ALGORITMO SOCIAL

ALGORITMO SOCIAL

O SENTIDO DA VIDA FINALMENTE RESULTOU EM 42

Em 1979 foi publicado o primeiro livro da série O Guia do Mochileiro das Galáxias, de Douglas Adams, um divertido clássico da ficção científica. O livro conta a história de um terráqueo viajante pelo espaço, Arthur Dent (atenção: pequenos spoilers), que descobre que o planeta Terra, na verdade, era - porque foi destruído - um experimento científico coordenado por cientistas interplanetários muito ricos e inteligentes: os ratos. Esse experimento, a Terra, surgiu do desejo de responder a uma pergunta muito antiga que inquietava a população cósmica desde tempos imemoráveis: qual o sentido da vida?

Nessa ficção, bilhões de anos antes da Terra ser criada, os sábios de todos os cantos do cosmos construíram um supercomputador para tentar responder a essa indagação, mas tal inteligência artificial pediu milhares de anos para calcular e emitir uma resolução. E eles esperaram. Chegado o grande dia, representantes de todos as espécies vivas inteligentes se reuniram em festa diante do grande computador. Com grande ansiedade, perguntaram à superinteligência qual era a resposta final de seu super cálculo, ao que ele respondeu: 42. Frustrados, os sábios interplanetários designaram os ratos como mentores de um novo experimento, a Terra. O que eles não sabiam é que, bilhares de anos depois, essa resposta – 42 - seria muito bem aceita pelos terráqueos do século XXI – mas infelizmente essa última parte não se trata mais de ficção.

Desde tempos remotos respostas pequenas e ingênuas para dilemas grandiosos e desmedidos são fornecidas por “especialistas”. Até aí nada de novo. De novo, mesmo, é que agora essa resolução advém de um aparato tecnológico munido de uma inteligência artificial. E é aqui que gostaria de apresentar a noção de Algoritmo Social, um fenômeno sociocultural que matematiza sujeitos, acontecimentos e materialidades capturadas por uma língua asséptica e reducionista: a linguagem do algoritmo.

Vamos começar compreendendo minimamente o que é um algoritmo. Essa palavra já quase corriqueira, na verdade, é um conceito muito antigo: não passa de uma série de instruções simples usadas para resolver um problema – qualquer tipo de problema. Existem incontáveis exemplos; a fórmula matemática que aprendemos na escola para calcular quanto tempo um carro leva para percorrer certa distância em uma velocidade específica, é um algoritmo simples. No universo da informática, o algoritmo aparece como conjunto de regras que, aplicadas sistematicamente a alguns dados de entrada apropriados, resolvem um problema em um número finito de passos elementares[1]. Importa ressaltar que todo algoritmo é finito e executa instruções de forma sistemática; logo, ele é cego diante do que está fazendo.

Outro exemplo simples de algoritmo é a receita de bolo da vovó, anotada a lápis em um caderno velho e encapado com plástico de pacote de açúcar. O algoritmo é a instrução que orienta o processo de tratamento de inputs para convertê-los em outputs. Inputs são entradas, elementos a serem processados: farinha, açúcar, ovos, leite etc., convertidos em um output final, que no nosso caso, é um saboroso bolo – desde que a receita (o algoritmo) seja seguida corretamente.

Para isso, é importante notar mais uma coisa: os inputs dos algoritmos precisam ser axiomáticos. Mas o que é um axioma? É um dado supostamente evidente, incontestável, inquestionável. Não pode haver, no axioma do algoritmo, nenhuma ambiguidade ou deslize de sentidos: eles necessitam ser absolutamente precisos. No caso da receita de bolo, para que a receita funcione bem é preciso desambiguizar, e a vovó, sábia que era, fez penas anotações extras ao lado de cada etapa do processo, explicando muito bem (desambiguizando) o tamanho da colher, da xícara de chá e até a marca de farinha. Na receita aparece, ainda, como uma espécie de nota de rodapé, a mensagem “não invente moda”.

Agora imagine um gigantesco algoritmo social, capaz de capturar e manipular diferentes tipos de inputs, como indivíduos, palavras, acontecimentos e materialidades, para convertê-los em outputs axiomáticos: sujeitos condicionados, discursos estabilizados, acontecimentos regulados e materialidades sistematizadas. O algoritmo, como tal, poderia aparecer nas discussões filosóficas e sociológicas em torno da noção de estruturalismo, mas isso exigiria certo cuidado. Para não incorrermos neste risco, fiquemos apenas com a descrição formal do algoritmo axiomático como analogia para pensarmos o funcionamento da sociedade contemporânea.

Permitindo-nos certa especulação, não seria demais pensar em espaços sociais algorítmicos e axiomáticos. A escola, por exemplo, recebe como input crianças que sabem bem pouco do mundo, e como dados a serem trabalhados, o grande algoritmo opera transformações através de axiomas pedagógicos, apagando ambiguidades na linguagem e na própria construção do sujeito. O resultado desse axioma é um output adulto, trabalhador, preparado para a repetição e para um mundo assaz reduzido, estabilizado e supostamente seguro, ameaçado justamente por aqueles que escaparam do algoritmo capitalista.

