Reflexões sobre o educar nos dias de hoje

Reflexões sobre o educar nos dias de hoje

Silvia Machione[i]

Elaine Assolini[ii]

 

Atualmente o velho saber dos pais sobre como criar os filhos, muitas vezes até autoritário, vem sendo deixado de lado e dando lugar aos conhecimentos científicos, tais como da psicologia, pedagogia, pediatria. É aos profissionais dessas áreas a quem os pais recorrem nos momentos de dificuldades, que, em outros tempos, poderiam ser vistas como corriqueiras e resolvidas ao modo da família.

Questões como: Será que estou agindo certo? Será que está na medida? Será que vai traumatizar? Por que ele não me obedece mais? Será que estou ultrapassado? tomam frente deixando os pais sem ação.

 Com a crise do saber familiar, os pais tornaram-se submissos aos ditames da ciência e o “savoir-faire” do educar foi transferido principalmente para a psicologia, aliada a pedagogia. A nosso ver, vivemos os efeitos desse discurso científico da infância, somado a repulsa de um período, nas gerações anteriores, onde tínhamos um educar repressor, e também a um sonho de autonomia e independência do outro que resultam nos impasses de como agir com as crianças hoje. Isso se comprova na enxurrada de encaminhamentos aos consultórios “psis”.

É claro que o avanço das ciências trouxeram contribuições importantíssimas para o desenvolvimento infantil, mas o que estamos querendo destacar é que junto com ela veio uma desqualificação da família como aquela que pode conduzir a educação dos filhos.

Temos uma passagem daquela posição em que se sabe o que é melhor para os pequenos, para uma em que esses podem fazer sozinhos suas escolhas, ou, ainda, uma outra em que é a escola que poderá ajudá-lo.

De acordo com o psicanalista Jean Pierre Lebrun, o momento atual é reflexo de uma nova organização social que não está mais constituída como pirâmide, mas como rede. Ele coloca que até pouco tempo atrás, a sociedade era hierarquizada, e isso foi se desfazendo progressivamente, e uma consequência desse novo arranjo social é a incapacidade dos pais de se apresentar como a geração acima da dos filhos.

Para o pesquisador Raymundo de Lima, da Universidade Estadual do Paraná, os pais de 30, 40 anos atrás exerciam ao máximo sua autoridade sobre os filhos, ao ponto até de reprimir os desejos deles. Já os pais de hoje em dia, “baixam a guarda”, diante do poder crescente dos filhos, restando, às vezes, apenas a esperança para alguns de que a escola os eduque. O tão necessário “não” de hoje, soa como o autoritário de ontem.

É interessante pensar que já em 1914, em seu artigo Introdução ao Narcisismo, Freud apontava para questões narcísicas dos pais na relação com seus filhos, permeia o processo do educar. Nesse estudo, ele aponta que os pais tratam seus filhos como “Sua Majestade, o bebê”, atribuindo a eles todas as perfeições, mesmo que uma avaliação sóbria não dê motivo para tal, encobrindo e esquecendo todos os defeitos.

Para Freud, os pais têm seu narcisismo renascido nos filhos, e, por isso, esperam que os filhos satisfaçam seus sonhos e desejos nunca realizados, que o filho homem se torne um herói no lugar do pai e a filha despose um príncipe, a título de indenização à mãe.

Esses apontamentos de Freud parecem-nos muito pertinente e atual, principalmente no que diz respeito à dificuldade de os pais de frustrarem os filhos, no sentido de contrariar vontades, impor limites. A criança encarna um ideal que já foi abandonado por seus genitores, mas é renascido com a vinda de um filho. Isso ressoa em questões narcísicas dos pais que acabam confundindo o ato de educar, que passa por contrariar o outro, com o desejo de ser amado, que é legitimo, mas não pode ser tomado como sim pra tudo, como aparece na poesia do amor incondicional, sem condições. Deixemos o amor incondicional para as artes.

Outro ponto que merece reflexão é a busca desenfreada pela autônima e liberdade por parte dos filhos, às vezes incentivada pelos adultos, como se essa liberdade pudesse prescindir de uma alienação inicial ao outro.

