O POÇO: capitalismo, desigualdade e hierarquia social

O POÇO: capitalismo, desigualdade e hierarquia social

Profa. Luciana Galeani Boldorini

Profa. Dra. Elaine Assolini

 

O filme espanhol “O Poço” (El Hoyo), do diretor Galder Gaztelu-Urrutia, lançado em fevereiro de 2020 na plataforma de streaming Netflix, está entre os filmes mais populares deste ano.

O longa é carregado de simbologias na tentativa de ilustrar a realidade vivida nos dias atuais; alternando entre a genialidade da representação e o impacto causado por suas imagens marcantes e explícitas.

O poço é o nome dado a uma prisão peculiar dividida em andares, que detém apenas dois prisioneiros por cela (ou andar). Em seu centro há um fosso que atravessa todo o prédio, desde o andar número 0 até o último (cujo número é desconhecido até então). Os prisioneiros podem ter contato uns com os outros através do fosso e, a particularidade mais importante, é uma plataforma (ou mesa) que perpassa todos os andares.

No andar mais alto, essa mesa ou plataforma se apresenta abarrotada de alimentos das mais incríveis diversidades e qualidades, feitas por cozinheiros exímios e caprichosos aos olhos de um chef exigente. É nítido que a excelência é o fator essencial. Assim, após ser abastecida desses riquíssimos alimentos, a mesa começa a descer pelos andares. Há um tempo de parada da plataforma em cada andar para que os prisioneiros se alimentem, e, em seguida, sem ser reabastecida, continue seu trajeto aos andares inferiores.

Durante o filme, nota-se a grande crítica social embutida na narrativa. Os prisioneiros “de cima” têm acesso ao melhor, aos mais refinados alimentos e com a fartura que desejarem. Os “de baixo” ficam com as sobras ou quase nada.

Se fizermos uma analogia ao atual sistema/organização político-econômica e o abalamento deste devido à recente pandemia mundial da COVID-19, temos um excelente exemplo dos meandros de um sistema em crise.

A esse respeito, o linguista e professor norte-americano Noam Chomsky comenta em recente entrevista:

“(...) Mas a compreensão científica não é suficiente. Tem que haver alguém para pegar a bola e correr com ela. Essa opção foi barrada pela patologia da ordem socioeconômica contemporânea. Os sinais do mercado eram claros: não há lucro em evitar uma catástrofe futura. O governo poderia ter entrado em cena, mas isso é impedido pela doutrina reinante: "O governo é o problema", disse-nos Reagan com seu sorriso ensolarado, o que significa que a tomada de decisões tem que ser entregue ainda mais plenamente ao mundo dos negócios, que é devotado ao lucro privado e é livre de influência daqueles que possam estar preocupados com o bem comum. Os anos que se seguiram injetaram uma dose extra de brutalidade neoliberal na ordem capitalista incontida e na forma distorcida de mercado por ela construída.
A profundidade da patologia é revelada claramente por uma das mais dramáticas - e assassinas - falhas: a falta de respiradores, que é um dos principais gargalos no enfrentamento da pandemia. (...)”(CHOMSKY, 2020)

O acesso ou não a respiradores, assim como no filme corpus da análise deste texto, é reservado às camadas ditas “superiores” da casta social instaurada neste sistema.

Em um dado momento da trama, o protagonista Goreg tem um insight e tenta se comunicar com os prisioneiros do andar superior, lançando a mensagem de que, se cada um consumir somente o necessário, sem exageros, excessos ou desperdício, haverá comida o suficiente para todos, até andares mais baixos. E pede que a mensagem seja espalhada aos andares superiores, de onde se origina toda a comida. O companheiro de cela de nosso personagem principal o indaga em tom de repressão: “Você é comunista? Os de cima não escutam comunistas”.

Com esta última frase podemos exemplificar o atravessamento sócio-político da personagem e um julgamento de valor. A ideia da divisão igualitária do sustento é vista como um viés político de alinhamento ao espectro da esquerda, indo contra todos os preceitos estabelecidos como capitalistas/liberais de castas ou classes em que se encontram. Há uma verticalização dos recursos. Como uma “ordem” a ser mantida e em que não há trânsito entre os “andares”.

Nessa direção, o sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman, em sua obra “O Capitalismo parasitário” (2010), relata:

“ (...) Sem meias palavras, o capitalismo é um sistema parasitário. Como todos os parasitas, pode prosperar durante certo período, desde que encontre um organismo ainda não explorado que lhe forneça alimento. Mas não pode fazer isso sem prejudicar o hospedeiro, destruindo assim, cedo ou tarde, as condições de sua prosperidade ou mesmo de sua sobrevivência.”

