PRIVACIDADE HACKEADA: a (des)construção da verdade a partir das fake news

PRIVACIDADE HACKEADA: a (des)construção da verdade a partir das fake news

Prof. Cristiano Donizete Ramos

Profa. Dra. Elaine Assolini

 

1 Introdução: contextualizando a produção de fake news em análise

O emprego das fake news no Brasil e no mundo – principalmente para fins políticos, objetivando modificar a veracidade das informações – torna-se bastante preocupante, porém, não estamos falando de nada recém-criado. O documentário Privacidade hackeada (The great hack), dirigido por Karin Amer e Jehane Noujaim e disponível na plataforma de streaming Netflix desde julho de 2019, tem como foco o uso das fake news no cenário político das eleições norte-americanas de 2016, quando o atual presidente Donald Trump foi eleito.

As notícias falsas são recursos utilizados pela humanidade desde a Grécia Antiga, mais precisamente na Era Clássica, quando Sócrates buscava combater os ensinamentos dos sofistas, que se valiam da arte da retórica e da persuasão para disseminar seus postulados – o que para o filósofo ateniense era ultrajante. Apesar de todo o historicismo sobre as notícias falsas e seus efeitos negativos e deturpadores da realidade, o significante fake news ganhou força em 2016, ano em que a eleição presidencial nos Estados Unidos foi marcada pelo uso maciço de notícias e artigos falsificados, divulgados por empresas que se tornaram verdadeiras fábricas de conteúdos duvidosos. Assim nasceram as agências e plataformas de checagem de fatos, as quais são responsáveis por confirmar a veracidade das informações. Paul Joseph Goebbels, ministro da Propaganda de Adolf Hitler durante o nazismo, afirmou que “uma mentira repetida mil vezes se torna uma verdade”. Logo, se levarmos em conta a velocidade com que as informações correm o mundo atualmente, através da internet, não leva muito tempo para que uma notícia falaciosa seja tomada enquanto “verdade”.

O projeto “Álamo”, criado para conduzir a campanha do presidente eleito Donald Trump, contava com a parceria de empresas como Facebook, Google e Youtube, as quais em sua fase áurea gastavam cerca de um milhão de dólares em anúncios nas redes sociais. A empresa Cambridge Analytica funcionava como central de dados, isto é, por meio de pesquisas virtuais conseguiu reunir cerca de cinco mil pontos de dados de cada norte-americano. Essas informações eram processadas pela empresa matriz, a Strategic Communications Laboratory – SCL, localizada na Grã-Bretanha. Além do grande fluxo de dados, a empresa despontava em inovação e tecnologia.

O professor universitário David Carroll, que lecionava sobre mídias digitais e explorava questões relacionadas ao uso da internet, realizou observações acerca do sonho em se dividir experiências e aproximar pessoas por meio da internet, bem como a dependência gerada nos usuários pela rede virtual. A partir disso o professor traz alguns questionamentos importantes: como o sonho do mundo conectado nos separou? Como os dados gerados por nós podem ser utilizados e, assim, afetar nosso futuro? Pesquisando sobre esse assunto, Carroll descobriu que a Cambridge Analytica possuía informações pessoais sobre ele e sobre mais de 100 milhões de eleitores norte-americanos; logo, ao entrar em contato com a empresa, solicitou que seus dados fossem apagados do sistema de armazenamento. Obviamente, a empresa negou-se a tanto e, mediante processo judicial, Carroll fez descobertas a respeito desse movimento de informações – inclusive referentes a pessoas ligadas à empresa, as quais são incluídas na ação civil.

Com isso, revelou-se a trama de como a vitória de Donald Trump, então candidato, se deu em função da manipulação subversiva de informações – e, por consequência, dos eleitores –, a fim de criar fake news e acusações enganosas sobre a candidata da oposição Hillary Clinton, que foi derrotada nas eleições por essa arma terrível, (des)construtora da verdade. As fake news acabam usurpando o direito da livre escolha das pessoas, induzidas e seduzidas por uma realidade totalmente transfigurada em que ideologias nascem através do estudo do perfil psicológico do público-alvo monitorado por empresas desse gênero. Assim, por meio de pesquisas direcionadas foi possível atingir o objetivo proposto, a saber, eleger Donald Trump, com base em notícias falsas, aniquilando a candidata Clinton nesse processo.

