PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA: ALGUNS APONTAMENTOS HISTÓRICOS

PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA: ALGUNS APONTAMENTOS HISTÓRICOS

A linguagem escrita é extremamente recente. Os primeiros traços, limitados a registros contábeis do número de escravos ou de cabeças de gado, como se fazia nas plaquetas de Uruk, no Oriente Médio, datam de seis mil anos a.C. A escrita era cuneiforme (do latim cuneus, cunha), assegurando a legibilidade ao longo do tempo, pois seus registros circulares deformavam-se fácil e rapidamente.

Descobertas arqueológicas raras de arquivos antigos comprovam que homens de elite liam na Mesopotâmia. Manguel (1997) e Chartier (1998, 2008, 2009) relatam que, durante escavações realizadas na década de setenta, na Acrópole de Tell Mardik, na Síria Setentrional, arqueólogos descobriram, no palácio real de Ebla (2400-2250 a.C), cerca de  17 mil tabuletas, cuidadosamente guardadas.

As tabuletas versavam sobre enorme variedade de assuntos, mas, principalmente, sobre finanças, cálculos, dotações e projeções orçamentárias, listas de supostos nomes “bons” e “maus” pagadores, relações de nomes de escribas de confiança, dos fluentes na leitura e, sobretudo, nos cálculos. Os potenciais compradores e os indicados para cargos e funções administrativas eram, também, incluídos nessas listas.

No Oriente Médio, nessas circunstâncias, as possibilidades de acesso e de aprendizado da leitura e do código escrito eram raríssimas. Inúmeras gerações de crianças e jovens cresceram sem aprender a ler e a escrever, muito menos interpretar, permanecendo submissas às ordens e às desordens das decisões político-econômicas da elite, à qual poucos pertenciam.

Poucos textos dessa região, anteriores aos primeiros séculos do segundo milênio a.C. sobreviveram. As provas sugerem, por exemplo, que a maioria dos poemas da epopeia de Gilgamesh, o arrogante e angustiado rei de Uruk, que, desesperadamente busca a imortalidade, não foi escrita até1200 a.C. O coração e a alma do famoso rei apaziguaram-se somente quando conseguiu gravar numa pedra seus feitos e experiências, o que nos permite pensar no poder da escrita de preservar nossos pensamentos e experiências.

Destaquemos, agora, o mundo grego, que conheceu significativa diversidade de práticas de leitura e escrita. Observemos a leitura em voz alta, a mais difundida em toda a Antiguidade. Essa maneira de ler repousava na necessidade de tornar possível o sentido de uma scriptio continua, escrita sem espaço entre palavras, sem uso de pontuação e sem distinção entre maiúsculas e minúsculas.

O suporte do texto era o rolo, que o leitor ia desenrolando com uma das mãos e enrolando com outra, destacando para sua leitura, trechos por ele mesmo selecionados. Platão (428-427 a.C.), em seu texto Fedro, problematiza o verbo kulindo, que tem o significado de “rolar”, “deixar rolar”, “poder rolar”. O livro em forma de rolo permite ao leitor (des)montar o texto, deslizá-lo para diferentes direções, de acordo com os seus próprios desejos e escolhas, oferecendo-lhe possibilidades de produzir e atribuir sentidos livremente. O fundador da Academia de Atenas inquieta-se como o “poder-deixar rolar” (do texto), pois compreende que a leitura de textos registrados nesse suporte poderiam também ser considerados verdadeiros, a exemplo do discurso oral.

Outra prática interessante é a denominada “leitura de percurso”, segundo Cavallo e Chartier (1998). Realizada nos séculos V e VI a.C. por privilegiados que tinham acesso à leitura e aos livros, essa leitura “percorre” atentamente o texto, examinando-o detalhadamente, exigindo que o leitor atenha-se às palavras e aos seus possíveis significados. O orador Isócrates, em seus textos, estabelece distinção semântica entre anagignoshein (aqueles que leem superficialmente o texto) e “diescseimi” (aqueles que o percorrem atentamente). Nesse mesmo contexto, aparece, pela primeira vez, o uso do verbo ‘pateo’, que expressa a imagem de um livro frequentado continuamente, lido e relido várias vezes, com fragmentos grifados, trechos comentados, palavras, frases e seções inteiras evidenciadas, retomadas várias vezes, enfim, um livro literalmente calcado. Tratar-se-ia, talvez, de uma leitura intensiva.

Em Assolini (2003), discutimos a prática de releitura, entendida enquanto processo de retroação, como tentativa de o sujeito, na sociedade helenística, constituir-se como autor.

Seguindo adiante, trazemos a prática da leitura silenciosa, que se consolida na Idade Média, em cujos diferentes períodos podemos observar pontos comuns, concernentes ao livro e às maneiras de lê-lo: a veneração a esse objeto cultural, tido como sagrado, a censura e as interdições às interpretações, tanto dos escribas, quanto do homem comum e, nessa perspectiva, a imposição de sentidos literais, unívocos, e legitimados pela Igreja. Não por acaso, ler em silêncio desperta curiosidade e fúria, nos “scriptoriuns” dos conventos, pois ler  em particular permite ao leitor construir sentidos próprios, sem submetê-los às orientações, esclarecimentos ou condenações imediatas de um ouvinte. Além disso, a “comunicação sem testemunhas” (Manguel, 2008), entre o livro e o leitor proporciona situações prazerosas visíveis e entretenimentos diversos, igualmente escancarados e partilhados. O “refrescamento da mente”, na expressão de Santo Agostinho, é uma afronta à Igreja e aos seus dogmas, segundo o teólogo, autor de Confissões.

A Idade Moderna, por sua vez, é caracterizada por três diferentes revoluções: a primeira é técnica, nascida a partir da invenção de Gutenberg, a imprensa, que permite a reprodução idêntica, a rápida transmissão e recepção textual, e exige que os sinais(capa, folha de rosto e contracapa, numeração e divisão de páginas, assinaturas, colunas e outros) sejam evidenciados (cf. CHARTIER, 1998, 2009, 2010; MANGUEL, 1997).

A separação entre as práticas de leitura oralizada (um leitor que lia oralmente para grupos de sujeitos ainda não alfabetizados e não leitores) e a leitura silenciosa, íntima, é uma divisão capital na Idade Moderna. Temos, também, as práticas das leituras intensiva (livros memorizados e recitados, a fim de serem difundidos) e extensiva, livre, irreverente, cujos sentidos postos são subvertidos pelo leitor, que consome impressos numerosos. Essas práticas configuram a segunda revolução da leitura e seu auge se dá na segunda metade do século XVIII.

Por fim, a terceira revolução: o texto em sua representação eletrônica, que demanda um leitor capaz de ler na tela. Essa transformação anula as diferenças entre espaços e tempo do leitor, intervém nos tempos de produção e de leitura, permitindo ao leitor-escritor toda a sorte de intervenções e de leitura, permitindo ao leitor-escritor toda a sorte de intervençserem difundidos) e extensiva, livre, irreverente,cujos sentidos postos são subvertidos pelo leitor, que consome impressos numerosos. Essas práticas configuram a segunda revolução da leitura e seu auge se dá na segunda metade do século XVIII

O caminho que brevemente percorremos mostra-nos que as práticas de leitura e de escrita, de seus primórdios à pós (modernidade), são marcadas por ideologias, imposições, paixões e, também, por possibilidades de o leitor celebrar a liberdade de suas escolhas, inclusive a de ler a si mesmo,em primeiro lugar. Ou não.

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