASTÓRIA, A. C. (Orgs.). Diferentes linguagens no contexto escolar: questões conceituais e apontamentos metodológicos. Florianópolis: Insular, 2013.

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[1] “O efeito sujeito é o efeito ideológico necessariamente inscrito na linguagem, pelo que o sujeito tem a impressão 1º) de ser a fonte do sentido do que diz (quando na verdade retoma sentidos preexistentes); e 2º) da realidade de ser pensamento” (ORLANDI, 2001, p. 69).

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