A morte do pensamento

A morte do pensamento

| DATAÍSMO

Nosso corpo produz dados (informações) por intermédio dos cinco sentidos, e estes dados são processados pelo cérebro humano, nosso processador biológico. Faz tempo que não confiamos neste processador, faz tempo que terceirizamos a análise e a compressão destes dados produzidos no encontro do corpo com o mundo. No passado, esse processamento foi deslocado para as estrelas, depois para as religiões (que colocaram um deus invisível no lugar), e na modernidade colocamos a razão científica e matemática (humana?) no centro desse processamento de dados.

Hoje quem está no centro do processamento, do pensamento, é a big data, a internet, os dados digitais e sobretudo os processadores de silício. Hoje não procuramos mais respostas em livros, nem em deuses, mas na internet. É ela quem organiza as informações – produzidas em larga escala. São os algoritmos que sabem tudo e organizam tudo, são eles que nos revelam a verdade, como um profeta feito de números.

Este é o Nume-Num, a potestade feita de números e algoritmos. Um novo tipo de deidade, onipresente, onipotente e onisciente (ao menos parece ser assim). A infraestrutura tecnológica é apenas o canal de conexão entre o Nume-Num e nós.

O mundo natural não era compreensível pelo ser humano, aparentemente só por Deus. Mas agora abandonamos o mundo material e criamos um mundo digital, que nem é mais virtual (enquanto potência – ele é cada vez mais impossível de se realizar). E agora este mundo digital se torna tão gigantesco que novamente o ser humano não consegue compreender e processá-lo, só as máquinas. O problema é que estes algoritmos pertencem a corporações muito bem definidas.

Os algoritmos nos vigiam, nos analisam, nos compreendem melhor que nós mesmos, e agora ocupam o lugar que antes foi das estrelas, depois dos deuses e, por fim, do sábio: é o big data que nos orienta no mundo, nos dá respostas, perguntas, e todo tipo de sentido para a vida. Mas já não é a mesma vida, é uma vida imaterial, digital, organizada em rede.

Tudo é quantificado. Tudo é matematizado. Antes tomávamos decisões movidos pelos afetos, pelo medo e pela esperança, e então profetas e sábios tentavam ajudar a humanidade a viver melhor com as adversidades do mundo. Agora basta uma série de cálculos e já podemos saber os problemas do solo na agricultura, saber os melhores produtos a serem plantados ali, podemos saber quando vai chover, podemos saber quando plantar e colher, tudo calculado, tudo matematizado. Nem deuses, nem profetas, nem sábios experientes: o algoritmo.

O discurso tecnológico trata, então, de deslegitimar o conhecimento humano, que se torna inferior, falho, enviesado ideologicamente, injusto, conflituoso. Nossas percepções também são falhas: os olhos das câmeras são melhores, os termômetros, os microfones e todo aparato capaz de capturar o suprassensível nos deslegitima completamente. É a morte do pensamento.

Inferiorizado, os bits de processamentos humanos passam a ter o mesmo valor que os bits das máquinas. O problema é que nosso processador biológico não sofreu grandes upgrades nos últimos 300 mil anos, ao passo que os processadores da Intel melhoraram 300 mil vezes nos últimos anos. Diante da quantidade gigantesca de dados, e de nossa capacidade proporcional cada vez menor de processar estes dados (1x1¹¹¹¹¹, hoje, para 1x¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹¹ amanhã), os dados baseados na vida humana se tornam cada vez mais ínfimos em um oceano cada vez mais descontrolado de dados inumanos. A quantidade gigantesca de dados digitais nos engole, e nós nos tornamos integrados ao sistema, subsumimos nele, e não o contrário; mas principalmente nos integramos a ele como coadjuvantes, como dados cada vez menos importantes.

Nos reduzimos ao plano dos dados, somos reduzimos a metadados, e fica parecendo que a matemática pode organizar e explicar tudo. Tudo o que pensamos, todas as informações que produzimos, são “compartilhadas” na internet. Todas as linguagens passam a ter uma sub-linguagem anterior, a da programação. Imagens, textos, áudios, tudo o que se dá aos nossos dois sentidos (visão e audição¹) é convertido, processado e decodificado por dados e algoritmos. A linguagem binária dos códigos é a nova linguagem das linguagens. É o suporte dos suportes (a música já esteve suportada no vinil, na fita, no CD, o filme e a fotografia também tiveram diversos suportes diferentes), agora todos são suportados pela linguagem binária dos dados: armazenáveis, quantificáveis, analisáveis. Se antes estávamos separados da glória de Deus por causa de nossos pecados, hoje somos completamente capturados e acoplados pela nova deidade, uma relação religiosa simbiótica, o dataísmo.

