A maior saída do armário de todos os tempos

A maior saída do armário de todos os tempos

A CHAVE MESTRA

O armário estava cheio. Já não cabia mais ninguém. Eram mulheres e homens de todas as cores menos uma, de todos as classes sociais menos uma, de todas as orientações sexuais menos uma. Violentados, humilhados e ofendidos, eles se apinhavam em um armário apertado cheirando a mofo, naftalina e outras ideias velhas. A porta do armário era cheia de tramelas de diversos formatos e tamanhos, cada uma com um funcionamento e uma chave diferente. Havia a tramela do pecado, a da biologia, a da meritocracia e mais quarenta e duas trancas diferentes, administradas por homens que pareciam ter o mesmo rosto - pela gelosia só era possível diferenciá-los porque usavam roupas diferentes.

Vez ou outra, algumas fissuras se abriam vigorosas pelas paredes combalidas do armário, e um ou outro grupo tentava sair de fininho ou não pela esperança da falha. Precária ilusão. Centenas de mãos brancas e fortes corriam para emendar as brechas usando poderosas e violentas ferramentas de correção. Olhando de fora, o armário parecia um desconcertante farrapo de madeira, ferro e pó, soldado, emendado e esquecido no canto de uma sala de jogos onde poderosos apostavam a própria alma para ver quem conseguia transformar mais pedras em ouro.

À noite, depois de rodadas intermináveis de contendas meritocráticas, imperava certo silêncio. Os homens brancos voltavam para o que se imaginava serem suas casas, mas isso também era ilusão. Certa vez uma jovem pianista e cantora negra, que saiu do armário por alguns dias a convite dos poderosos, pormenorizou que os homens brancos também dormiam em um imensurável e luxuoso armário com várias antessalas acortinadas e pavimentadas com mármore preto. Ninguém conseguiu compreender exatamente o que isso queria dizer, mas não levaram adiante essa quimera. E assim o tempo passou: executavam suas tarefas tenazmente, ora para sobreviver, ora para alimentar falsas esperanças de poder trocar de armário, ou ao menos ter a chance de conhecer o afamado armário luxuoso que ficava do outro lado da sala.

Séculos se passaram assim. Pelas fendas das rachaduras no armário emergiram algumas abordagens pacíficas, outras violentas, mas os poderosos homens brancos sabiam muito bem como contornar essas perturbações no bom e velho sistema. Nada como um pouquinho de culpabilização aqui, um tantinho de silenciamento ali, e um ou outro assassinato absolvido judicialmente, para que os ânimos se acalmassem novamente.

Mas algo de novo se agitava no ar fétido do armário. Os moradores do armário do refugo foram apresentados a uma tecnologia que os homens brancos passaram a vender indiscriminadamente. Era um pequeno aparelho que conectava a todos, e supostamente parecia dar voz e alguma capacidade de organização em torno de algumas ideias e soluções. Nesse espaço alternativo, digital, os moradores do armário podiam se aventurar, ainda que vitualmente, em outros espaços e relações. Podiam, de forma discreta, sair do armário. Aquela estranha tecnologia chamada internet parecia ser uma chave mestra capaz de abrir todas as tramelas, por mais distintas e peculiares que fossem. Embora não se possa dizer que esse seja o motivo do nascedouro dessa nova insurreição, a questão é que há aí uma estranha coincidência temporal.

Ora, essa pálida experiência de liberdade não poderia ocorrer sem deixar profundas marcas e anseios. Agora os habitantes do armário queriam mais do que uma emancipação virtual, e isso era um grande problema, perigoso até. O armário, por mais abarrotado que fosse, não poderia ser aberto de súbito – seus moradores se lembravam muito bem das sangrentas consequências de tanta ousadia.

E então saíram devagarzinho.

Imaginaram que tudo daria certo se saíssem calmamente, serenamente e paulatinamente. Pensaram que explicando bem as coisas - que bater em mulheres não é uma coisa legal, que humilhar negros e LGBT+ não é normal, que obesos, indígenas, imigrantes, deficientes e pobres eram, também, seres humanos de carne, osso e sangue – seria possível, quiçá tranquilo.

E não é que as coisas pareciam caminhar bem! Por algum tempo eles conseguiram sair do armário e até fazer crescer um ideário que passou a ser chamado de “politicamente correto”. Os homens-héteros-brancos-ricos até ficaram desconcertados por tempos, tempo e metade de um tempo. Foi nessa época que diversos habitantes do armário saíram de lá, de uma vez por todas, e se assumiram com toda visibilidade que essas escolhas implicavam. Agora era possível ver uma ou outra pessoa negra como gerente de banco, algumas mulheres coordenando equipes e corporações - e sendo bem vistas mais pela inteligência que pela beleza, alguns poucos pobres fazendo faculdade, um número reduzido de LGBT+ trabalhando em shoppings sem disfarçar, e até alguns imigrantes e indígenas ganhando voz e visibilidade. Os travestis não.

Bem, agora era possível ver ambos os cárceres pelo lado de fora; era possível ver quão detestáveis eram. Por um curto período os homens brancos até se enclausuraram em seu suntuoso e secular armário. Lá dentro, munidos também da mesma tecnologia que ajudara a libertar aqueles que não deveriam ser nomeados, começava a circular dizeres como “a sociedade ficou chata”, “não se pode mais fazer piada de nada”, “destruir valores é fácil, difícil é construir e conservar”, e até “o aeroporto ficou mal frequentado, cheio de pobres”. Nesse cenário kafkiano digital, os homens brancos até reinventaram o funcionamento de algo que durante milênios foi chamado apenas de “mentira coletiva”, mas agora ganhava um aroma gourmetizado chamado de “Fake News”.

