RIBEIRÃO CULTURAL: um relato sobre o papel da extensão universitária na formação continuada de professores

RIBEIRÃO CULTURAL: um relato sobre o papel da extensão universitária na formação continuada de professores

Caroline da Cunha Moreno[1]

Filomena Elaine Paiva Assolini

Andrea Coelho Lastória

FFCLRP-USP

 

A extensão universitária configura um dos pilares da universidade pública, ao lado do ensino e da pesquisa, com vistas à produção e disseminação de conhecimentos. Compreendidos como elo entre universidade e comunidade, os programas de extensão têm como objetivo possibilitar o compartilhamento do conhecimento adquirido por meio do ensino e da pesquisa com o público externo, promovendo interações com a realidade social na qual a instituição encontra-se inserida.

A motivação para o presente relato resulta da participação na organização e desenvolvimento de oficinas no curso de extensão denominado Ribeirão Cultural, no campus da Universidade de São Paulo (USP) de Ribeirão Preto. Por se tratar de relato de experiência, na explanação descreve-se uma dada experiência considerada relevante para certa área de atuação que, em nosso caso específico, se trata do campo da Arte e Educação. Um trabalho nesses moldes é realizado de modo contextualizado e possui fundamentação teórica, respondendo ao rigor científico. Para tanto, cumpre apontar o aporte teórico-metodológico ao qual nos filiamos, qual seja, a Análise do Discurso de matriz francesa (doravante AD).

A opção por essa fundamentação teórica justifica-se pela forma como são compreendidas as relações entre os sujeitos e a linguagem, fornecendo subsídios para que sejam superadas quaisquer noções em que essas relações se apresentem como naturais, ao propor que a linguagem, os sentidos e também os sujeitos sejam pensados a partir de uma posição que se dispõe a interrogar a aparente transparência com que eles são apresentados, admitindo sua historicidade constitutiva. Por se configurar como disciplina da interpretação (PÊCHEUX, 2012), conforme designa seu precursor Michel Pêcheux, a AD possui caráter aberto e heterogêneo, o que pode possibilitar ricos diálogos com o campo da Arte – objeto das oficinas promovidas pelo curso de extensão ora tratado –, também essencialmente constituído pela heterogeneidade e pela deriva de sentidos.

Nesse sentido, a proposta do curso consistiu em proporcionar aos sujeitos participantes oportunidades de vivenciar experiências de criação e fruição artísticas, tanto no âmbito das Artes Visuais como no âmbito da Literatura, em um contexto marcado pela heterogeneidade no que diz respeito ao público e às oportunidades de circulação dos diversos sentidos possíveis, por meio da valorização da participação ativa de todos os envolvidos e de seus “atrevimentos” nos gestos interpretativos. Cumpre ressaltar que, na perspectiva discursiva a qual nos filiamos, os gestos interpretativos implicam movimentos de produção de sentidos, que vão muito além da apreensão de um sentido pronto e acabado encontrado em abordagens conteudistas da linguagem. Para a AD, a interpretação encontra-se presente em toda e qualquer manifestação de linguagem, posto que não há sentido sem interpretação. Conforme salienta Orlandi (2007, p. 29-30), “o homem está ‘condenado’ a significar”, uma vez que “está irremediavelmente constituído pela sua relação com o simbólico”, em outras palavras, existe uma conjunção com a interpretação, na qual o sujeito é constantemente convocado a significar, a atribuir sentidos.

Partindo, portanto, do pressuposto de que a interpretação advém de um processo de produção de sentidos e de que todos os sujeitos participantes traziam para suas leituras e produções artísticas outras experiências discursivas, as atividades desenvolvidas ao longo das oficinas foram marcadas por atitudes acolhedoras e respeitosas, a fim de que fossem asseguradas oportunidades de transitar entre as diferentes regiões do dizer (formações discursivas, para a AD), proporcionando, assim, espaços para experiências singulares de fruição e de prazer estético.

Pensando nessas oportunidades, propõe-se, no presente relato, reflexão acerca do papel potencialmente formador dos programas e cursos de extensão universitária no âmbito da formação continuada de professores. Tendo em vista que grande parte do público foi constituída por docentes, gostaríamos de discutir a importância de espaços como esse para a constituição das identidades docentes, tanto no que diz respeito ao aspecto profissional quanto ao subjetivo. Antes, porém, de adentrarmos na questão da formação de professores, dediquemo-nos brevemente a conhecer como se deram as oficinas do Ribeirão Cultural.