O batalha judicial travada entre o professor universitário contra as empresas gigantes – as quais tiveram que se explicar sobre a natureza de suas relações com a Cambridge Analytica – colocou em evidência os riscos que todos corremos: desde uma simples pesquisa na internet ao acesso às redes sociais e sites de nossa preferência, nossos perfis enquanto usuários vão se constituindo e constantemente somos bombardeados, perseguidos, induzidos à compra de produtos e serviços, ou seja, tudo aquilo pelo que, de alguma forma, tivemos interesse em pesquisar na internet. A Cambridge Analytica teve participação nas decisões políticas pelo mundo, mediante a coleta e o estudo de dados, influenciando o comportamento de públicos “hostis”, manipulando informações, transformando as eleições em verdadeiras guerras, convencendo pessoas, suprimindo ou aumentando sua participação nos processos decisórios. Ao final, Carroll já não estava reivindicando apenas os direitos sobre seus dados, mas sim o direito de todos os norte-americanos a isso e, também, à escolha dos cidadãos, para a garantia de eleições livres e justas novamente sem a influência corrosiva das fake news.

 

2 A ideologia e a constituição do sujeito

Vivemos em uma época onde a tecnologia nos rodeia e somos afetados o tempo todo por ela. Independentemente dos dispositivos tecnológicos que utilizamos – computador, smartphone, tablet, rádio, TV, revistas e jornais –, somos atingidos por uma avalanche de informações carregadas de ideologias. Valendo-se dos conceitos de Althusser (1999), Pêcheux reafirma que o sujeito não é produtor de sentido – esse último é efeito da ideologia –, mas vai se constituindo ao longo de sua história, é atravessado por diversas formações discursivas, posiciona-se dentro de formações ideológicas e é incapaz de ter controle sobre o que diz ou pensa. Isto é, durante toda a vida, os sujeitos são compelidos a diferentes ideologias correspondentes a determinadas práticas sociais, quais sejam, moral, religiosa, jurídica, dentre outras que estão interligadas à ideologia de Estado. Sendo assim, é intrínseco à ideologia

 

ser dotada de uma estrutura e de um funcionamento tais que estes a transformam em uma realidade não-histórica, isto é, oni-histórica no sentido de que essa estrutura e esse funcionamento estão presentes, sob uma mesma forma, imutável, no que se chama a história inteira, no sentido de que o Manifesto define a história como a história da luta de classes, isto é, a história das sociedades de classes (ALTHUSSER, 1999, p. 197, grifos do autor).

 

A filosofa Marilena Chauí (1981, p. 100-101) corrobora esses apontamentos afirmando que

 

ideias universais da ideologia não são uma invenção arbitrária ou diabólica, mas são a conservação de uma universalidade que já foi real num certo momento (quando a classe ascendente realmente representava os interesses de todos os não dominantes), mas que agora é uma universalidade ilusória (pois a classe dominante tornou-se representante apenas de seus interesses particulares).

 

A construção da ideologia apresenta-se por meio da sistematização e organização de ideias de pensadores de determinada classe. Posteriormente, a ideologia já fundamentada se torna parte de um consenso introjetado e popularizado pelos integrantes dessa classe. Completando esse ciclo, com a ideologia já posta, surgem novos interesses e, por sua vez, são criados pressupostos de caráter ideológico a fim de estabelecer uma nova dominação, apartando os indivíduos.

De acordo com Althusser (1999), a origem do efeito ideológico se ampara no “reconhecimento, submetimento e garantia – tudo isso centralizado no submetimento. A ideologia ‘leva na conversa’ indivíduos sempre-já sujeitos, isto é, você e eu” (ALTHUSSER, 1999, p. 221, grifo do autor). O indivíduo é interpelado por um sujeito interpelador, depois se reconhece na interpelação e se constitui como sujeito, assujeitado à ideologia, ou seja, os indivíduos são sempre-já sujeitos antes mesmo do nascimento, pois a criança já está envolta nas formas de ideologia familiar (ALTHUSSER, 1999, p. 287). A ideologia converte indivíduos concretos em sujeitos concretos através da interpelação, pela função ideológica dos aparelhos de Estado, obrigando o sujeito a se posicionar, não permitindo a esse sujeito existir sem a sociedade e ou a ideologia.

O sujeito é interpelado pela linguagem, sendo essa sempre ideológica, logo a ideologia também perpassa e interpela o indivíduo enquanto sujeito. O conceito de ideologia vem de um conjunto de ideias, pensamentos ou doutrinas de um sujeito ou de um grupo; o referido conjunto está orientado às ações sociais e tem como foco principal a política, atrelando-se sempre à luta de classes. Althusser (1985) afirma que os homens não representam as condições reais de existência através da ideologia, mas sim sua relação com as condições de existência.

