O algoritmo, a arte e a repetição

O algoritmo, a arte e a repetição

Quando se pensa em tecnologia, existem duas terminologias que podem guiar nossos olhares: tecnofobia, e tecnofilia. A definição desses conceitos é mais ou menos evidente; tecnofóbicos são aqueles que temem os avanços tecnológicos, e os tecnofílicos, ao contrário, são apaixonados pelo progresso tecnocientífico. Eu, particularmente, busco uma visão dialética que contemple a contradição e a errância, busco pelo inconcluso.

Para isso faz-se necessário evitar previsões - faz mais sentido olhar para o passado de campos onde a tecnologia já produziu efeitos suficientes para tirarmos algumas conclusões. E um dos universos culturais onde a tecnociência mais atuou desde o século XV é o campo da música. Para falar dos impactos e das revoluções tecnológicas neste importante universo artístico, convido para um diálogo dois pensadores e pesquisadores da área: Fernando Emboaba de Camargo, doutor em música pela Unicamp, e Rafael Alexandre da Silva, doutorando em música pela Universidade Federal do Paraná.

 

QUAIS FORAM AS TRANSFORMAÇÕES TECNOLÓGICAS QUE REVOLUCIONARAM O CAMPO DA MÚSICA DOS SÉCULOS XV ATÉ O FINAL DO SÉCULO XIX?

Rafael

No início do período conhecido como Renascimento, uma das principais transformações tecnológicas na música foi a retomada dos estudos sobre a afinação – modos de dividir e medir as oitavas e as notas. Surgiram instrumentos capazes de medir as frequências das notas de forma proporcional, o que permitiu formar uma paleta de notas - a escala cromática. Diversos instrumentos foram revoluções tecnológicas, também. A própria invenção do piano é uma revolução tecnológica muito importante: ela já incorpora a afinação temperada, além de diversos mecanismos já cientificamente estudados que implicavam na melhor propagação do som, além de controles como o de abafamento do som. Neste aspecto, a música deve muito à tecnologia.

Fernando

No início da modernidade são retomados diversos estudos em relação à afinação da música. Há um importante retorno aos estudos pitagóricos de afinação, além de um saudável retorno à matemática. Surgiram também estudos com relação à acústica dos instrumentos e das salas de concerto, que permitiram novos tipos de produção e escrita musical. Já perto do romantismo, com seu Ápice em Wagner, surge a expansão da orquestra para alcançar uma massa sonora mais intensa.

 

O QUE AS TECNOLOGIAS MUDARAM NA MÚSICA DO FINAL DO SÉCULO XIX ATÉ O FINAL DO SÉCULO XX?

Rafael

Já no final do século XIX, a principal transformação foi a invenção do gramofone, que permitiu novos modos de registro e arquivamento do som e da música. Já existiam certos instrumentos autônomos, mas o gramofone foi quem mudou tudo. Ele transformou a dinâmica fundamental entre o compositor, o intérprete e o ouvinte. Antes dele, toda música era necessariamente “ao vivo”, logo, toda experiência musical era de outra natureza. Com o gramofone, os modos de fruição se tornam alienados e separados da produção e da execução pela primeira vez. Isso implicou, desde já, na quantidade de coros e orquestras. Com a fruição “doméstica”, teatros e casas de espetáculos começaram, lentamente, a se esvaziar. A aura e a sacralidade do momento da fruição se converteram, lentamente, em fruição trivial. A apreciação musical, como um todo, também perdeu espaço. Com o gramofone a música é democratizada, se torna acessível para mais pessoas, mas implica que ela seja replicada e seriada, e que uma execução (um momento) se torne padrão, apagando a peculiaridade de cada execução.

Fernando

Na primeira metade do século XX, a válvula foi a tecnologia que proporcionou mais transformações, principalmente através de equipamentos de amplificação da música; e isso mudou tudo. Essa tecnologia revolucionou a relação entre os quatro parâmetros do som na música: timbre, intensidade, altura e duração. Com amplificadores, a ênfase é colocada no timbre e na intensidade, em detrimento da altura e da duração. Da década de 1950 em diante, a principal transformação foi a sintetização sonora, a capacidade de sintetizar artificialmente sons naturais ou inéditos. Com isso surgiu a música eletroacústica, onde a fonte sonora passa a ser invisível, oculta, acusmática. A música pop incorporou esses mecanismos, o que demandava uma necessidade cada vez menor de instrumentistas, já que um aparelho eletrônico poderia sintetizar artificialmente diversos e inúmeros instrumentos. Surge toda uma nova linguagem musical, com novos modos, timbres e organização do discurso musical. E na indústria surge a possibilidade de produções em larga escala com custos cada vez menores, mas também com grandes prejuízos para os músicos que sobreviviam deste trabalho.

