PSICOGÊNESE DA LÍNGUA ESCRITA: limitações e distorções

PSICOGÊNESE DA LÍNGUA ESCRITA: limitações e distorções

Uma primeira questão nos parece decorrente de ter-se confundido uma teoria psicológica (ou psicolinguística), sobre o processo individual de aprendizado da escrita alfabética, com uma metodologia de ensino. Durante os anos de 1980 e 1990, foi muito comum vermos, nos cursos de Pedagogia ou nas situações de formação continuada de professores, uma maciça divulgação dos quatro estágios da Psicogênese, sem que disso se derivasse uma didática da alfabetização. O “como” alfabetizar teria ficado em segundo plano. O problema é bem ilustrado na fala de uma professora, que escutamos em meados da década de 1980: “Tudo bem, eu fiz o tal ditado de palavras e uma oração. Vi que o menino está pré-silábico, e aí? O que é que vou fazer?”

A verdadeira cruzada que vivemos contra as cartilhas e a ausência de uma clara proposta de ensino do sistema de escrita alfabética combinaram-se, no Brasil, com uma divulgação dos estudos sobre letramento. Desse processo, resultou, em muitos lugares, o que Magda Soares (2003a e 2003b) denominou “desinvenção” da alfabetização. Isto significa que, em muitas escolas e salas, instalou-se, como já assinalamos, um discurso segundo o qual as crianças, espontaneamente, aprenderiam a ler desde que pudessem participar de situações nas quais se lesse e 1 escrevesse textos cotidianamente. Não seria preciso trabalhar com palavras e unidades menores (sílabas, letras), porque as crianças ‘cada uma no seu ritmo’ descobririam sozinhas como a escrita funciona. Tampouco seria preciso indicar o que estava escrito nos textos dessas crianças, porque elas superariam tais erros por conta própria, ‘ao longo do processo de desenvolvimento’.

Ora, os resultados desse tipo de crença, como sabemos, têm sido desastrosos. O fato de encontrarmos poucas crianças, geralmente de grupos sociais favorecidos, que compreendem como o Sistema de Escrita Alfabética (SEA) funciona, já no final da Educação Infantil, isto é, antes de serem formalmente alfabetizadas pela escola, não significa que os mais de 90 por cento das demais crianças não precisem de um ensino diário sobre a escrita alfabética. Se, como apontamos na subseção anterior, a teoria da psicogênese nos ajudou, mostrando que o sistema alfabético é, em si, um objeto do conhecimento, nada deveria levar a escola a abandonar seu ensino. Infelizmente, a má apropriação da teoria provocou três outros problemas adicionais: o abandono do ensino sistemático das correspondências grafema-fonema, o descaso com a caligrafia e o não ensino da ortografia (cf. MORAIS, 2010b).

No primeiro caso, vimos que, até pouco tempo, diversos “novos livros de alfabetização”, que ocuparam o lugar das antigas cartilhas, tinham um riquíssimo repertório textual, mas poucas atividades de ensino sobre as correspondências grafema-fonema (MORAIS E ALBUQUERQUE, 2005). Insistimos que alcançar uma hipótese alfabética não é o mesmo que estar alfabetizado. Um mínimo de autonomia da leitura e produção escrita exige algum domínio das correspondências letra-som, e isso tem que ser ensinado e revisado, de forma sistemática, ao menos nos dois primeiros anos de escolarização. Como já afirmamos – e retomaremos nos próximos encontros – é possível, e necessário, fazer um ensino sistemático (prazeroso e reflexivo) das correspondências letra-som nos dois primeiros anos de escolarização, de modo a ajudar nossas crianças a estarem plenamente alfabetizadas.

O segundo problema, para muitos que aderiram à nova teoria, teve a ver com certo descaso com a caligrafia dos alunos. Se, como sabemos, as letras ‘bastão’ (ou de imprensa maiúscula) são especialmente adequadas para as atividades de reflexão sobre palavras – e essas são atividades que auxiliam a criança a compreender as propriedades do SEA – uma vez alcançada a hipótese alfabética, precisamos ajudar os aprendizes a escrever com letra cursiva de forma legível e com maior velocidade. Não temos nenhum ganho em um aprendiz chegar ao 3º ano do ensino fundamental ou a anos mais avançados, escrevendo apenas com letras de imprensa maiúscula (que custam mais tempo para serem traçadas) ou escrevendo com uma grafia que causa dificuldade para o leitor (e com isso esse aprendiz pode sofrer discriminação 3 ou, no mínimo, não conseguir persuadir os leitores, como desejaria).

Finalmente, na confusão entre Psicolinguística e Didática da língua, encontramos, também nos anos de 1980 e 1990, em muitos lugares do país, certo descuido com o ensino de ortografia. Na mesma linha de raciocínio, diversos educadores passaram a acreditar que ensinar ortografia era algo tradicional (e repressor) e que os aprendizes, por si sós, avançariam no domínio da norma ortográfica, à medida que lessem e produzissem mais textos. Felizmente, esse tipo de distorção vem sendo superado e nossos alunos já alfabetizados têm podido viver, agora, de forma mais reflexiva e com menos ‘decoreba’, um aprendizado sistemático das regras e irregularidades de nossa norma ortográfica.

Profa. Dra. Elaine Assolini

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MORAES, FABIANO. O uso de textos na alfabetização. Formação inicial e continuada. Petrópolis, Vozes, 2014.

MORAIS, Artur Gomes; ALBULQUERQUE, E. B. C. Novos livros de alfabetização: dificuldades em inovar o ensino do sistema de escrita alfabética. In: LEAL, T. F.; ALBUQUERQUE, E.B.C; MORAIS, A, G. Alfabetizar-Letrando na EJA: fundamentos teóricos e propostas didáticas. Belo Horizonte, Autêntica, 2005.

MORAIS, Artur Gomes. Sistema de escrita alfabética. São Paulo, Editora Melhoramentos, 2012.

SOARES, Magda. A desinvenção da alfabetização. Presença Pedagógica. Belo Horizonte, 2003, V9, nº 52, p. 1-7.

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