 

Retomo aqui uma tese já apresentada: não são as suas condições reais de existência, seu mundo real que os “homens” “se representam” na ideologia, o que é nelas representado é, antes de mais nada, a sua relação com as suas condições reais de existência. É esta relação que está no centro de toda representação ideológica e, portanto, imaginária do mundo real. É nesta relação que está a “causa” que deve dar conta da deformação imaginária da representação ideológica do mundo real (ALTHUSSER, 1985, p. 87).

 

Althusser (1999) afirma que a ideologia não coincide com o mundo real, porém representa a relação do imaginário entre os indivíduos para o real.

 

No entanto, embora admitindo que não correspondam à realidade, portanto, que constituam uma ilusão, aceita-se que elas fazem alusão à realidade e que seja suficiente “interpretá-las” para reencontrar, sob sua representação imaginária do mundo, a própria realidade desse mundo (ideologia=ilusão/alusão) (ALTHUSSER, 1999, p. 203, grifos do autor).

           

Como somos sujeitos dependentes da linguagem, pois fazemos uso para nos comunicar, logo somos assujeitados por ela sócio-histórico-ideologicamente e, por meio dessa interpelação, é possível termos a mínima percepção do modo como somos e estamos inscritos na ideologia. Essa, por sua vez, não possui história própria, mas se materializa nas práticas sociais, corporizada nos Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE), como reitera Althusser (1999).

 

A ideologia não existe no “mundo das idéias” concebido como “mundo espiritual”, mas em instituições e nas práticas próprias dessas mesmas instituições. Seríamos até tentados a dizer ainda mais precisamente: a ideologia existe em aparelhos e nas práticas próprias desses mesmos aparelhos. É nesse sentido que tivemos a ocasião de dizer que os aparelhos ideológicos de Estado concretizam, no dispositivo material de cada um deles e nas suas práticas, uma ideologia que lhes era exterior que designamos por ideologia primária e que, agora, podemos chamar por seu nome: ideologia de Estado, unidade dos temas ideológicos essenciais da classe dominante ou das classes dominantes (ALTHUSSER, 1999, p. 179, grifos do autor).

 

Althusser (1983) afirma que “só há ideologia pelo sujeito e para o sujeito [...] ou seja, a ideologia existe para sujeitos concretos, e esta destinação da ideologia só é possível pelo sujeito: pela categoria do sujeito e de seu funcionamento”. Portanto, a ideologia atua como forma de persuadir os sujeitos que agem de acordo com a visão da classe dominante, integrando-se a essa concretude.

 

3 Análise discursiva sobre o slogan Defeat Crooked Hillary

Abordamos brevemente até este ponto a temática do documentário, seguida do conceito apresentado pela teoria althusseriana acerca de “ideologia”, demonstrando como essa influência na formação do sujeito – o qual é atravessado pela mesma por meio da linguagem. 

Posto isto, apresentaremos nossa análise discursiva do slogan Defeat Crooked Hillary, exibida no documentário Privacidade Hackeada, aos setenta e cinco minutos e cinquenta e cinco segundos, o qual foi criado pela Cambridge Analytica como forma de atingir aqueles eleitores ainda na dúvida sobre qual seria o melhor candidato, o mais honesto. Isso reforça a ideologia do Partido Republicano, qual seja, o conservadorismo, que apoia o liberalismo social, pressionando os eleitores indecisos a se associarem à ideologia presente. Logo, a Cambridge Analytica espalhou pelas redes sociais a postagemDefeat Crooked Hillary sem referência ao responsável por lançar a informação, dificultando, assim, seu rastreamento. O principal objetivo da postagem foi reforçar negativamente a imagem da candidata da oposição Hillary Clinton, do Partido Democrata – esse alinhado ao espectro político da centro-esquerda estadunidense –, somando-se a isso a suposta informação de que a candidata teria realizado troca de favores valendo-se de servidores privados para enviar e receber e-mails oficiais enquanto Secretária de Estado: um escândalo às vésperas das eleições.

Defeat Crooked Hillary foi pensado de forma que as letras “o” da palavra crooked – em português, “torto”, isto é, de caráter duvidoso, desonesto – formassem algemas, reforçando a ideia de que a candidata, diante de todas as acusações, deveria ser presa por crime de corrupção, elevando o grau de desconfiança em relação à          

Além das algemas representarem o desejo de prisão à candidata e, mais tarde, sua derrota nas eleições, a cor preto fosco também simboliza a negação, o silêncio e a introspecção, uma vez que os esclarecimentos de Hillary Clinton sobre o escândalo foram considerados “vazios”.