 

Ribeirão Cultural – Literatura e Artes Visuais

O referido programa de extensão é resultado da articulação de esforços de docentes e pesquisadores de diferentes unidades do campus da USP de Ribeirão Preto, em parceria com agentes e representantes de instituições escolares filiadas a diversas redes de ensino do município. Já o público do curso foi constituído por professores de diversas áreas, de escolas públicas estaduais, municipais, instituições privadas e rede do Serviço Social da Indústria (Sesi), além de graduandos e pós-graduandos, gestores e coordenadores escolares. O curso foi gratuito e contou com a adesão espontânea dos participantes, a partir de divulgação realizada por meio de veículos da imprensa local e redes sociais.

Em sua terceira edição, que ocorreu entre os anos de 2012 e 2013, o principal tema das oficinas foi Artes Visuais, propondo o trabalho com produções de artistas como Cândido Portinari, Di Cavalcanti, Tarsila do Amaral, Van Gogh, Odilla Mestriner, entre outros. Nessas oficinas eram trabalhados aspectos históricos, tais como a biografia dos artistas e o estudo sobre as condições de produção das obras, além de serem oferecidas oportunidades de fruição e criação artísticas. Edições anteriores tiveram como tema Iniciação Poética – I e II –, detendo-se na Arte Literária, trabalhando com a Literatura brasileira e a Literatura brasileira infantojuvenil. Essas oficinas contaram com a participação de alunos dos professores participantes do curso, advindos de instituições da rede estadual vinculadas ao programa de extensão. As produções literárias dos sujeitos participantes nas três edições foram compiladas e publicadas em dois livros, que tiveram distribuição gratuita nas instituições de ensino do referido município, contando com evento de lançamento e sessão de autógrafos, fator de grande relevância para a valorização e reconhecimento de todos os participantes e, consequentemente, para o fortalecimento de iniciativas de cultura e extensão.

Na edição realizada em 2015, por sua vez, sobre a qual nos dedicaremos com mais vagar, foram retomados os dois temas das oficinas anteriores, dedicando-se tanto às Artes Visuais como à Literatura. Diferentemente das outras edições, porém, que se desenvolveram ao longo de encontros mensais, geralmente aos sábados, a última edição do programa ocorreu excepcionalmente em um único encontro organizado na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP), mais precisamente no Laboratório Interdisciplinar de Formação de Educadores (LAIFE), onde também foram realizadas as edições anteriores. O encontro teve duração de, aproximadamente, quatro horas e configurou o encerramento das atividades do programa.

Professores das diferentes redes (municipal, estadual, privada e rede Sesi) e demais interessados foram convidados a participar por meio de divulgação nas escolas e nas redes sociais, em página dedicada a esse fim. Todo material, que contou com oferecimento de conteúdo explicativo e materiais para as produções artísticas, foi cedido gratuitamente aos participantes. Os ambientes destinados à realização das oficinas foram decorados de forma harmoniosa e acolhedora, dialogando com os temas propostos. Os ambientes e materiais foram organizados por integrantes do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Alfabetização, Leitura e Letramento (GEPALLE), grupo majoritariamente responsável pela organização e desenvolvimento dessa edição.

O encontro teve início com apresentações sobre a vida e a obra dos artistas, curiosidades e vídeos relacionados ao conteúdo. Posteriormente, foram realizadas as oficinas de produção artística. Os artistas contemplados nessa edição foram o poeta Manoel de Barros, no âmbito literário, e os artistas plásticos Frida Kahlo e Ivan Cruz, no âmbito das Artes Visuais. Os participantes foram convidados a conhecer os diferentes espaços destinados a cada um dos artistas, podendo transitar entre eles conforme desejassem, e, por fim, dedicaram-se às produções artísticas.

