SOBRE RACISMO E EXCLUSÃO: pensar ou sermos pensados?

SOBRE RACISMO E EXCLUSÃO: pensar ou sermos pensados?

Caio Garrido¹

Numa revisitação ao que de mais intenso e importante vi, li e ouvi em 2019, falarei nessas linhas um pouco sobre o que li e senti da obra de Grada Kilomba, Memórias da plantação – episódios de racismo cotidiano, e a partir de visitas que fiz à sua exposição na Pinacoteca de São Paulo, Desobediências poéticas. Julgo serem obras de valor pedagógico fundamental para aqueles que queiram entender as raízes, efeitos e linguagem do racismo, reflexão essa importantíssima nesses tempos de pouco valor que se dá ao outro como alteridade. Grada é artista interdisciplinar, escritora e teórica, com raízes em Angola e São Tomé e Príncipe, nascida em Lisboa, onde estudou Psicologia e Psicanálise. Na esteira de Frantz Fanon e bell hooks, a autora reflete sobre memória, raça, gênero, pós-colonialismo, descolonização e a sua obra se estende à performance, encenação, instalação e vídeo.

Inicio esta reflexão por um ponto valioso da obra narrativa de Grada, porque a arte e o corte dela são narrativos: “Racismo não é a falta de informação sobre a/o ‘Outra/o’ [...], mas sim a projeção branca de informações indesejáveis na/o Outra/o” ² (KILOMBA, 2019, p. 117) . Uma de suas intervenções artísticas é referente a Édipo Rei – ou Édipo Tirano, em algumas traduções. A intervenção se chama Ilusões vol. II Édipo. Édipo Rei, obra de Sófocles, fundamental para a Psicanálise e a Filosofia, é fonte de importantes verdades que gostamos de esquecer. Ao ser narrado pela voz de Grada – uma artista que assume seu lugar no mundo por meio de sua voz –, o personagem de Édipo diz em determinado trecho do vídeo-intervenção: “Sou um homem bom, vivo na luz” ³. Essa frase ilumina muito daquilo que Grada quer dizer em sua obra escrita e performada.

Segundo Djamila Ribeiro 4,

na interpretação de Grada, Édipo que, atendendo involuntariamente às previsões feitas, matara o pai, sem saber que ele era seu pai, e casara-se com a mãe, sem saber que era sua mãe, era também uma metáfora para entender o colonialismo e as hierarquias violentas criadas a partir desse processo. [...] Kilomba, ao narrar, assume uma voz que foi silenciada.  (RIBEIRO, Djamila, 2019, p. 9-12)

O sujeito branco – e é estranho eu falar em “sujeito branco” em terceira pessoa – faz de sua falta (Falta), de seu desejo, um sentido para ser depositado na tela em branco daquele que não é visto e, portanto, desconsiderado. O branco sempre se sente “vindo da luz”, sempre sendo o “bom”, o portador dos sentidos do “bem”, enquanto o sujeito negro é encarado como desconsiderado, sem valor, “podendo”, assim, ser depositário de todas e quaisquer projeções que o branco deseja, de tudo aquilo que dentro do sujeito branco é negado e indesejado. O negro tem, então, sua presença certificada pelo que lhe é negado. Ainda que apareça, em sua exclusão, o negro é e permanece invisível. Torna-se visível apenas como objeto para o branco. Na mão do branco, que se diz o portador dos sentidos do negro.