Passado um mês em um dos andares, os prisioneiros acordam em outro andar, que pode estar acima ou abaixo do qual se encontravam anteriormente. Mesmo sendo torturado pela fome e vivenciando as barbáries onde se encontra, o personagem principal Goreg ainda mantém acesos os princípios e vontades de uma melhor compreensão do sistema e tenta reunir aliados numa busca incessante para encontrar meios de se enviar uma mensagem aos “de cima”.

No entanto, mais uma vez, Goreg é contrariado por seu companheiro de cela quando ouve: “Há três tipos de pessoas. As de cima. As de baixo. E as que caem”. Esta “ordem natural” descrita pelo personagem Trimagasi cerceia toda a ambientação do enredo do longa. Ele também sempre responde às perguntas do colega Goreg com a expressão: “Óbvio!”, como se fosse algo já enraizado/naturalizado na dinâmica dos acontecimentos e na ordem tida como obviamente já pré-estabelecida, no sentido sócio-político e econômico.

“O que ficou alegremente (e loucamente) esquecido nessa ocasião é que a natureza do sofrimento humano é determinada pelo modo de vida dos homens. As raízes da dor da qual nos lamentamos hoje, assim como as raízes de todos os males sociais, estão profundamente entranhadas no modo como nos ensinam a viver: em nosso hábito, cultivado com cuidado e agora já bastante arraigado, de correr para os empréstimos cada vez que temos um problema a resolver ou uma dificuldade a superar. Como poucas drogas, viver a crédito cria dependência. Talvez mais ainda que qualquer outra droga e sem dúvida mais que os tranquilizantes à venda.” (BAUMAN, 2010).

A pandemia que estamos vivendo no ano de 2020 está sendo reveladora. Não só evidenciando, mas também expondo as mazelas governamentais, políticas e principalmente sociais dos sistemas em que estamos inseridos.

O medo do não auxílio médico-hospitalar, a insegurança da falta de estabilidade empregatícia, o temor por não poder ter suas contas pagas em dia, o receio de não haver até mesmo alimentos disponíveis e supermercados abertos nesta época de pandemia, só expõem e evidenciam ainda mais o quanto somos e nos sentimos prisioneiros de um sistema opressor que nos impõe uma divisão de classes, a qual nos sentimos compelidos a respeitar hierarquicamente, com base única e exclusivamente em acúmulo de capital.

“Os medos não têm raiz. Essa característica líquida do medo faz com que ele seja explorado política e comercialmente. (...) Para os governos e o mercado, é interessante manter acesos esses medos e, se possível, até estimular o aumento da insegurança. Como a fonte das ansiedades parece distante e indefinida, é como se dependêssemos dos especialistas, das pessoas que entendem do assunto, para mostrar onde estão as causas do sofrimento e como lutar contra ele. Não temos como testar a verdade que nos contam. Só nos resta então acreditar no que dizem. O mesmo ocorre quando nossos líderes políticos nos falaram que Saddam Hussein tinha armas de destruição de massa e estava pronto para detoná-Ias e quando nos dizem que nossas preocupações e problemas acabarão se os emigrantes forem mandados para casa. A natureza dos medos líquidos contemporâneos ainda abre um enorme espaço para decepções políticas e comerciais.” (BAUMAN, 2010)

Nem todo os esforços de Goreg acerca de uma distribuição mais igualitária, nem todos os esforços humanitários reais de atendimento médico-hospitalar, auxílio financeiro emergencial ou mesmo campanhas de doação serão capazes de mudar a atual organização hierárquica baseada em bens já instaurada. Óbvio!

Referências Bibliográficas

BAUMAN, Zygmunt; MAY, Tim. Capitalismo parasitário: e outros temas contemporâneos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2010.

CHOMSKY, Noam. A escassez de respiradores expõe a crueldade do capitalismo neoliberal. Carta Maior. Disponível em: < https://www.cartamaior.com.br/?%2FEditoria%2FPolitica%2FChomsky-A-escassez-de-respiradores-expoe-a-crueldade-do-capitalismo-neoliberal%2F4%2F47052&fbclid=IwAR0g9aCRW5H0je6HdGXcM9YyfWcgDUkcwq9zUdAP6w3BmVP5QYy-08CMlcU> Acesso em: 10 de Abril de 2020.

 

 

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