As obras resultantes das oficinas puderam ser levadas por seus autores ou deixadas para o arquivo do programa. As diversas produções literárias, em formato de poesia, relato, haikai e contos, bem como as pinturas e desenhos realizados com diferentes materiais e suportes, foram compartilhadas com o grupo em um momento significante de trocas e de novas possibilidades de significação. Os diferentes gestos interpretativos foram acolhidos e houve espaço para a polissemia, característica que, vale apontar, constitui essencialmente o Discurso Artístico (DA). O DA, conforme definido por Neckel (2005), possui natureza polissêmica, por sua predominância de características inerentes à ludicidade. A respeito do discurso lúdico, por sua vez, Orlandi (1996, p. 15) diz que “é aquele em que seu objeto se mantém presente enquanto tal (enquanto objeto, enquanto coisa) e os interlocutores se expõem a essa presença, resultando disso o que chamaríamos de polissemia aberta (o exagero é o nonsense)”, ou seja, há espaço para a deriva de sentidos. Dessa forma, pode-se afirmar que houve espaço para a admissão da heterogeneidade constitutiva dos sujeitos e dos discursos, na medida em que os sujeitos participantes puderam atrever-se nos gestos interpretativos e circular pelas diferentes regiões do dizer, em situações em que o questionamento de uma interpretação única, completa e finalizada esteve sempre presente.

Ao longo dos anos 2016 e 2017, recebemos na universidade, especificamente no LAIFE, dez professores da educação básica que nos contaram sobre suas práticas pedagógicas escolares com Artes Visuais em salas de aula. Escutamos atentamente esses professores e contribuímos com eles, oferecendo-lhes sugestões de leitura, atividades pedagógicas, estratégias de ensino e formulação de recursos para o trabalho pedagógico em sala de aula.

Os encontros presenciais com os professores, no total de oito encontros, sempre se mostraram produtivos e instigantes, uma vez que suas perguntas, questionamentos e receios impulsionavam-nos, no sentido de estudarmos, investigarmos ainda mais a escola, a sala de aula, os estudantes, a Literatura e as Artes Visuais. É interessante notar a sensibilidade desenvolvida pelos professores, que passaram a deter-se com vagar em uma imagem, figura ou fotografia, por exemplo; ou, ainda, passaram a escutar poemas e textos literários de maneira geral, de forma a desenvolver a sensibilidade estética e a capacidade de fruição.

Importa dizer, também, que os encontros sempre foram marcados pelo mínimo de censura ou interdição, o que contribuiu para que pudessem expressar suas próprias leituras das obras de arte, fossem elas no âmbito da Literatura, fossem no âmbito das Artes Visuais. Poder expressar suas interpretações contribuiu fortemente para que os professores começassem a compreender a importância de o educando ter direito à palavra, o que se mostrou uma prática pedagógica significativa – dar voz e escutar os estudantes –, promovendo outras e novas aprendizagens para os estudantes de ensino fundamental e melhorando o desempenho escolar deles. A melhora no âmbito escolar dos alunos deu-se, sobretudo, na disciplina de Língua Portuguesa, pois eles passaram a produzir textos nos quais sua subjetividade, argumentos e ideias foram ainda mais valorizados. Suas produções linguísticas escritas passaram a ser lidas publicamente e receberam devolutivas de seus professores.

Considerando os anos 2016 e 2017, contabilizamos 12 encontros presenciais com os professores do ensino fundamental participantes do projeto. Esses encontros tiveram a duração de duas horas cada um e foram marcados por discussões de âmbito pedagógico, em relação ao ensino e à aprendizagem de Literatura e Artes Visuais. Todo o material de que dispúnhamos (livros, artigos científicos, CDs, filmes, vídeos, maquetes, dentre outros) foi compartilhado com os professores e com as escolas de maneira geral.

Ressaltamos que, nesses mesmos anos, estivemos em diferentes escolas públicas estaduais e municipais, realizando palestras para professores, coordenadores pedagógicos, gestores educacionais e pais de alunos. As palestras versaram sobre diferentes temas, como, por exemplo: A importância da alfabetização e do letramento para a formação cidadã; A Literatura e suas contribuições para a formação do leitor; A questão da escola sem partido: problematizações, a BNCC e suas mudanças, dentre outros.

Além dos atendimentos presenciais aos professores, as visitas e palestras às escolas, dedicamo-nos também à construção de uma página na rede social Facebook, possibilitando trocas diárias de experiências e comentários de obras de arte postadas e demais assuntos relacionados à Arte e à Literatura. A referida página está em pleno funcionamento e os professores a acessam de acordo com seu interesse ou necessidade.

Entendemos ser pertinente destacar que a confecção da página na rede social Facebook e o acesso, visualização e navegação por parte dos professores envolvidos no Ribeirão Cultural contribuíram sobremaneira para a ampliação de seu nível de letramento digital.

