Os perigos de uma história só

Os perigos de uma história só

Devemos essa proposição à escritora nigeriana Chimamanda Adichie. Ela argumenta, em entrevistas e palestras, que o continente africano tem sido descrito e narrado de fora para dentro, quase sempre a partir de preconceitos e estereótipos totalizantes que apagam a potência de ser e a pluralidade de mais de um bilhão de pessoas. Os sentidos de “perigo” emergem quando essa história se torna a única contada, como uma narrativa oficial construída a partir de recortes muito limitados de uma realidade abrangente. Nesse caso, não só o gesto de produzir uma única história é limitante e perigoso: a própria história única é, ela mesma, rudimentar e reduzida. No final da equação, aponta a escritora, a solitária narrativa sobre a África que se espalha pelo mundo globalizado descreve uma região miserável, subdesenvolvida e selvagem, sentidos que não só contaminam o imaginário coletivo, mas também fomentam ódio e desprezo capazes de intensificar as dificuldades totais do continente. A África é muito mais do que isso: existem outras histórias que reclamam escuta.

No universo comunicacional contemporâneo esse problema ganha novos contornos e proporções. Vivemos a era da contradição na amplitude das narrativas: tornam-se mais plurais e fragmentadas, e ao mesmo tempo totalizantes e encerradas nelas mesmas. Com o aumento da fragmentação, a amplitude de cada narrativa diminui de forma sistemática, mas paradoxalmente adquire status de universalidade, de dimensão total - totalidade entre totalidades, miríades de histórias únicas.

Nas redes sociais esse fenômeno é latente. O aprimoramento dos algoritmos se encarregou de criar o que chamamos de “bolhas ideológicas”. Eles administram a circulação da informação a partir de interações que, além de intermináveis repetições, geram o apagamento das demais narrativas. Grosso modo, o algoritmo entrega ao usuário posts e informações capazes de segurá-lo por mais tempo na plataforma digital, mas isso não é tudo. As mídias sociais se tornaram grandes canais para circulação de marcas e produtos; e todo mundo sabe que uma das máximas do universo das vendas é fazer o cliente mais feliz antes que depois da compra. Por isso, Facebook, Instagram, Twitter, YouTube etc. tentam garantir ao usuário uma experiência prazerosa apta ao consumo, o que implica diminuir sistematicamente conflitos e desconfortos. Consequentemente, esses algoritmos tentam entregar informações que ele (titio Zuckerberg) acredita serem mais condizentes com a satisfação de cada espectador. Dito de outra forma, os algoritmos das redes sociais, que aparentemente só queriam gerar bolhas por motivos mercadológicos, se tornaram grandes máquinas discursivas de produção de narrativas excludentes. E quando um furo acontece, quando o conteúdo de um post gera desconforto, o próprio usuário se encarrega de excluir seus desafetos do seu rol de “amigos”.

Na psicanálise, dois termos podem nos ajudar a compreender melhor esse fenômeno: foraclusão e denegação. Não me atreverei a desdobrar esses conceitos com profundidade e precisão, mas sim a especular a respeito deles em relação à problemática das histórias únicas. Foraclusão tem a ver com rejeição do significante para fora do registro simbólico, ou melhor, trata-se do banimento de um sentido, de uma verdade, de um acontecimento etc., ao ponto de apagá-lo da existência. Foracluir é mais que deixar de fora, é excluir e esquecer.

Por outro lado, a denegação é um mecanismo de defesa em que o sujeito se recusa a reconhecer como seu um pensamento ou um desejo que ele manifestou conscientemente no passado. Trata-se, portanto, de uma desestruturação de si cuja primeira reação é ver, mas ao mesmo tempo não enxergar; ouvir, mas não escutar; entender, mas não compreender. Essa palavra é bastante empregada também no universo do cinema para definir a imersão do espectador no filme. Ainda que ele esteja consciente diante de uma falsa realidade, o espectador se entrega à ficção.

Na contemporaneidade digital, quando pensamos nos perigos de uma história só - única, solitária, total e universal -, os conceitos de foraclusão e denegação podem nos ajudar a compreender a dimensão da totalização, bem como a gravidade desses perigos. Nesse cenário, a instrumentalização de discursos e sujeitos através de algoritmos emerge como funcionamento em larga escala de efeitos administrados de foraclusão e denegação coletiva. Por mais que esses sistemas sejam propriedade de alguém, eles são programados para trabalhar com significativa independência. Eles aprendem sozinhos, e decidem sozinhos - embora orientados por premissas mercadológicas. No caso das redes sociais, os algoritmos se tornaram sistemas automáticos de produção de “histórias únicas”.

O processo discursivo de instaurar “uma história só” consiste, predominantemente, em narrar a história alheia sem conhecê-la a fundo; consiste, ainda, em produzir “verdades” sobre o outro sem que ele tenha o menor controle sobre isso. Depois de “pronta”, basta negar ao outro a possibilidade de contar a própria história para que ela simplesmente deixe de existir. No seio de uma narrativa só, a história do outro acaba banida do próprio campo da linguagem, perde a capacidade de fazer sentido.

O paradigma da repetição pelo algoritmo anestesia olhos e poros, e o desejo por verdades absolutas e únicas foraclui até mesmo a possibilidade de que existam outras narrativas, além de denegar a própria consciência de tais fatos. O resultado é um conjunto de condições de produção de sentido sem precedentes; trata-se de um funcionamento discursivo capaz de produzir metanarrativas absurdas e totalizantes com uma facilidade inédita. Os perigos de tantas histórias únicas podem ser catastróficos: basta que o algoritmo seja capaz de fazer subsumir narrativas menores em uma “maior” para que se instaure uma macronarrativa absoluta com dimensões jamais vistas. Ou pode ainda ser pior: basta que um sujeito capitaneie a transferência dessa narrativa para o mundo material para que tenhamos o maior fascismo da história humana.

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Foto de destaque: Ashutosh Sonwani - www.pexels.com
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João Flávio de Almeida
Doutor/UFSCar
​Professor e pesquisador nas áreas de Análise do Discurso, Filosofia da Linguagem e Tecnologia da Comunicação
Autor de "Palavrareia" (ficção), e "Epistemologia da Errância" (filosofia da linguagem e análise do discurso)

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