“Outrossim regado a uísque”

“Outrossim regado a uísque”

Esse título não pertence ao meu texto. Aliás, não pertence a mim.

“Outrossim regado a uísque” é o título de um artigo escrito pelo jornalista Ricardo Bonalume Neto, na Folha de S.Paulo, em 1999. Ao ler o artigo, em uma aula de Redação, encontrei pela primeira vez na minha vida a palavra “outrossim”, que significa “do mesmo modo”, “igualmente”.  

Ela servia para exemplificar um conectivo antigo, fora de moda, que não deveríamos usar para compor uma boa redação nos exames vestibulares. E assim, esse clichê “outrossim regado a uísque”, me acompanha pela vida, em várias aulas no cursinho, nas salas de aula, como exemplo do que não usar.

Eu, na minha vida de jornalista, nunca me encontrei com o Ricardo Bonalume Neto mas também, nunca me esqueci, nem de seu nome, nem de seu texto. Na semana passada, o jornalista da Folha nos deixou e eu pensei em agradecê-lo de alguma forma: segue na íntegra, o texto original do final do século passado, para que os vestibulandos possam ler um exemplo de bom texto.

Obrigado, Bonalume !

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Outrossim regado a uísque

"Era uma festa regada a uísque, mas havia a boa e velha comidinha caseira:" Só de ver uma frase assim, fico arrepiado. E volta e meia vejo, escrita por algum colega jornalista. O clichê é uma das pragas mais disseminadas da linguagem. O uso de frases feitas é um claro sinal de preguiça mental (às vezes "justificada" pela pressa inerente ao jornalismo). A primeira vez que alguém pensou em um regador, para se referir a uma grande quantidade de bebida alcoólica sendo ingerida, estava criando uma imagem adequada ao que queria descrever. Os milhares que usaram essa analogia depois deixaram o cérebro em ponto morto.

Algumas palavras são clichês automáticos: Os textos sobre viagens abusam do adjetivo "impressionante". Que tipo de impressão? Por que não descrevê-la? E para que serve "outrossim"? É uma palavra feia que quer dizer "igualmente também". É inútil, mas é a grande favorita dos advogados. Uma petição só parece uma petição com pelo menos um outrossim.

Outra palavra detestável é "alteridade". O que seria das teses de humanas sem ela? Vejam que bonito exemplo eu retirei de uma tese recentemente publicada em livro: "A alteridade funciona como a demonstração do mito, que faz elos partidos e perdidos reencontrarem-se numa totalidade, apaziguando desejos ancestrais".

Por que esse tipo de coisa deixa um cético indignado? Porque a linguagem deveria ser um instrumento para expressar pensamentos e idéias, e não para escondê-los ou impedi-los. Regimes totalitários são os principais culpados quando se trata de corromper o pensamento e a partir dele criar uma linguagem bastarda. Outros que agem do mesmo modo são as várias ortodoxias que procuram manter seus fiéis na linha, de fanáticos religiosos a seguidores de partidos políticos ou mesmo correntes filosóficas e acadêmicas.

O escritor inglês George Orwell (1903-1950) publicou em 1946 um brilhante ensaio sobre o tema, "Politics and the English Language". "Se o pensamento corrompe a linguagem, a linguagem também pode corromper o pensamento", diz ele.

A tentação de usar uma frase feita é grande, como pegar um vidro de aspirinas no armário. "Cada frase dessas anestesia uma parte do seu cérebro", diz Orwell.

Ou seja, em vez de procurar palavras pelo seu significado, o fiel ortodoxo vai apenas "grudando frases como pedaços de um galinheiro pré-fabricado".

Orwell se preocupava principalmente com a corrupção do sentido na linguagem política. O comunismo soviético, principalmente na era stalinista, era um dos principais perpetradores; mas a moda pegou. Stálin não matava dissidentes políticos, ele "eliminava elementos socialmente indesejáveis e contra-revolucionários". Quando um míssil americano erra o alvo e mata civis, ele causou um "dano colateral". Bandidos comuns que fizeram um seqüestro no Brasil se dizem "presos políticos". Céticos precisam prestar atenção no que ouvem, para não repetirem bobagens como essas por pura preguiça.

(Ricardo Bonalume Neto, Revista da Folha, 24/01/19)

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