Consideramos esse um ganho importante, pois, até então, muitos professores não tinham conhecimento algum a respeito da citada rede social e de seu funcionamento. Nessa linha de pensamento, gostaríamos de destacar também o Concurso Literário, realizado sob a coordenação da professora Heloisa Alves e do Dr. Camilo André Mércio Xavier, sendo a primeira membro integrante do Ribeirão Cultural e o segundo, membro fundador. O concurso, que nasceu sob a coordenação da professora Heloisa Alves, envolve a produção linguística escrita de textos, cujos temas são trabalhados por professores do ensino médio de diferentes escolas públicas da cidade de Ribeirão Preto. Os alunos que alcançam os cinco primeiros lugares têm suas redações lidas e divulgadas, assim como recebem prêmios de diferentes naturezas.

 

A extensão universitária no contexto da formação continuada de professores

No que concerne à compreensão do que configura a formação continuada, convém destacarmos a reflexão de Gatti (2008) acerca desse conceito, autora que aponta o fato de que há algumas formas de conceitualização de formação continuada, podendo referir-se estritamente a cursos estruturados e formalizados, realizados após a graduação, ou ainda que esse conceito pode ser tomado de modo mais amplo e genérico, contemplando quaisquer tipos de atividades que venham a contribuir para o desempenho profissional docente. Nesse sentido, acreditamos ser possível estabelecer uma relação com os programas de extensão universitária. De acordo com Lastória e Assolini (2016, p. 3),

 

Hoje, tanto no Brasil quanto em vários países americanos, europeus e até mesmo asiáticos, é reconhecido por diferentes pesquisadores que, para ser um bom professor, é preciso aprender continuamente. Sabe-se que a aprendizagem, ao longo da vida pessoal e profissional, não se faz em eventos isolados, mas, sim, em processos que devem ocorrer durante toda a prática vivenciada pelos professores. Portanto, a formação inicial ou básica (apesar de sua extrema relevância para a profissionalização) não é a única que deve ser considerada, ou seja, ela não pode ser tomada como um processo único, final e definitivo na carreira de um professor.

 

Ao refletirmos acerca do campo da Arte, que tem sido objeto das oficinas sobre as quais nos debruçamos, por exemplo, encontramos nas propostas de formação continuada uma importante oportunidade de atualização dos sujeitos-professores que atuam na educação básica. Nesse contexto, os cursos e programas de extensão universitária assumem, conforme procuramos defender, papel potencialmente formador, na medida em que possibilitam aos sujeitos-professores novas experiências formativas. Essas oportunidades podem ser consideradas essenciais, sobretudo para a formação profissional docente, uma vez que o cenário do ensino envolvendo as linguagens artísticas na educação básica possui, ainda, caráter consideravelmente limitado.

Conforme é apontado em estudos nos quais se visa compreender como o ensino de Arte vem se dando nas escolas de educação básica em nosso país, embora as linguagens artísticas possuam papel reconhecidamente importante no contexto escolar, as práticas pedagógicas envolvendo as linguagens artísticas ainda podem ser consideradas precárias. Percebe-se que, apesar dos esforços no sentido da valorização do ensino de Arte nas escolas, que possam ter sido alcançados tanto em termos legais como também no que se refere aos fundamentos teórico-metodológicos, quando se investiga a prática, verifica-se que o ensino de Arte segue ainda carente em termos quantitativos (o tempo dedicado a ele) e qualitativos, conforme indica Schroeder (2012).

Em estudos como o acima mencionado, assim como os de Melo e Penna (2005), Pontes (2001) e Barbosa (1994), entre outros, aponta-se o fato de que, nas escolas de educação básica, é rotineiro o recurso a práticas tradicionais, predominantemente no campo das Artes Visuais, tais como os desenhos estereotipados para colorir ou, no extremo oposto, os desenhos livres, assim como a confecção de “lembrancinhas” para datas comemorativas (dia das mães, dos pais, da árvore, do índio etc.). Tais práticas pedagógicas, baseadas na reprodução sistemática daquilo que vem sendo repetido através da tradição escolar, induzem o recurso a essas atividades sem critérios claros ou fundamentação didático-pedagógica bem definida. Muitas vezes essas propostas encontram-se vazias de intencionalidade por parte dos professores e de sentido para os alunos, o que não permite que o potencial educativo das atividades pedagógicas com as linguagens artísticas se cumpra plenamente.