 

AS TECNOLOGIAS DEMOCRATIZAM A PRODUÇÃO ARTÍSTICA?

Rafael

Eu sou otimista. Os streamings democratizam sim o acesso, mas o acesso é diferente do acessar. Existe um processo educativo, de formação do indivíduo, para que ele aprenda a diferenciar tipos de manifestações artísticas – as que reproduzem e reforçam modelos (aquilo que Adorno chama de “liberdade para o sempre igual”, e as que propõem subversões. Isso não quer dizer que devamos hostilizar plenamente a indústria, pois existem boas produções ligadas a ela, ao passo que existem, por outro lado, coisas ruins na música de concerto elitista. Mas não se pode pensar a questão da democratização de forma dissociada da educação do ouvinte. Logo, o problema não está na técnica e na tecnologia da reprodução musical, mas na educação e formação do indivíduo, para que ele tenha contado com diferentes indústrias culturais, tanto com a de mercado que preza apenas o consumo, quanto com uma diferente dessa.

Fernando

Sim, a tecnologia democratiza tudo. Focando na tecnologia “internet”, sim. Os equipamentos usados até o advento da internet eram caros, para poucos, usados em universidades e grandes estúdios. Essa tecnologia cara criava um abismo entre os que tinham acesso a ela e os que não tinham, reforçando o caráter elitista e seletivo do universo da música. Com o advento da internet essa democratização se torna maior. Os recursos tecnológicos ficaram mais baratos, e os home estúdios ficaram mais comuns. Em nossos dias, fazer circular o produto musical final, na internet, se tornou muito mais fácil.

 

QUAIS OS EFEITOS NA MÚSICA DA JUNÇÃO TECNOLOGIA/MERCADO?

Rafael

A própria tecnologia é, também, uma expressão humana. O conceito de arte, por outro lado, é muito complexo, por isso vou dar exemplos na história da música. Na música, quando você tinha uma mudança tecnológica em instrumentos, você tinha toda uma mudança de espaços, linguagens e execuções que produziam grandes revoluções no universo musical, e isso não era tido necessariamente como algo ruim. Mas o que dizer de um Teremim? Este é um instrumento novo que produz sons a partir de um campo magnético (ver vídeo). O Teremim é um aparato tecnológico que demandou muita pesquisa e tecnociência, mas pode ser usado para produzir efeitos estéticos e artísticos como qualquer outro instrumento. A questão, então, não está somente no aparecimento da tecnologia na música, mas na forma com que ela será usada.

Fernando

A tecnologia cria uma ilusão de alta performance na música. Assim como um atleta, um bom músico precisa ter compreensões de estilo, mas também precisa se preocupar com questões físicas. O cantor e o instrumentista precisam de grande treino muscular para conseguir tirar boas notas que levem em consideração timbre, duração, altura e intensidade. Músicos de alta performance treinam durante anos para alcançar a qualidade necessária, assim como um esportista. Mas a tecnologia proporciona diversos atalhos que dispensam a alta performance do músico. Fazendo um paralelo com o futebol, agora é como se você tivesse um time com jogadores ciborgues, com pernas biônicas que permitissem super velocidade, super força e super resistência. Na música, muitos dos instrumentos exigem um trabalho de aproximadamente dez anos para conseguir bons timbres, para conseguir um bom controle da intensidade sonora etc., e tudo isso é um trabalho corporal, físico, que passa a ser minimizado ou descartado pelo amplificador. Se Wagner precisava de uma grande orquestra para produzir uma intensidade sonora impactante, agora quatro indivíduos, cada um em um instrumento, são capazes de produzir o mesmo impacto sonoro. A técnica musical foi banalizada, e o espectador perdeu a capacidade de discernir aquilo que possui uma alta performance daquilo que é um mero atalho técnico. Com tantos atalhos, o mercado pode se concentrar apenas em encontrar rostinhos bonitos, porque o resto a tecnologia resolve. Agora imagine: qual seria a graça em uma partida de futebol entre dois times que apenas controlassem máquinas que não se cansassem, e que corressem de forma extra-humana?

 

A TECNOLOGIA PODE SUBSTITUIR A ARTE HUMANA?

