(Re)Construir práticas significativas de alfabetização no ensino remoto

(Re)Construir práticas significativas de alfabetização no ensino remoto

Profa. Carla Gianezzi

 

As expectativas de um ano letivo que se inicia apontam para uma reflexão dentro do contexto que ainda permeia a educação nesse cenário, e que persiste na pandemia: o ensino remoto.

Tendo em vista as experiências do ano anterior, os desafios enfrentados, as barreiras vencidas (ou não!), os medos e a superação do professor frente às novas práticas de alfabetização vivenciadas, é pertinente que se reflita: como construir ou reconstruir práticas significativas de alfabetização no ensino remoto?

Essa angústia tem sido vivida por muitos professores que passaram pela semana de planejamento escolar, sendo orientados a esse tipo de ensino, que ainda não tem uma data definida para ser finalizado.

Alfabetizar passou a ser um “bicho de sete cabeças”, pois estar em frente a uma tela de computador, com seus alunos do outro lado, causou em muitos educadores a insegurança a respeito de desenvolver um bom trabalho, o medo de não conseguir bons resultados e a certeza de que sua metodologia e práticas diárias deveriam ser revistas.

Vale notar que, mesmo diante de algumas discussões com o grupo escolar e equipe gestora, não se tem soluções definidas e acabadas. Todos estão numa busca constante de “como fazer”. Inúmeras palestras, estudos sobre ferramentas de ajuda para as aulas on-line, suportes técnicos, construção de novos “saberes” diante dos conteúdos – tudo isso ainda é muito pouco para lidar com essa realidade que nos cerca.

Sim, certamente há a necessidade de refletir sobre novas práticas e buscar novos conhecimentos sobre alfabetização para que haja, de fato, uma aprendizagem significativa por parte dessas crianças que estão ingressando no primeiro ano do Ensino Fundamental, cheias de expectativas e sonhos de aprender a ler e a escrever.

Lembramos, neste momento, que o “trabalho docente não consiste apenas em cumprir ou executar uma tarefa, mas é também a atividade de pessoas que não podem trabalhar sem dar um sentido ao que fazem [...]” (TARDIF, 2005, p. 38).

 A partir dessa reflexão, podemos direcionar esse pressuposto de que o professor precisa dar sentido ao que está sendo ensinado, valorizando os conhecimentos já adquiridos pelas crianças, suas experiências no mundo da leitura e da escrita, assim como instigá-las a ter curiosidade em aprender e buscar mais conhecimentos. Mas como fazer tudo isso no ensino remoto?

Para que tais ações aconteçam, também é válido lembrar que a alfabetização não acontece de modo isolado e, sim, integra-se ao letramento. Alfabetizar não é apenas decifrar códigos, identificar letras, palavras e frases, vai muito além do bê-á-bá.

De acordo com Mortatti (2000), as primeiras cartilhas brasileiras se baseavam nos métodos sintéticos, iniciando assim o ensino da leitura e da escrita com a apresentação das letras e seus nomes. Em seguida, eram ensinadas as famílias silábicas e a ler palavras formadas com essas sílabas; enfim, eram ensinadas apenas frases isoladas. Em relação à escrita, enfatizavam-se a caligrafia, a cópia, os ditados e a formação de frases, a ortografia e o desenho correto das letras.

Durante muito tempo esse conceito foi praticado em muitas escolas; alfabetizar resumia-se em algo isolado, reprodutivo, dependente, decorado.  Os alunos, quando chegavam à escola, eram vistos como “sem saberes” e não eram valorizadas suas experiências com a leitura e a escrita.

Nas décadas de 1960 e 1970, Paulo Freire foi o primeiro a denunciar as práticas alienantes de ensino, defendendo a alfabetização como leitura de mundo. Mas foi no final da década de 80 que a alfabetização passou a ser vista como algo a mais, sendo uma prática ativa, dentro de uma situação histórica social, considerando a amplitude desse processo, que vai muito além do que até então era defendido.

Outros aspectos passaram a ser evidentes, como o sentido social do que é ensinado, ou seja, conhecimentos adquiridos além do muro escolar. Considerar as diferentes linguagens, os diferentes grupos, reflexões do porquê e para quê nos estudos com textos. Assim, deu-se espaço para que o letramento viesse à tona e fosse de fato ampliado o conceito de alfabetizar.