Quanto à Literatura, por sua vez, o que se encontra na educação básica, sobretudo nos anos iniciais do ensino fundamental, são práticas pedagógicas que apresentam grande vinculação desse campo com o ensino da Língua Portuguesa. Fiorin (2014), em investigação a respeito do ensino de português nos níveis fundamental e médio, constata que frequentemente o ensino da língua tem se restringido a lições funcionais e normativas, o que possibilita pouco ou nenhum espaço para a compreensão do movimento de produção de sentidos na linguagem. O autor defende que “todo ensino de categorias, classes, funções e mecanismos só tem propósito quando ele se destina a levar os alunos a perceber os sentidos que criam” (op. cit. p. 48). Nesse contexto, defende ainda que a Literatura, assim como as Artes de maneira ampla, possui caráter subversivo, na medida em que trabalha a linguagem até o limite de suas formas expressivas. Nas palavras do autor,

 

A linguagem não fala apenas daquilo que existe, fala do que nunca existiu. Com ela imaginamos mundos, outras realidades. Essa é a grande função da arte, que é um modo de organização da linguagem: dar a conhecer que outras maneiras de ser são possíveis, que outros universos podem existir. (FIORIN, 2014, p. 40-41).

 

Essa transcendência da realidade concreta possibilitada pela Literatura também é defendida por Candido (1995, p. 174), ao alegar que “não há povo e não há homem que possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação”. Essa afirmação consta em sua argumentação a respeito da Literatura em relação aos Direitos Humanos, na qual o autor coloca-se a favor de que as Artes, de forma ampla, e a Literatura, especificamente, sejam compreendidas como bens incompressíveis da existência humana, ou seja, bens sem os quais a vida do ser humano não seria possível. Defende o autor que a Literatura corresponde a “uma necessidade universal que precisa ser satisfeita e cuja satisfação constitui um direito. [...] Ela é fator indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua humanidade” (CANDIDO, 1995, p. 175).

As investigações acerca das práticas pedagógicas envolvendo as linguagens artísticas na educação básica, conforme mencionado acima, seja no âmbito das Artes Visuais, seja no da Literatura, permitem afirmar, portanto, que tais práticas encontram-se vinculadas à tradição da paráfrase – do mesmo – no sentido de que os fazeres que ecoam nas instituições escolares por décadas vêm sendo historicamente reproduzidos como algo já incorporado ao trabalho e sobre o qual não seria necessariamente preciso refletir. Essa reprodução de fazeres tradicionais pode ser justificada, em parte, pela própria formação inicial dos professores, conforme encontramos em estudos como o de Pontes (2001), para quem

 

Os cursos de formação de professores contribuem para que as linguagens artísticas sejam concebidas apenas como instrumentos, pois em sua maioria não atribuem à arte o mesmo tratamento que atribuem às demais áreas, isto é, não veem na arte uma área de conhecimento que possui peculiaridades que poderiam ser o foco das reflexões e articulação de situações de ensino por professores. (PONTES, 2001, p. 22).

 

Dito de outra forma, a falta de compreensão da Arte como campo de conhecimento, com suas próprias especificidades, muitas vezes a coloca subordinada a outros conhecimentos como um instrumento, um acessório. É possível reafirmar essa orientação quanto à formação de professores nas constatações de Barbosa (2003, p. 14-15), para quem “a falta de uma preparação de pessoal para entender Arte antes de ensiná-la é um problema crucial, nos levando a confundir improvisação com criatividade”.

No que respeita à formação inicial de professores, encontramos, em ampla pesquisa realizada por Gatti (2010), a constatação de que há grande defasagem quanto aos conteúdos específicos das disciplinas a serem ministradas na educação básica. Nas palavras da autora, “as disciplinas referentes à formação profissional específica apresentam ementas que registram preocupação com as justificativas sobre o porquê ensinar; entretanto, só de forma muito incipiente registram o que e como ensinar” (GATTI, 2010, p. 1371). Dessa forma, é possível notar que nos cursos de formação inicial de professores para os anos iniciais (Pedagogia), e mesmo nos cursos de licenciaturas específicas, as disciplinas dedicadas ao estudo de campos específicos, entre os quais se encontra o campo da Arte, possuem carga horária insuficiente para dar conta mesmo de questões introdutórias, ao serem tratados com superficialidade excessiva, conforme aponta a autora. Consequentemente, a falta de reconhecimento do valor dessas linguagens para a formação dos alunos implica o encaminhamento de práticas pouco fundamentadas, como as que têm sido apontadas.

