Memória metálica: as ambiguidades do esquecimento

Memória metálica: as ambiguidades do esquecimento

Faz quase dois meses que só se fala nos vazamentos das conversas entre Moro e Deltan, capturadas por “hackers” e divulgadas pelo site The Intercept Brasil. Independentemente do lado em que você se coloque nessa história, há uma reflexão interessante sobre tudo isso que afeta de igual forma a todos nós.

No passado, quando duas ou mais pessoas conversavam, elas seguiam um ritual que há algum tempo vem se perdendo. Ele envolvia um gestual significativo, o corpo todo participava do diálogo. Além disso, naqueles tempos já idos a fala era repleta de falhas, esquecimentos, interrupções, risos (e choros), e uma forte tendência ao esquecimento. Algumas horas depois, duas pessoas normais já não se lembrariam de detalhes dessa conversa informal.

Faz tempo que isso mudou. Agora os diálogos “digitais” são intermediados por dispositivos tecnológicos cujo funcionamento pode ser descrito como “caixa preta”, uma definição usada por Vilém Flusser, Bruno Latour e outros pensadores para se referir a tecnologias cujo funcionamento interno é desconhecido dos usuários. E o mais aterrorizante destes gadgets é o banco de dados.

Imagine o cenário: Moro e Deltan em uma mesa de bar, conversando despreocupadamente sobre qualquer assunto. Agora imagine que entre eles se instala uma parede espessa que impede a visão e a audição, e com ela um dispositivo tecnológico de conversação. Nele, cada palavra enunciada é captada por um dispositivo de entrada, criptografada, armazenada em um banco de dados, enviada para o dispositivo de saída, e então decodificada. É assim que funcionam o WhatsApp e o Telegram, por exemplo. Neste novo cenário, nenhuma palavra chega ao outro sem que fique armazenada em um disco rígido.

Agora pense comigo nos sentidos da noção de “banco de dados”. Sim, o termo “banco” é muito sugestivo, tem a ver com guardar ou depositar, mas também com comprar, vender, lucrar etc. Bancos de dados são conjuntos de arquivos e registros sobre pessoas, lugares ou coisas, capazes de serem organizados e sistematizados de forma eficiente para futuras pesquisas. No passado, apenas dados científicos, financeiros e cadastrais eram armazenados neles, mas agora todas as conversas cotidianas mais triviais passam a ter relevância neste novo sistema financeiro.

A fala intermediada por bancos de dados proporciona, segundo a Análise do Discurso, um tipo diferente de funcionamento discursivo. Ao invés de sermos impactados por Memórias Discursivas voláteis, errantes e inconclusas, a significação agora é condicionada por Memórias Metálicas. Memória Discursiva é aquela memória social e coletiva de que todos dispomos quando falamos a respeito de qualquer assunto. É por intermédio da Memória Discursiva que a palavra “vazamento”, por exemplo, pode nos remeter a sentidos e acontecimentos da época de Dilma e Lula, ou não: essa memória pode ser esquecida, apagada ou silenciada.

Mas em tempos de Memória Metálica tudo isso fica diferente. Em todos os lugares onde a telefonia móvel e os smartphones chegaram, as conversas passaram a ser transformadas em dados computáveis, armazenados em discos rígidos que parecem ser capazes de guardar “toda” a fala do mundo. Agora, quando um sujeito esquece o que falou em um diálogo ocorrido no mês anterior, basta procurar, girar a linha do tempo ao avesso, para que se possa encontrar aquela conversação de forma integral. Mais do que isso, ela agora pode ser usada como prova.

E pode ser hackeada.

No conto de Borges, Funes, o memorioso, é um sujeito incapaz de esquecer tudo o que vê, ouve e sente, e justamente por isso se torna recluso, inapto ao convívio social, e todo seu conhecimento se perde “like tears in rain” (Roy Batty). Mas no caso da memória metálica, se nada der errado, ela fornecerá essas memórias durante décadas ou séculos a qualquer um que se dispuser a procurar. Admita: estamos bem no início de uma era que se torna incapaz de esquecer, mas não com uma memória propriamente humana, e sim com uma memória terceirizada, metálica e administrada por grandes corporações. De agora em diante toda lembrança será uma retomada gerenciada segundo interesses financeiros: o Google não é capaz de mostrar tudo, e de inocente seus algoritmos nada têm.

Evidentemente que a saturação de informações gera um tipo diferente de esquecimento, mas uma busca rápida no Google pode trazer à tona significantes e significados adormecidos. Logo, na natureza dessa “nova comunicação” reside não mais o risco do esvaecimento, mas sim o perigo da hibernação. Um acontecimento discursivo qualquer pode ser “despertado” a qualquer instante por um tipo de memória diferente da tradicional memória discursiva que conhecíamos. Este “despertar da força”, contudo, passa a ser administrado por corporações que pelejam entre si pela hegemonia no mercado. Sua materialidade histórica também se perde: a implosão da temporalidade discursiva pode gerar anomalias e anacronismos na memória e na significação, um prato cheio para engendramentos ideológicos.

Naquela mesma mesa de bar, Moro e Deltan poderiam abordar qualquer assunto despreocupadamente. A duração da materialidade da fala seria o tempo da diluição das ondas sonoras pelo espaço hipotético que os circunda, e a uma velocidade de 1224 km/s este significante se perderia na eternidade. Mas agora o significante é imaterial, e pode ser armazenado em discos rígidos, o que muda radicalmente a forma com que a comunicação acontece. Agora fica difícil apagar da Memória Metálica que os sentidos de “vazamento” foram defendidos pelos mesmos que hoje tentam colar a esta palavra sentidos de criminalização.

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Referências:

Orlandi, Eni. Discurso e texto: formulação e circulação dos sentidos. Campinas: Pontes, 2001.

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João Flávio de Almeida
Doutor/UFSCar
​Professor e pesquisador nas áreas de Análise do Discurso, Filosofia da Linguagem e Tecnologia da Comunicação

Autor de "Palavrareia" (ficção), e "Epistemologia da Errância" (filosofia da linguagem e análise do discurso)

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