POLÍTICA E TECNOLOGIA: O NÚCLEO DURO DO BURACO NEGRO

POLÍTICA E TECNOLOGIA: O NÚCLEO DURO DO BURACO NEGRO

Na polarização política brasileira o conceito de “núcleo duro” já não é mais capaz de dar conta das radicalidades dos discursos - talvez nunca tenha sido. Neste texto proponho a analogia do “Buraco Negro”, com seu “Horizonte de Eventos”, como noção capaz de fornecer um modelo com uma quantidade maior de matizes.

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Foi só no início de 2020 que assisti ao filme “Dois Papas”, dirigido por Fernando Meirelles. Nele me tocou a cena em que o então cardeal Jorge Bergoglio se recorda do período da ditadura em seu país. Mas o que me chamou a atenção não foram os gestos controversos do futuro papa, mas a conduta segura dos sujeitos – militares e civis - que faziam funcionar um sistema de assassinatos e torturas a opositores do regime. Não foi a primeira vez que tal questionamento povoou minha consciência confusa: “como pode um discurso ‘colar’ com tanta força, ao ponto de que um ser humano, de carne e osso, inflija dor e morte a outro humano, também de carne e osso, pelo simples (sim, é muito simples) fato de que o segundo possua um apanhado de verdades diferentes do primeiro?”

Não consigo deixar de colocar em questão a palavra “verdade”, essa noção perigosa e assassina. A verdade não liberta, a verdade mata. Já argumentei em outros textos neste mesmo canal que a epistemologia e a filosofia da ciência há muito já não trabalham com esse conceito; muito melhor é o de probabilidade – mais condizente com a contingência do mundo natural e das relações sociais, além de deixar uma saudável abertura para a dúvida.

A polarização política brasileira se tornou um campo de embates onde tudo isso pode ser visto em sua mais degradante materialização. Um termo que se tornou muito comum nestes tempos é o de “núcleo duro”, e foi justamente diante dele que meu questionamento sobre o “crime de pluralidade” encontrou o pantanoso terreno da “verdade”. Na intenção de fornecer um modelo teórico para pensar esse fenômeno, proponho aqui a analogia do Buraco Negro como alternativa às noções de Núcleo Duro e outras mais contemporâneas e igualmente imprecisas, como Bolha Ideológica e Viés de Confirmação.

Um buraco negro, todos deveriam saber, não é uma negatividade, como o nome sugere (buraco). Ao contrário, trata-se de uma totalidade, ou melhor, de uma unidade positiva. Esse assustador fenômeno da natureza ocorre depois que uma estrela gigante queima toda sua energia e começa a se colapsar sobre si mesma – estrelas pequenas não possuem massa suficiente para se transformarem em buracos negros. A gravidade, que até então fazia com que outros objetos naturais gravitassem ao seu redor ainda na forma de corpos distintos, se torna incrivelmente potente, ao ponto de que tal força exerça atração sobre tudo que está ao seu redor. No início planetas, luas, asteroides e outros corpos celestes são atraídos para seu núcleo lentamente, até que essa gravidade se torne tão intensa que a velocidade de atração se torne igualmente assombrosa e violenta - aliás, tudo ao redor de um buraco negro acontece de forma violenta.

Um fenômeno muito interessante que ocorre ao redor de um buraco negro é o “horizonte de eventos”. Ele funciona como uma linha divisória que marca a distância e o momento em que, dali em diante, nada mais pode escapar a tamanha força gravitacional, nem mesmo a luz. Recentemente um projeto internacional conseguiu, usando vários telescópios espalhados ao redor do mundo, “fotografar” um buraco negro. De fato, o que conseguiram foi registrar luzes e energias que estão fora do horizonte de eventos pois, uma vez dentro desse limite mortal, nada mais sobrevive.

Quando um corpo celeste ultrapassa o limite do Horizonte de Eventos, outros fenômenos terrificantes começam a ocorrer. A força gravitacional do buraco negro se torna maior que a capacidade de um corpo se mover no vácuo, ou seja, ele não dá conta de se mover tão rápido e começa a se desintegrar. A cada centímetro mais próximo do buraco negro a força gravitacional é maior em toneladas, até que um único átomo não consiga se manter íntegro durante a viagem em direção ao núcleo duro. Depois dessa decomposição radical da matéria de um corpo celeste, ela se reencontra no buraco negro, mas agora na forma de uma unidade plena com bilhares de outros corpos que ali se encontraram: uma fusão tão intensa que impossibilita qualquer movência ou ruptura. Aqueles corpos já não existem mais com autonomia, nem mesmo que relativa. Agora só existem em unidade com o buraco negro.

A última e talvez mais terrificante mensagem de um buraco negro é que ele cresce, e cresce muito. Stephen Hawkins propôs um modelo em que essa força da natureza pudesse crescer sobremaneira, ao ponto de se tornar instável e se desfazer, liberando energia e matéria na forma de um Big Bang.

Na sexta-feira (24/abril) em que o então ministro da justiça Sérgio Moro pediu demissão, uma quantidade muito grande de sujeitos da extrema direita ultrapassou o Horizonte de Eventos que conduz ao buraco negro Bolsonaro. Esse fenômeno tem uma série de complexidades que a simples noção de “núcleo duro” não é capaz de explicar.