Acreditamos que a qualidade de atividades pedagógicas propostas em qualquer campo de conhecimento esteja intrinsecamente relacionada à reflexão e à pesquisa por parte do professor, o que induz a uma retomada constante da prática em relação aos princípios teóricos nos quais tal prática se fundamenta. Concordamos com Ferreira e Silva (2008, p. 141) na compreensão de que “ao explicitar o aporte teórico que embasa sua ação, o docente amplia as possibilidades de pensar sobre ela, alimentando-a, dialeticamente, com a teoria. Isso lhe possibilita um enriquecimento pessoal e profissional que beneficiará diretamente os alunos”. Dito de outra maneira, qualquer proposta pedagógica só faz sentido quando intencionalmente elaborada, bem definida pelo professor, além de requerer o repensar constante da relação prático-teórica, e essa condição está necessariamente vinculada à sua formação não só inicial, como também continuada, e às oportunidades que essas oferecem aos sujeitos-professores de ressignificarem suas práticas.

Conforme encontramos em Gatti (2010), a criação de cursos de formação continuada de professores consiste em uma resposta à situação particular de precariedade encontrada no cenário dos cursos de formação inicial de professores no Brasil. Aponta a autora que

 

Assim, problemas concretos das redes inspiraram iniciativas chamadas de educação continuada, especialmente na área pública, pela constatação, por vários meios (pesquisas, concursos públicos, avaliações), de que os cursos de formação básica dos professores não vinham (e não vêm) propiciando adequada base para sua atuação profissional. (GATTI, 2010, p. 58-59).

 

Seguindo essa linha de pensamento, Iavelberg (2003) afirma que uma alternativa para a superação do quadro de reprodução anteriormente comentado, ao se falar sobre a realidade do ensino envolvendo as linguagens artísticas na educação básica, é a atualização do docente por meio de cursos de formação continuada, por exemplo. Diz a autora que

 

A reorientação dessa visão de si mesmo como reprodutor, como simples reprodutor de ideias, para agente da própria prática educativa pode ser concretizada nos trabalhos de formação de educadores. O professor que produz conhecimento pedagógico desempenha um papel mais significativo entre seus pares e desfruta de seu trabalho, pois exercita uma prática reflexiva e, assim sendo, pode colaborar efetivamente na reflexão e discussão sobre as questões que envolvem o ensino de arte. (IAVELBERG, 2003, p. 55).

 

Note-se que ao sujeito-professor fica incumbida a tarefa de assumir o protagonismo no processo de produção de conhecimentos, por meio da prática reflexiva e pela constante busca por aperfeiçoamento. Não nos parece justo, contudo, individualizar a responsabilidade por essa ampliação ou formação na figura do sujeito-professor, uma vez que há grande parcela de responsabilidade dos poderes públicos pela implementação de políticas públicas e programas de incentivo à formação e qualificação profissional docente. Nesse sentido, programas de extensão universitária podem ser compreendidos como o pagamento de uma dívida da universidade em relação à comunidade, oportunizando situações de formação como a que vimos comentando.

Imbernón (2010) defende que a ideia central quando se pensa nesse processo contínuo de formação docente deva ser potencializar uma formação que amplie as possibilidades de circular por espaços de reflexão e participação, na busca coletiva para a solução de um problema comum. A proposta de tal reflexão, contudo, implica um movimento de autoavaliação por parte do professor, além do investimento constante na atualização de sua prática. Aproximam-se dessas orientações os apontamentos de Lima (2001, p. 32), ao afirmar que esse tipo de formação deve estar “[...] a serviço da reflexão e da produção de um conhecimento sistematizado, que possa oferecer a fundamentação teórica necessária para a articulação com a prática criativa do professor em relação ao aluno, à escola e à sociedade”.

Em suma, podemos afirmar, portanto, que a formação continuada deve “gerar modalidades que ajudem os professores a descobrir sua teoria, a organizá-la, a fundamentá-la, a revisá-la e a destruí-la ou construí-la de novo” (IMBERNÓN, 2010, p. 47). Assim, conforme aponta Nóvoa (1997, p. 21), “toda formação encerra um projeto de acção. E de trans-formação”.