De acordo com Tfouni, o letramento é “(...) um processo de aquisição de um sistema escrito por uma sociedade” (1992b, p. 7). Essa afirmação ressalta que o letramento está ligado aos usos sociais da prática de escrita de acordo com seu tempo histórico e suas modificações ao longo do percurso, assim como a ideologia construída em atividades discursivas.

Tudo isso já se encontrava numa situação confortável para alguns professores; esses conceitos e práticas eram pertinentes em sala de aula, atividades de reflexão, em grupos, leituras de diferentes tipos de texto, compartilhadas e individuais, discussões sobre um tema, dentre outras práticas.

Com o surgimento do ensino remoto, a preocupação dos docentes frente a uma aprendizagem com a mesma qualidade passou a ser uma inquietação constante em seu dia a dia, visto que as situações antes vivenciadas deveriam ser ressignificadas diante dessa nova realidade.

O uso de diversas plataformas tecnológicas tem sido o caminho mais utilizado pelos docentes para que a aprendizagem aconteça. Nessa perspectiva, é necessário que também se desenvolvam habilidades socioemocionais, como a empatia e a cooperação entre os estudantes, assim como o senso de responsabilidade e o pensamento crítico.

Para Orlandi (2007), o discurso não é simplesmente um processo linear, em que um fala e o outro assimila, e não é sequencial, em que um fala e o outro decodifica a mensagem. Assim sendo, não há tão somente intuito de transmissão de informações. Nesse processo de interlocução existem sujeitos se constituindo.

Refletindo sobre suas palavras, ensinar não remete à “transmissão de conteúdos”, na qual o sujeito apenas ouve o que está sendo apresentado. Há um sujeito ali que tem em si conhecimentos já construídos e outros a serem descobertos, a partir de um confronto de ideias e debates em um ambiente que, mesmo virtual, favoreça essa prática social.

Construir novas práticas e ressignificar o ensino serão metas a serem alcançadas durante todo o ano letivo e, para isso, o professor terá que estar sempre refletindo sobre ferramentas e metodologias, assim como possibilitar práticas de letramento dentro do ensino remoto. Um grande desafio a seguir!

Nas palavras de Paulo Freire: “Na formação permanente dos professores, o momento fundamental é o da reflexão crítica sobre a prática” (FREIRE, 2018, p.40). Sendo assim, a formação permanente a que ele se refere se dá na formação continuada, na escola (ou on-line), junto a seus pares, permitindo a reconstrução constante dessa prática adotada no cenário atual da educação.

Discutir, elaborar, trocar, aprender, buscar... verbos tão importantes no fazer docente!

Será que todos os professores estão aptos a lidar com esse novo modelo de aula? Desconstruir uma prática que percorreu décadas e décadas, o ensino presencial, certamente é algo impactante na vida de qualquer professor. É necessário muito engajamento, busca de aplicativos e programas que ajudem a facilitar suas aulas, a desenvolver uma relação socioemocional de qualidade, respeito e confiança na relação professor / aluno.

Mas, além de tudo isso, é planejar suas aulas de acordo com as reais necessidades dos alunos, algo que não seja pura e simplesmente “mecânico”. É necessário que se construa aprendizagem de fato verdadeira, com sentido real a partir de uma relação de trocas e reflexões, mesmo que seja diante de uma telinha de computador ou celular.

Parece utopia pensar que isso é possível, mas acredito que todo professor deverá buscar a melhor maneira para lidar com esse ensino, reinventando-se, principalmente nessa etapa de alfabetização. Desenvolver novas práticas é tarefa árdua, incessante e sempre inacabada, até porque a missão não é apenas ensinar conteúdos, e sim provocar nos alunos a ideia de repensar o mundo.

Bibliografia

MORTATTI, M. R. L. Os sentidos da alfabetização. São Paulo - 1876/1994. Brasília, DF: MEC/INEP/COMPED; São Paulo: Ed. UNESP, 2000.

ORLANDI, Eni. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2007.

TARDIF, M.; LESSARD, C. O trabalho docente: elementos para uma teoria da docência como profissão de interações humanas. Petrópolis: Vozes, 2005

TFOUNI, L. V. (1992b). Letramento e analfabetismo. Tese de livre-docência não publicada, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto.

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