AUTO-PARASITISMO DIGITAL, OU: O ALGORITMO QUE COMIA OS PRÓPRIOS DEJETOS

AUTO-PARASITISMO DIGITAL, OU: O ALGORITMO QUE COMIA OS PRÓPRIOS DEJETOS

Pergunta: precisamos mesmo disso? Tantas coisas triviais na vida nos são vendidas como necessidades fundamentais que, em algum momento, perdemos a capacidade de discernir o que realmente é imprescindível e o que não é. Bruno Latour teorizou muito bem a respeito disso: o sucesso de uma ideia, de um produto ou serviço, resume-se a mobilizar sujeitos a crerem na necessidade absoluta dessa nova demanda. Logo, mais importante do que lançar um produto novo para uma demanda velha, é criar uma demanda nova para um produto que até então não fazia o menor sentido.

Chegamos assim à outra pergunta: as tecnologias da comunicação nos ajudam com os processos, ou os processos é que foram transformados e adequados para dar sentidos às tecnologias da comunicação? No fundo, todos nós sabemos a resposta para esse questionamento. Lembro-me como se fosse ontem quando o WhatsApp chegou, e como fiquei resistente a ele por um bom tempo. Quando precisava falar com alguém eu ligava, mandava SMS ou até e-mail. Mas eis que o WhatsApp se tornou obrigatório: todo mundo passou a usar, e os acontecimentos ganharam outra velocidade, impossível de ser acompanhada pelo antigo e obsoleto modelo de comunicação baseado em ligações telefônicas. Tive que ceder, fui “forçado” (fui mesmo?) a entrar no universo das mensagens instantâneas. Todos fomos.

“Tostines vende mais porque é fresquinho, ou é fresquinho porque vende mais”? Dito de outra forma, o WhatsApp facilita a comunicação, ou a comunicação é que se adequou ao WhatsApp? Ora, essa analogia não poderia ser mais adequada: o WhatsApp só pode facilitar a comunicação que se adequar ao seu modelo, pois tudo mais que funciona fora dele passa por severos distúrbios ora constrangedores, ora temerários.

Adequamos toda nossa comunicação ao WhatsApp, e com isso adequamos nossa linguagem e, finalmente, nossa própria cognição. E se de súbito descobrimos que esse novo modelo é perfeito para a circulação de Fake News e simulacros de diversas ordens, por outro lado já acomodamos o funcionamento de nossas consciências nesse novo paradigma comunicacional. Logo, não estamos dispostos a dar passos para trás, não queremos correr o risco de “parar a roda do progresso”, ou de parecermos retrógrados reacionários no campo da tecnologia. O que fazemos então? Inventamos leis que, voilà, também nos trazem novos prejuízos e forçam uma nova acomodação do paradigma comunicacional.

No afã de corrigir o problema do modelo comunicacional baseado nas mensagens instantâneas, que se tornou um paradigma “imprescindível” (“Oh, como pudemos viver sem WhatsApp durante todos esses milênios”? Conversando, carál&@$!), o senado tramita uma lei de combate às Fake News, que prevê uma série de medidas que exigirão uma coleta rigorosa de dados de todos os usuários dessa ferramenta. Hoje os dados transmitidos pelo WhatsApp são criptografados, o que significa um pouco mais de sigilo para seus usuários adictos. Com as novas regras para curar a ferida das Fake News, só o que conseguirão é abrir outra: a da mais completa perda de privacidade, do registro e até do vazamento (vendas?) de nossas conversas para corporações muito bem intencionadas que podem, inclusive, usar nossas mensagens no aprimoramento do poderoso aparato tecnológico de produção de Fake News.

É a isso que chamo de auto-parasitismo digital: quando a tecnociência se alimenta das próprias fezes e produz... mais fezes.

Mas não podemos voltar atrás, não é? Que ideia mais retrógrada e reacionária, João. Bem melhor é nos adequarmos a modelos que, a despeito da pesada maquiagem de progresso, também nos lançam em uma nova idade das trevas, quando qualquer fabulação caricatural prosperava com grande violência, e quando o clero sabia da vida de todos por meio do confessionário.

 

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João Flávio de Almeida
Doutor/UFSCar
​Professor e pesquisador nas áreas de Análise do Discurso, Filosofia da Linguagem, Estética da Arte e Tecnologia da Comunicação
Autor de "Palavrareia" (ficção), e "Epistemologia da Errância" (filosofia da linguagem e análise do discurso)

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