Rafael

Se pensarmos na arte como surgiu, e como sempre foi vista, é impossível que uma I.A. tome por completo o papel do artista. A arte tem um lugar privilegiado dentro das formas de conhecer o mundo e lidar com as realidades humanas, assim como a ciência e teologia. Não é só uma questão técnica, não tem a ver só com produção: ela é uma forma de contemplação da realidade. Assim como a filosofia, a arte está relacionada com as formas de fruir o mundo. Uma máquina ainda não é capaz de fruir o mundo, logo, ela não é capaz de produzir efeitos de fruição do mundo. A arte também é um produto de luxo, e por mais que ela perca força mercadológica, sempre haverá nichos de consumo para ela. A tecnologia, como dito antes, pode servir como ferramenta para a criação artística, e não precisa ser compreendida como concorrente do artista. A arte é uma forma de produção de coisas que é muito humana; a arte é uma das coisas que nos define como seres humanos. Fora do humano, ela é somente técnica e mercado. E a arte é incomercializável: quando ela é comercializada, deixa de ser arte e se converte em produto artístico, o que é bem diferente.

Fernando

Acredito que o computador poderá sim compor sinfonias inteiras e complexas. Os algoritmos podem aprender, a partir do rastreamento de todas as decisões de composição de milhares de compositores, e então compor e até executar músicas “virtuosas”. E se continuarmos nessa lógica de mercado, onde importa aumentar o lucro e diminuir os custos, sim, acredito que o algoritmo possa substituir completamente o músico, e o público vai assimilar isso, o que será ótimo para o mercado. Não podemos subestimar a capacidade do mercado em transformar hábitos de consumo; se toda a arte for convertida em mero produto, não se pode negar a possibilidade de que o mercado consiga mudar a fonte da arte e acostumar o público com isso. E então a questão do músico, como conhecemos hoje, se tornará apenas uma questão de fetiche, de distinção de classe. Diante do barateamento proporcionado pelas tecnologias, a individualidade, e mesmo a produção humana coletiva, serão mitigados, porque tudo isso será entendido como caro, e a sociedade vai se acostumar com isso. Acredito que sim, os computadores irão engolir as questões da composição e até da performance musical. Os instrumentos musicais restarão como meros objetos terapêuticos. Com o predomínio das demandas mercadológicas, o algoritmo vai engolir a individualidade humana.

 

QUAIS SÃO OS EFEITOS IDEOLÓGICOS DE UMA MÚSICA COMPOSTA POR UM ALGORITMO?

Fernando

Faz tempo que o mercado consome somente produtos “kitchficados” - kitchs são cópias apequenadas e estereotipadas de objetos artísticos, simplificações que se apresentam como produtos profundos e emocionantes, mas que não passam de objetos vulgares, baratos, sentimentais e cafonas, destinados ao consumo de massa. Hoje em dia os indivíduos, a partir de suas próprias experiências e egos, pelejam entre si para tentar afirmar que seus kitchs favoritos são melhores que os kitchs do outro. Nos acostumamos com uma kitchficação da música, nos acostumamos com cópias baratas, pasteurizadas. O mercado é um coringa, ele se adapta a qualquer coisa, mas sempre tendendo a simplificar. O principal efeito ideológico do kitsch é que a simplificação tem muitas consequências sociais: ela aplaina a experiência, diminui a fruição e administra a reflexão sobre o mundo.

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Considerações e inconclusões

Muitas vezes acolhemos as transformações tecnológicas sem pensar que elas são, antes de tudo, manifestações mercadológicas de uma corrida capitalista sem fim, com uma ética própria que nem sempre se guia por um humanismo responsável. No caso do universo musical, a contradição é evidente: a tecnologia produziu grandes avanços na linguagem, nos instrumentos e na técnica, mas em algum momento começou a substituir orquestras por gramofones, técnica por amplificadores, instrumentos por sintetizadores, vozes por rostos bonitos. A tecnologia a serviço do mercado esvaziou o teatro e a sala de concerto, diminuiu a quantidade de músicos e aplainou a experiência estética musical.

Contudo, a tecnociência capitalista fez isso com a música em um ritmo bem lento, quase invisível. Os músicos não puderam ver, no decorrer do século XX, que tantas transformações tecnológicas culminariam no cenário atual, onde canções sintéticas, com custos de produção relativamente baixos, alcançam projeção e retorno financeiro infinitamente superior às mais respeitadas orquestras sinfônicas. Quem poderia imaginar que o fetiche e a sedução tecnológica poderiam exaurir a própria experiência e fruição musical?

À luz das reflexões sobre a música, outros questionamentos parecem ganhar contornos mais sombrios: será que a tecnociência pode roubar o emprego do metalúrgico, do professor, do jornalista, do publicitário, do advogado...?

 

Photo by Vova Krasilnikov from Pexels

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João Flávio de Almeida
Doutor/UFSCar
​Professor e pesquisador nas áreas de Análise do Discurso, Filosofia da Linguagem e Tecnologia da Comunicação
Autor de "Palavrareia" (ficção), e "Epistemologia da Errância" (filosofia da linguagem e análise do discurso)

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