De igual forma, o grande espaço da “medicina” aparece como algoritmo da saúde, o mesmo que o algoritmo “academia” faz com o corpo, o judiciário com os comportamentos, o jornalismo com as verdades, a propaganda com os desejos, a religião com a fé e a ciência com o mundo todo. Em todos esses casos, acontecimentos, sentidos e sujeitos são “axiomatizados”: apequenados, recortados, controlados, desambiguizados, administrados e apinhados em bases de dados abarrotadas de dados. Palavras, sujeitos e acontecimentos possuem valor justamente na medida em que se diferem uns dos outros, mas quando passam pelo grande algoritmo axiomático a diferença é suprimida, e o valor se vulgariza insignificante.

Até aí o algoritmo serve apenas para pensarmos a sociedade com palavras e conceitos que redundariam muito próximos a outras teorias e correntes de pensamento. A novidade temerária, se é que podemos dizer assim, é que um algoritmo sempre pode ser operado por outro algoritmo, um algoritmo de algoritmos. O que podemos pressupor disso é que o Algoritmo Social pode ser, ele mesmo, operado por outro algoritmo, um algoritmo digital altamente compatível com o Algoritmo Social. E agora os outputs são diferentes: o algoritmo de vendas do Google e das redes sociais extravasa a tela dos gadgets e se anexa com grande harmonia ao Algoritmo Social, produzindo homogeneidades axiomáticas em níveis jamais vistos, repetições vendidas como “aperfeiçoamentos”: do corpo, da saúde, da profissão, dos saberes, da fé etc. A matemática transborda os limites da tela, e como uma grande onda de dados, ela engole um mundo caótico e contingente e supostamente o transforma em uma realidade exata, compreensível e evidente. Matematizado, o mundo passa a ser mensurável, computável e adequado para um progresso quantificável, aperfeiçoável e corrigível. Mas essa é apenas metade da equação. Um mundo quantificável deve transformar sonhos, dores, esperanças e dúvidas em números axiomáticos. A realidade perde toda sua tridimensionalidade e se torna plana, rasa e rápida como dados em uma rede de alta performance.

Hoje consumimos imagens fáceis e informações axiomáticas em ritmo frenético. O algoritmo é que nos programa: nossos comportamentos se tornam facilmente administráveis, como inputs em outputs. E assim as verdades rasas e simplificadas emanam das redes sociais para um mundo que, ao mesmo tempo em que se torna néscio, se faz perfeitamente compreensível.

Em tempos de profícua proliferação de tecnologias e saberes fundamentados na tecnociência, sentido e sujeito podem cada vez menos errar. Submetido a um suposto aperfeiçoamento, o sentido passa por um acentuado processo de estancamento, administração e redução, e com ele também língua, história e sujeito. Não podemos nos esquecer que o axioma é uma escolha ideológica que esconde seu caráter político, fazendo parecer que se trata de uma verdade inquestionável, inabalável e eterna.

Mas o que será que perdemos com essa acentuada sedentarização do mundo material, dos sentidos e dos saberes na contemporaneidade? Quais serão os prejuízos desse confinamento administrado que silencia e apaga dizeres outros? Os tempos em que a dúvida persistia estão acabando. O “desconhecido” enquanto mistério, sedução, desejo, medo, eros e dor estão desaparecendo. Vivemos a era da repetição extrema de sentidos administrados, que embora se escamoteiem no discurso do progresso, não passam de acúmulo do “mesmo”. Por isso o conhecimento, acanhado e repisado, já não transforma: apinha-se em celeiros pequenos, amassado e deformado. O apagamento do “desconhecido” não encontra muros, o grande algoritmo discursivo sedentariza e tiraniza redizendo sentidos, sujeitos e todo o mundo. A vastidão dos dados, a pluralidade dos sentidos e a amplitude dos saberes são todos centrifugados em máquinas de cálculos que reduzem toda complexidade do mundo a números desidratados, impiedosos e... repetidos. A tecnociência baseada em algoritmos se transforma, assim, em máquina de sedentarização, aparato de fazer muros, aparelho de reprodução parafrástica do mesmo: máquina de apoucamento e imobilização dos sentidos[2].

E o sentido da vida? Que pergunta mais inútil, cada vez menos inquietante e desinteressante. Para não demorar demais neste assunto chato, diz logo que é 42.

 

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João Flávio de Almeida
Doutor/UFSCar
​Professor e pesquisador nas áreas de Análise do Discurso, Filosofia da Linguagem e Tecnologia da Comunicação
Autor de "Palavrareia" (ficção), e "Epistemologia da Errância" (filosofia da linguagem e análise do discurso)

 

[1] Ricardo Peña Marí - De Euclides a Java, la Historia de los Algoritmos y de los Lenguajes de Programación.

[2] ALMEIDA, J. F. Epistemologia da errância. Campinas: Pontes Ed., 2019.

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