Podemos, até então, entender Bolsonaro como uma estrela, uma ideia, ao redor da qual orbita uma miríade incontável de corpos celestes com ideias orientadas em sua direção, mas ainda com certa identidade e relativa autonomia. Isso é absolutamente normal. O ser humano aparentemente tem muita dificuldade em perambular pelo espaço como asteroides errantes, haja vista que a imensidão do cosmos produz um tipo de vertigem angustiante demais para ser acolhida e administrada. É assim que nos colocamos na órbita de alguma estrela, e elas são muitas.

Sendo um nietzschiano, não concordo com a ideia de que todos precisamos de uma estrela ao redor da qual orbitar, mas compreendo minimamente o sujeito que se deixa cair em uma determinada órbita para não ter que afrontar o infinito desconhecido. O problema realmente começa quando uma estrela começa a se colapsar sobre si mesma, produzindo um buraco negro.

Faz já algum tempo que Bolsonaro se tornou um. Não acho tão simples precisar o instante, nem as causas, mas de fato já alguns pares de anos ele começou a exercer uma força de atração muito grande sobre corpos celestes que perambulavam à deriva pelo espaço, mas que estavam desesperados para encontrar uma órbita simples, poderosa e convincente.

No início era só uma órbita, tratava-se apenas de uma aproximação convenientemente ordenadora de ideias. Todavia tal estrela cresceu demais, e em um determinado momento deixou de lançar calor e energia para seu sistema solar e voltou-se completamente para si mesma: tornou-se um buraco negro. Até então era possível que certos eventos pudessem desviar a rota e colocar os corpos celestes em outras órbitas; até então eles existiam como alteridades separadas do buraco negro. Mas a ruptura do presidente com Sérgio Moro, o paladino da justiça que colocou Lula na cadeia, lançou uma quantidade muito grande de sujeitos para além do horizonte de eventos desse buraco negro. Agora não é mais possível mudar de órbita pelo simples fato de que a própria noção de órbita, enquanto movimento, já não se aplica. Trata-se, agora, de uma unidade indivisível. Essa unidade, contudo, não é meramente política: é afetiva, emocional, apaixonada, ressentida e inequívoca. Ela é tudo.

Isso implica dizer, o que é fácil de constatar, que o bolsonarista já não é capaz de pensar nada mais no mundo fora do prisma Bolsonaro. Frequentemente vemos um Jesus bolsonarista, um mercado financeiro bolsonarista, uma sexualidade bolsonarista, um sistema de verdades bolsonaristas, uma ética inteira bolsonarista, enfim, que traz em seu bojo todas as diretrizes do buraco negro, a saber, um conservadorismo machista, racista, misógino, homofóbico, avesso às artes, à ciência, à cultura e ao diálogo.

Uma vez dentro do buraco negro, tudo que está lá fora é visto como “comunista”, ou seja, a definição do diferente é inerentemente a de um vilão a ser combatido, e se preciso for, a ser eliminado. E é assim que, fundidos em amor e ódio ao buraco negro, vemos sujeitos avançar sobre profissionais da saúde que homenageiam aqueles que morreram combatendo o Covid-19. É assim que se pode compreender “protestos a favor” do presidente, além de aglomerações em tempos de pandemia e uma série incontável de gestos violentos e inaceitáveis.

Mas nem todos ultrapassaram o Horizonte de Eventos do buraco negro Bolsonaro. No fatídico cataclisma com Sérgio Moro, vários corpos celestes aparentemente mudaram de rota, e conhecidos defensores do presidente perceberam que não era possível segui-lo dali em diante. Mas aqueles que permaneceram na rota agora precisam, necessariamente, ver até mesmo em Moro um inimigo comunista aliado à Globo, ao Dória e à China. Não há volta. Não há mais mundo fora do buraco negro. Finalmente, nem mesmo se o próprio presidente assumir suas corrupções essa unidade poderá ser quebrada: bastará dizer que o fez com o objetivo de salvar o povo brasileiro das garras do comunismo que a singularidade estará salva.

Importa, contudo, lembrar que Bolsonaro não foi o único, tampouco o mais perigoso buraco negro. Vimos Hitler e Stalin matando poetas, e antes deles o clero enforcando cientistas, tudo muito bem “justificado”. Existiram muitos outros, impossível catalogar. Hoje mesmo, ao redor do mundo, existem vários, e no Brasil ainda assombra os vestígios do buraco negro Lula. Não se pode negar que ainda hoje muitos da esquerda não são capazes de conceber nada no mundo fora do lulismo; para estes, a esquerda toda pertence ao Lula, bem como as ações sociais, as universidades públicas, a liberdade de gênero o mundo todo. Ainda hoje vemos incontáveis sujeitos que ultrapassaram o Horizonte de Eventos e não puderam mais voltar, permaneceram com Lula, em unidade, a despeito do mensalão, de Belo Monte, de Pasadena e do estelionato eleitoral de 2014. Para tudo há explicação, para tudo há justificativas.

Um modelo mais saudável deve funcionar na forma de um sistema solar médio, onde estrelas pequenas brilham e orientam órbitas, mas mantém individualidades estáveis. Quando estrelas crescem demais, não demora muito a ruína de tudo ao seu redor. O mais assustador é pensar que tais buracos negros podem crescer vertiginosamente. No caso em questão, eu e muitos de vocês, que nem somos comunistas quilombolas gayzistas globalistas aliados da China e de Cuba, seremos eliminados em prol do bem do povo brasileiro.

 

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João Flávio de Almeida
Doutor/UFSCar
​Professor e pesquisador nas áreas de Análise do Discurso, Filosofia da Linguagem e Tecnologia da Comunicação
Autor de "Palavrareia" (ficção), e "Epistemologia da Errância" (filosofia da linguagem e análise do discurso)

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