Como era de se esperar, o armário branco começou a ficar cheio, instável e prestes a explodir. Até que sua única tramela não aguentou: nessa explosão de cidadãos de bem, e defensores da família, voaram hipocrisias para todo lado, sujando paredes de casas, templos, fóruns, escolas e até museus de arte. A hipocrisia era uma gosma verde de odor forte e intolerável, mas não para os antigos moradores do armário branco. Com ódio nos olhos e no sangue, e embebidos desse fluido espesso e malcheiroso, os homens brancos agora estavam prontos para o contra-ataque. Eles também se cansaram da liberdade virtual da internet e vieram para o mundo real imaginando, como seus adversários, que explicando direitinho, usando armas, bíblias, discursos misóginos e machistas, tudo daria certo, e que eles voltariam mansinhos para o armário.

Os argumentos encharcados de gosma verde fétida eram mais ou menos assim:

1 - "Eu fui num quilombola em Eldorado Paulista. Olha, o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada! Eu acho que nem para procriador ele serve mais. Mais de R$ 1 bilhão por ano é gastado com eles" (Bolsonaro, em palestra no Clube Hebraica, abril de 2017).

2 - “Fica aí, Maria do Rosário, fica. Há poucos dias, tu me chamou de estuprador, no Salão Verde, e eu falei que não ia estuprar você porque você não merece. Fica aqui pra ouvir. (Bolsonaro, em discurso na Câmara, em 2003). Ao explicar a frase: "Ela não merece (ser estuprada) porque ela é muito ruim, porque ela é muito feia, não faz meu gênero, jamais a estupraria. Eu não sou estuprador, mas, se fosse, não iria estuprar porque não merece”.

3 - "O filho começa a ficar assim meio gayzinho, leva um coro ele muda o comportamento dele. Tá certo? Já ouvi de alguns aqui, olha, ainda bem que levei umas palmadas, meu pai me ensinou a ser homem” (Bolsonaro, em programa da TV Câmara em novembro de 2010).

4 - “Fui com os meus três filhos, o outro foi também, foram quatro. Eu tenho o quinto também, o quinto eu dei uma fraquejada. Foram quatro homens, a quinta eu dei uma fraquejada e veio mulher. (Bolsonaro, em Palestra no Clube Hebraica, abril de 2017).

5 - “Ô Preta, eu não vou discutir promiscuidade com quem quer que seja. Eu não corro esse risco porque meus filhos foram muito bem-educados e não viveram em ambientes como lamentavelmente é o teu” (Bolsonaro, à Preta Gil, quando questionado sobre o que faria se seu filho se apaixonasse por uma negra. Março de 2011).

6 - “Eu sou favorável à tortura, tu sabe disso” (A um programa de TV, em 1999). E “O erro da ditadura foi torturar e não matar” (Bolsonaro, em entrevista no rádio, em junho de 2016).

7 - “Não vou combater nem discriminar, mas, se eu vir dois homens se beijando na rua, vou bater” (Em Bolsonaro, em entrevista sobre uma foto do ex-presidente FHC ter posado em foto com a bandeira gay e defendido a união civil, em maio de 2002).

8 - “Deveriam ter sido fuzilados uns 30 mil corruptos, a começar pelo presidente Fernando Henrique Cardoso” (Bolsonaro, em programa de TV, em maio de 1999).

9 - “90% desses meninos adotados vão ser homossexuais e vão ser garotos de programa com toda certeza desse casal” (Bolsonaro, em vídeo reproduzido no programa de Danilo Gentily, sobre adoção por casais gays).

10 - “Não é questão de gênero. Tem que botar quem dê conta do recado. Se botar as mulheres vou ter que indicar quantos afrodescendentes” (Bolsonaro, em entrevista em Pouso Alegre, questionado se aumentaria o número de mulheres no ministério, em março de 2018).

11 – “Falei pra minha filha: você vai fazer até o ensino médio, depois, se quiser a faculdade você que sabe, mas até o seu casamento será apenas uma pessoa de ensino médio. Porque se a Cristiane - vem cá, Cristiane - fosse doutora, e tivesse um grau de conhecimento elevado e encontrasse um rapaz que tivesse grau de conhecimento baixo, ele não seria o cabeça, ela seria a cabeça. E se ela fosse a cabeça, não serviria à vontade de Deus” (Edir Macedo, em culto na Igreja Universal do Reino de Deus, em setembro de 2019).

Bem, o problema é que ninguém mais quer voltar para o armário. Nem o LGBT+, nem a mulher, tampouco o negro, o pobre e o imigrante. Muito menos os homens-héteros-brancos-ricos - que até conseguiram aliciar algumas pessoas que pensam não viver mais no outro armário.

Onde isso vai dar?

Talvez não dê.

(Inspirado livremente em uma ideia proposta por Aruan Henri).

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Photo by Isabella Mariana from Pexels

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João Flávio de Almeida
Doutor/UFSCar
​Professor e pesquisador nas áreas de Análise do Discurso, Filosofia da Linguagem e Tecnologia da Comunicação
Autor de "Palavrareia" (ficção), e "Epistemologia da Errância" (filosofia da linguagem e análise do discurso)

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