Voltolini (2011) coloca que é um equívoco pensar que é possível não influenciar os filhos nas suas escolhas, tornando-a escolha autônoma, que essa ideia “reflete bem a crença louca de uma época que parece condenar como pernicioso qualquer lastro que condicione a partir do passado o futuro”, o que é diferente de decidir deliberadamente o destino dos filhos.

Pode ser saudável que os interesses dos filhos escapem das expectativas dos pais, pois é o início de uma separação que deve ocorrer por parte dos filhos rumo a um autorizar-se no seu próprio desejo. O que não quer dizer que será sem referências. Por mais que não coincidam com as expectativas dos pais, as escolhas dos filhos partem de uma referência a eles, de um lugar encontrado a partir do desejo deles. Essa separação se dá em vários momentos da vida e nunca é acabada.

Acontece que, diante de tantas reações adversas por parte dos filhos, os pais muitas vezes desistem de desempenhar suas funções, entendendo que não são mais ouvidos, levados a sério, respeitados (ALBERTI, 2008), o que não contribui em nada. Ocorre aqui uma inversão dos papéis, tendo a separação iniciada pelos pais.

É de extrema importância que os filhos tenham seus pais sustentando suas funções para que possam fazer a sua difícil tarefa de separação.

Em seu artigo sobre autoridade e violência, Voltolini (2011) aponta uma inversão interessante sobre o quanto deixar de agir com autoridade pode ser um ato de violência, uma vez que a constituição humana acontece imprescindivelmente alienada no Outro. Essa perspectiva traz um paradoxo na educação: educar usando de autoridade é um ato de violência e o educar sem autoridade, se é que isso é possível, também é um ato de violência. Parece que estamos numa “caça às bruxas” sobre qualquer ato que possa ser de autoridade por remeter ao autoritarismo e à violência. Uma violência necessária.

A partir da tomada de posição dos pais, há uma separação pais-filhos, que é necessária e é o filho que deve realizar, mesmo que seja uma separação sempre incompleta, uma vez que na maior parte dos casos, o que o sujeito consegue é operar a substituição dos seus pais por ideais sociais (Strauss, 2000).

Pensamos que qualquer trabalho de orientação aos pais segue, em parte, numa direção de ajudá-los a autorizarem-se nas funções que ocupam. O que é certo em uma família, nem sempre será em outra. O que cada família traz como costumes e regras são da ordem do particular.

Podemos concluir que, para exercer papel de pais educadores, é preciso que esses tenham aberto mão de boa parte de seu narcisismo, tendo em vista que a eles cabe fundamentalmente a transmissão de um desejo que não seja anônimo e ajudar no sentido de que os filhos aceitem a existência de um impossível, que demarca um limite à condição humana.

Isso se reflete no aprender a lidar com o fato de que nem sempre se ganha, o que pode ser um dos maiores legados que se pode deixar para um filho, já que todos nós passamos por frustrações.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALBERTI, S. O adolescente e o Outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.

FREUD, S. A guisa de Introdução ao Narcisismo, 1914 In: Obras Psicológicas de Sigmund Freud. Escritos sobre a Psicologia do Inconsciente. Volume 1. Rio de Janeiro: Imago 2004.

LEBRUN, J.P. “Ensinem os filhos a falhar”. In: Revista Veja. Disponível online em: <https://www.fronteiras.com/entrevistas/ensinem-os-filhos-a-falhar>. Acesso em: 29/09/2016.

LIMA, R. Educação de antigamente e de hoje. Disponível em: <https://www.espacoacademico.com.br/061/61lima.htm> Acesso em: 29/09/2016.

SATRAUSS, M. Separar-se de seus pais. In: Marraio – Revista das Formações Clínicas do Campo Lacaniano, nº0, pp. 11-23. Rio de Janeiro, 2000.

VOLTOLINI, R. Autoridade, violência e sedução. In: Autoridade e Violência. Porto Alegre: APPOA, 2011.

 

[i] Psicanalista, Especialista em Educação Inclusiva, Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Alfabetização, Leitura e Letramento - GEPALLE, membro de Lalingua - Espaço de Interlocução em Psicanálise, coordenadora da ONG SARA. E-mail: [email protected]

 

[ii] Pedagoga, linguista, pesquisadora coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Alfabetização, Leitura e Letramento - GEPALLE, especialista em Linguística, Mestre em Ciências e Doutora em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]

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