Em um romance de James Baldwin, Terra estranha, que tem como pano de fundo – e em outros de seus livros – a luta racial, relações inter-raciais e questões de sexualidade e identidade, traz em uma das falas de seus personagens negros (o protagonista) a ideia de que os brancos (“branquelos”, segundo ele) sempre tentam ser “tão” paternais com os negros e isso o irrita e o incomoda muito, apesar de sua amizade com um dos brancos na história (BALDWIN, 2018, p. 42) 5. É interessante pensar sobre isso, que tal situação acontece, mesmo em se tratando de dois amigos. Indo um pouco além, e pensando na ideia de trauma, no capítulo “A palavra N. e o trauma” 6, Grada afirma que

de repente, o colonialismo é vivenciado como real – somos capazes de senti-lo! Esse imediatismo, no qual o passado se torna presente e o presente passado, é outra característica do trauma clássico. Experencia-se o presente como se estivesse no passado. Por um lado, cenas coloniais (passado) são reencenadas através do racismo cotidiano (presente) e, por outro lado, o racismo cotidiano (o presente) remonta cenas do colonialismo (o passado).(KILOMBA, 2019, p. 158)

Evidencia-se aí um acontecimento traumático que, além de negado, é reatualizado no presente, das formas mais sutis e mais grosseiras em nossa sociedade. Uma das palavras-chave que podemos pinçar dessas reflexões e cenas em que Grada vivencia e vivenciou pessoalmente é a exclusão. E foi a palavra que me norteou ao ler o livro de Grada. Tudo que a exclusão produz num sujeito, tudo que ela tira, da dignidade à própria vida. O signo da exclusão, que está presente desde o processo de colonização, é continuamente reinvestido e revestido de camadas que invisibilizam não só os negros, mas também os dispositivos que mantêm a segregação social e permitem a continuidade de desigualdades de vários tipos.

Aquilo que a arte e o texto a mim torna visível, vindos por meio do olhar de um(a) sujeito negro(a) – refiro-me aqui à obra e ao olhar de Grada Kilomba –, traz a angústia de agora eu poder ver mais, enquanto outros continuam a nada ou pouco enxergar, dentro do espectro do racismo e do racismo estrutural ainda presente em nossa sociedade. Para ter voz e pensamento, há a necessidade de luta. Dentro e fora de si mesmo. Há a necessidade de olhar para dentro para pensar por si próprio, e não viver numa dimensão que está sempre relacionada a uma resposta ou a uma identificação a um Outro opressor.

                                                                                               

[1]Psicanalista e escritor, atende em consultório particular e na comunidade terapêutica Despertar (associada à Instituição “Despertar do Parto” (https://comunidade.despertar.com.br/caio-garrido.html). É mestrando interdisciplinar em Ciências da Saúde, com o tema dos Sonhos (Unifesp/Santos). Foi editor geral da Revista Távola Magazine. Foi coordenador da formação em Psicanálise da Unidade de São Paulo do Instituto (com intercâmbio com professores do Departamento de Formação do Instituto Sedes Sapientiae) e coordenador de Departamento de Literatura. Além da formação em Psicanálise, conta com curso de extensão na USP em Psicanálise. É também revisor/preparador de textos para livros, e professor de Psicanálise. Tem quatro livros publicados: o romance Pena que foi ontem (2010), dois de poemas, Poemas auto-escritos em estado de sonambulovisão (2011) e Parapeito (2013, Editora Patuá), e o romance recém-lançado O bom cristão (2018, Editora Patuá). É coautor do livro Loucos por música (2018, Editora Patuá). E um livro a ser publicado sobre a Nova Era Tecnológica – redes sociais, realidade virtual e inteligência artificial, com um olhar psicanalítico e social. Contatos: [email protected] (e-mail) e (16) 99153-9136 (whatsapp).

² KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

³ Grada Kilomba : desobediências poéticas / curadoria Jochen Volz e Valéria Piccoli ; Intervenção Ilusões vol. II Édipo. Ensaio Djamila Ribeiro. -- São Paulo : Pinacoteca de São Paulo, 2019. Exposição realizada na Pinacoteca de São Paulo, de 06 de julho a 30 de setembro de 2019

4 RIBEIRO, Djamila. A versatilidade e vanguarda de Grada Kilomba. Ensaio para Catálogo Exposição Grada Kilomba: Desobediências Poéticas. 2019

5 BALDWIN, James. Terra estranha. São Paulo. Cia. das Letras, 2018.

6 KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

 

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