 

|  Para existirmos neste novo mundo digital, precisamos converter todas nossas experiências em dados.

Já não é moda ou vício, mas sobrevivência em um novo mundo. Tudo o que pensamos sobre a existência ganha novos contornos. Consciente e inconsciente, ser-em-si e ser-para-si, dasein, espaço-tempo, duração..., tudo muda. Vivemos muito mais tempo lá no digital que no material. Este novo mundo possui novas regras sociais, novas regras linguísticas, novas ontologias, novos modos de subjetivação e construção de identidades.

Ficar desconectado é ficar desconectado deste outro sujeito que é o “eu” digital. É desconectar de sua identidade digital, de um “eu” digital. Este “eu” digital é constituído de dados, processados e organizados por algoritmos. E toda vez que o encontro, o eu material se mistura e se confunde com este “eu” digital. Este é um problema ontológico: o que sou? Metade corpo, metade dados. Ou somos muito mais dados que corpo? Todo tempo de vida diante de telas é a negação do “eu” corpo em virtude do “eu” digital. Em pouco tempo a identidade digital se sobrepõe à identidade física, que se torna escrava da primeira. O corpo no mundo serve apenas como fonte de dados para a existência digital, enquanto esta aqui é macerada, dilacerada, sedentarizada, despossada, furtada e exaurida, a outra sorri, se embeleza, se diverte e se expande.

A experiência corpo/mundo perde completamente sua importância. Só importa a experiência transformada em dados, que podem ser maquiados, transformados, mas principalmente calculados e administrados pelos algoritmos, que na volta nos força a adaptar o corpo/mundo às exigências do digital. Na viagem, o importante não é a experiência, mas o registro em dados.

A maior virtude do dataismo é que ele fornece uma conexão direta com este novo deus. Na idade média o ser humano se conectava com deus pela fé, uma conexão muito frágil e etérea. Na modernidade a conexão do homem com o homem era intermediada pela ciência e pela filosofia, conexões pouco democráticas. Agora é diferente: todos podem se conectar diretamente a este novo deus, e podem fazer parte de seu próprio corpo. Diferente da hóstia, quando ingeríamos uma parte do corpo de Cristo, ou seja, quando introjetávamos um pedaço do corpo de Jesus no nosso, agora nós é que nos diluímos no corpo imaterial deste novo deus. Nós é que fazemos parte dele.

Mas que corpo é este? É possível usar o termo “corpo digital”?

Nem tudo no ser humano é reduzível a dados. Mas as corporações se esforçam para reduzir o valor do pensamento humano tanto quanto para “humanizar” o pensamento algorítmico. De fato, o marketing faz parecer que os algoritmos estão em todos os lugares, produzindo uma autoridade por pavor. Esta narrativa de que as I.A.s estão em todos os lugares nos assustam e nos assujeitam.

Algo da dinâmica teológica permanece neste novo modelo: na bíblia o ser humano é reduzido a criatura de deus, imagem e semelhança dele, templo do espírito santo, mas carne pecaminosa. A vida e o corpo são apequenados para caberem dentro de uma racionalidade menor, apertada.

Agora nós nos diminuímos aos dados. Somos muito maiores que eles, mas fazemos uma série de rituais mágicos para cabermos dentro dos dados matematizados. Nos adequamos tão bem quanto um elefante dentro de uma caixa de sapatos. Mas com os rituais certos, nossas imagens de nós mesmos são adulteradas, e por esta nova lente deturpada cabemos perfeitamente dentro de dados diminutos, agora sim aptos (justificados) a existir no universo digital, para existirmos como dados, aptos a nos tornarmos portas de entrada e saída e diluição do material no digital, e vice-versa.

 

| REORIENTAÇÃO DA MÍMESIS.

O mundo material imita o ideal, dizia Platão. Agora o mundo material imita o digital: já não é o mesmo mundo das ideias, é outro, terceirizado, no qual somos acoplados. Nós é que nos moldamos aos algoritmos, e não o contrário. Nossos processos estéticos, culturais, didáticos etc. são capturados pelos processos algorítmicos.

Supostamente mais conectados, estamos cada vez mais solitários, doentes e moribundos. Supostamente mais inteligentes, terceirizamos o pensamento - o processamento dos dados produzidos pelo corpo (que também perdem valor em meio a tantos dados digitais). Estamos em uma sociedade cada vez mais complexa, não mais processada pelo pensamento humano. Nos tornamos coadjuvantes tanto nos dados produzidos quanto no processamento do mundo.

 

1 - Me parece que usar o tato, o olfato e o paladar são pequenas formas de resistência. Somos capturados pelos olhos e pelos ouvidos, que é por onde o conhecimento proposicional caminha.

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