            A cor vermelha, utilizada para destacar a palavra crooked, representa a posição do partido de centro-esquerda, em um formato que remete a uma mancha, como se a candidata tivesse depreciado sua honra, a do partido e, caso ganhasse as eleições, mancharia a honra da nação. Há também outra impressão quanto ao possível desvio de conduta da candidata, uma vez que os símbolos estão marcando o significante crooked, ou “desonesto”, reforçando os olhares e reafirmando a postura negativa acerca da candidata. Soma-se a isso a palavra defeat, que significa “derrotar”, “aniquilar”, reiterando o desejo de não derrotar somente a candidata, mas também extirpar esse comportamento corrupto da classe política como forma de purificar o processo político dos Estados Unidos.

 

4 Conclusão

Concluímos, diante de todas as informações contidas neste material, que as condições de produção em relação ao marketing contra a candidata foram arquitetadas, pensadas, planejadas e executadas para fins desonestos, plantando no eleitor a semente da dúvida e inviabilizando à candidata meios para se defender. Ao final do documentário, o professor Carroll explica como os dados presentes na internet não se dissolvem, isto é, outros se apoderam desses e trabalham para abastecer uma indústria de trilhões de dólares, sendo a informação considerada atualmente a mais valiosa moeda do mundo.

Outro questionamento é o quanto podemos ser manipulados pela internet ou por qualquer tipo de mídia que nos faz pensar sermos donos de nossas vontades e desejos, quando, na verdade, somos meros fantoches de todo um sistema que se entrecruza para fins e ambições por vezes desconhecidos.

No documentário também são mencionados os acontecimentos nas eleições brasileiras em 2018, com a vitória do atual presidente Jair Bolsonaro: o partido pelo qual foi eleito se valeu das mesmas práticas utilizadas nos Estados Unidos. No Brasil porém, a divulgação maciça de fake news contra o Partido dos Trabalhadores (PT) foi realizada através do aplicativo Whatsapp, da empresa Facebook, e contribuiu para disseminar notícias duvidosas, muitas das quais reforçavam o ódio por crenças, raças, bem como misoginia e homofobia. Myanmar, antiga Birmânia, nação do sudeste asiático, vivenciou um momento terrível em sua história. De acordo com a revista Veja (2018), a Organização das Nações Unidas (ONU) acusou cinco militares de utilizarem o Facebook para gerar notícias falsas sobre a minoria de muçulmanos rohingya residentes no país, disseminando ódio e causando massacres: estupros coletivos, escravidão sexual, perseguição e até genocídio. As autoridades do país também foram indiciadas por omitirem a causa e não tomarem medidas para conter essa barbárie. A empresa Facebook cancelou as páginas em que havia o referido conteúdo das Forças Armadas, porém, de acordo com o relatório da missão da ONU, a rede social se faz também como “instrumento útil para aqueles que tentam expandir o ódio” (ONU..., 2018, on-line) e, apesar da melhora significativa obtida, a resposta às ocorrências “foi lenta e ineficaz” (ONU..., 2018, on-line).

Diante do exposto, são evidentes os efeitos nocivos das fake news em quaisquer situações possíveis, uma vez que sempre causarão dor, angústia, revolta e até mesmo o silenciamento e/ou apagamento da memória e história de um povo. Exemplo disso foi a tentativa, em nosso país, de afirmar que não houve ditadura, que tudo foi inventado pela “ideologia de esquerda”, ou até mesmo os ataques à educação, ao professor e às universidades. As fake news, associadas às tecnologias, se amplificam mesmo não sendo informações verdadeiras – em relação ao que de fato aconteceu de maneira apurada e revelada – e o desfazer desse efeito não tem a mesma magnitude da notícia falsa, caluniosa e destruidora.

 

Referências

ALTHUSSER, L. Aparelhos ideológicos de estado: notas sobre os aparelhos ideológicos de estado. Rio de Janeiro: Graal, 1985.

ALTHUSSER, L. Sobre a reprodução. Petrópolis: Vozes, 1999.

CHAUÍ, M. O que é ideologia. São Paulo: Brasiliense, 1981.

ONU acusa exército de Mianmar de genocídio contra rohingyas. Revista Veja – mundo, 27 ago. 2018. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/mundo/onu-acusa-exercito-de-mianmar-de-genocidio-contra-rohingyas/>. Acesso em 4 dez. 2019.

ORLANDI, E. P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2001.

GADET, Françoise; PÊCHEUX, Michel. A língua inatingível: o discurso na história da lingüística. Campinas: Pontes, 2004..

PRIVACIDADE hackeada. Direção: Karim Amer; Jehane Noujaim. Produção: Karim Amer; Jehane Noujaim; Pedro Kos; Geralyn Dreyfous; Judy Korin. Roteiro: Karim Amer; Erin Barnett; Pedro Kos. EUA: Netflix, 2019.

 

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