 

Palavras finais

Ao pensar nas iniciativas de extensão universitária – e, mais precisamente, no Ribeirão Cultural – no âmbito da formação continuada de professores, acreditamos que um dos mais importantes objetivos a se realizar seja o de possibilitar novas experiências formativas para os sujeitos-professores, nos planos profissional e pessoal. Oportunizar diferentes espaços para que os dizeres e os saberes dos docentes encontrem um lugar em que possam circular, assegurando aos participantes situações e ambientes didáticos marcados pela afetividade e acolhimento é um fator que permite que os sujeitos se sintam confiantes para ressignificar suas experiências.

Amparadas por esse pensamento, acreditamos que as trocas de experiências realizadas ao longo das oficinas do Ribeirão Cultural possibilitaram aos participantes não só se atravessarem na atribuição de sentidos às diferentes manifestações artísticas, como também (re)significar algumas de suas experiências e, de maneira mais ampla, (re)significar suas próprias relações com o campo da Arte. Esse processo de ressignificação foi possível graças às oportunidades oferecidas aos sujeitos de “falarem de si” (FOUCAULT, 1969), por meio de gestos interpretativos que foram possibilitados ao longo do curso, mediante as leituras e releituras das obras apresentadas, de depoimentos escritos sobre questões problematizadoras, das suas próprias produções artísticas, enfim, das atividades experimentadas ao longo do curso, que contribuíram para a circulação dos diversos sentidos possíveis.

Em outras palavras, os sujeitos-professores que participaram do Ribeirão Cultural tiveram a oportunidade de assumir a responsabilidade por suas interpretações, posto que se viram capazes de ocupar o lugar daquele que tem condições de ler, de interpretar, e não só de acatar leituras e interpretações outras, que já se encontram dadas. Arriscamos dizer, portanto, que os sujeitos participantes foram capazes de assumir a posição de intérprete-historicizado, conceito concebido por Assolini (2003, p. 201), que designa aqueles “sujeitos que se atrevem a construir leituras/interpretações outras, sujeitos que conseguem desvincular-se dos processos parafrásticos e das regiões de sentidos cristalizados e legitimados pela instituição”. Isso foi possível, repetimos, graças à possibilidade de circulação pelas diferentes formações discursivas, fato que, de acordo com a AD, colabora para a constituição dos processos identitários dos sujeitos, uma vez que ao significar, o sujeito se significa e, assim, sentido e sujeito constituem-se mutuamente.

Desejamos apontar, por meio das reflexões aqui propostas, a importância de se proporcionar diferentes espaços formativos para a atualização do professor que atua na educação básica, seja no campo das Artes Visuais, seja com Literatura ou quaisquer outros campos de conhecimento. Pensar sobre a formação continuada implica pensar além das funções práticas que o conceito de formação possa significar para os fazeres docentes. Nesse ponto, concordamos com Imbernón (2000, p. 15) ao defender que “a formação assume um papel que transcende o ensino que se pretende uma mera atualização científica, pedagógica e didática, e se transforma na possibilidade de criar espaços de participação, reflexão e formação”. Esses fundamentos coadunam-se também, cumpre notar, com os princípios que orientam as iniciativas de cultura e extensão universitárias.

Diante do exposto resta reforçar, portanto, que reconhecemos nos programas de extensão universitária uma forma não só de proporcionar o intercâmbio entre a universidade e a comunidade, possibilitando o enriquecimento de ambos, mas no que respeita a formação continuada de professores, acreditamos ser também um espaço privilegiado de reflexão e de ampliação das experiências e dos saberes docentes. Extrapolar os muros da universidade, promovendo um elo com as instituições escolares, é uma alternativa e um desejo para a formação, tanto profissional quanto identitária, do sujeito-professor, que se constitui continuamente em tão diversos aspectos. Além de fortalecer as próprias iniciativas de extensão, o que significa a retomada dos princípios democráticos da universidade. Assim, esperamos que o presente relato traga contribuições para as reflexões acerca da formação continuada de professores e da necessidade de se expandirem os espaços formativos que contribuirão para a formação docente e, por que não dizer, para a melhoria da qualidade do ensino em nossas escolas, consequentemente.

 

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[1] Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto

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