A impertinência da verdade

A impertinência da verdade

Apesar do acesso cada vez mais abrangente a diferentes arquivos históricos, ainda nos portamos de forma incrédula diante de fenômenos e eventos antigos, como se fossem incomuns. Verbi gratia, não há nada de insólito no que hoje se alardeia como “fakenews”, afinal, informes fictícios podem ser encontrados desde a origem da escrita. No campo do jornalismo, notícias como invasão alienígena, vida na lua e diabos encarnados em crianças já foram publicadas por grandes e variados veículos jornalísticos ao redor do mundo, alguns por engano, outros por brincadeira. Ciência e religião também são recheadas de eventos e acontecimentos simulados e dissimulados, mas especialmente a política faz uso desta prática desde tempos imemoriais. Até aí, nada de novo; não precisamos teorizar profundamente sobre enunciados que não possuem relação alguma com qualquer materialidade ou experiência real. Nós mesmos sabemos muito bem o que é isso, desde a infância fazemos uso corriqueiro desses artifícios discursivos.

O que se passa é que o problema tem sido colocado no lugar errado: nas pontas do discurso. Atualmente, o problema da veracidade está no meio.

Quando se fala em fakenews, pressupõe-se uma truenews, certo? Ou ainda, quando alguém aborda a temática da pós-verdade, conscientemente ou não este sujeito está trazendo para o interior de sua argumentação a possibilidade de uma “verdade” que se oponha à pós-verdade. Nestes casos, a verdade parece operar como um sistema binário computacional básico: 0 para pós-verdades e fakenews, e 1 para verdades. Em sistemas mais simples, de fato, teríamos verdades ou mentiras como oposições bem claras, com divisas bem definidas. Contudo, em sistemas computacionais ou sociais minimamente mais complexos, os valores podem variar na ordem do 0,3 entre verdade ou falsidade, ou pior: por vezes ele pode ser 0,7559 falso em uma escala de 0 a 1.

Essa suposta imprecisão da verdade nos lança, na contemporaneidade, no profundo problema da credibilidade instantânea. Todos sabemos, intuitivamente ou não, que a língua e o mundo sensível são de naturezas diferentes. É impossível, à língua, dar conta do mundo: o simbólico apenas contorna o real e produz, a partir dele, um conhecimento constitutivamente parcial que só pode ser tomado como “verdade” dentro dos limites impostos por aquele recorte simbólico. Logo, para falarmos em termos de “verdades”, faz-se necessário apagar ou silenciar as demais possibilidades de contato entre língua e mundo.

Acontece que em algum momento na história da filosofia diversos teóricos pensaram ser possível chegar à grande verdade absoluta. Hoje em dia, pouquíssimos filósofos ainda tentam sustentar este delírio de grandeza, mas a despeito dos atuais esforços, a noção de “verdade” ainda continua produzindo inconvenientes no mundo e no conhecimento. Contudo essa herança da verdade binária excludente - sim ou não, verdadeiro ou falso, correto ou errado... -, começa a ser ameaçada não mais pelas reflexões filosóficas, que parecem ter sido deixadas de escanteio, mas pelas próprias “verdades” produzidas no cotidiano digital que se tornou o novo suporte da comunicação humana.

No ciberespaço, a língua perde cada vez mais a responsabilidade com o real, e se torna “auto referência”, ou seja, ela faz referência apenas ao seu próprio funcionamento. Neste caso, a verdade deixa de operar como algo que poderia ser mais ou menos parecida com um acontecimento, e passa a ser condicionada única e exclusivamente pela “credibilidade”. Acontece que a credibilidade vem antes da verdade: onde esta última falta, a primeira completa, de olhos fechados. Logo, a informação se torna mais verdadeira que o acontecimento que se dá no mundo. Mas isso não é tudo. Com a credibilidade inabalada, a informação pode ser verdadeira em tempo real, prescindindo de qualquer conferência em relação aos fatos da experiência.

Depois de lançada, a informação se torna imediatamente verdadeira a partir da credibilidade que a antecede no sujeito leitor. E enquanto não for desmentida, será verossímil. Mas mesmo que for desmentida posteriormente, nunca mais ela será falsa justamente porque foi credível, e é isso que importa. Diferente da “verdade”, a credibilidade não sofre com os limites da língua: ela é, antes, da ordem da escolha e dos afetos, e não da experiência.

Essa mistura entre “verdade” e credibilidade tem gerado, em nossos tempos, um tipo de verdade fractal que nunca mais será binária, vista em duas dimensões, mas existirá sim em uma pluralidade incontável e variável de dimensões. Livre de qualquer relação com o mundo, a credibilidade produz uma série inapreensível de camadas que coagulam a precisão da verdade.

Neste novo cenário, o leitor que ainda é crente no deus todo poderoso chamado “verdade” tem que se virar para fazer funcionar esse mecanismo precário e obsoleto. É como se o próprio deus proferisse contradições o tempo todo, mandando-o ir para a direita, para a esquerda e 0,3% para o centro, concomitantemente. Quando a verdade parece verdadeira e falsa ao mesmo tempo, faz-se necessário um esforço hercúleo para fazer parecer que a escolha final não passou apenas de... escolha (feita pelo sujeito, ou imposta a ele?). A própria credibilidade - que orienta e condiciona fakenews e pós-verdades - ganha opacidade, deixa de ser invisível; agora ela grita “ei, me escolha emocionalmente, mas faça de conta que não foi uma escolha, ok?”.

Assim, o problema da metacredibilidade no simulacro parece ser anterior ao da fakenews e da pós-verdade. É possível, aliás, que essas antigas noções de “verdade” e “boa informação” tenham contribuído para o progresso dessa crise. Quem dera o problema atual pudesse ser resolvido nos termos propostos por Sartre, que dizia que a existência é que precede a essência. Hoje o problema não é mais o da essência, mas de algo que agora precede a existência: a crença.

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João Flávio de Almeida
Doutor/UFSCar
​Professor e pesquisador nas áreas de Análise do Discurso, Filosofia da Linguagem e Tecnologia da Comunicação
Autor de "Palavrareia" (ficção), e "Epistemologia da Errância" (filosofia da linguagem e análise do discurso)

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