A REDE SOCIAL GENOCIDA

A REDE SOCIAL GENOCIDA


Não há mais como negar: as redes sociais, ao permitirem circular em pé de igualdade artigos científicos e memes com desinformação, participam na instauração de um cenário de confusão perigosa que pode levar milhares à morte.

Me ajudem com esse dilema. Ao compartilhar o link de um artigo da Nature Medicine (um estudo desenvolvido por universidades dos Estados Unidos, Inglaterra e Austrália que mostra que o novo coronavírus apareceu naturalmente, a partir de uma seleção natural, e não foi feito em laboratório como estratégia comercial da China comunista), e perceber que o JPG conspiratório - extremamente mal feito e compartilhado por um conhecido de Facebook - teve mais engajamento (curtidas, comentários etc.) que o artigo publicado por uma das maiores revistas científicas da atualidade, foi que minha ficha caiu: quem é que vai cobrar a parte que toca às redes sociais?

Muitos ficaram preocupados com a disseminação de fake news durante as eleições, mas e agora? E diante de uma pandemia que pode levar milhares à morte? Quais as consequências da disseminação de tanta desinformação? Alguns poderiam argumentar: “a culpa não é do titio Zuckerberg, mas sim de quem produz a desinformação; é impossível acompanhar e regular tamanha quantidade de dados”. De fato, é aí que a discussão deve começar.

Imagine um cenário de pandemia como esse na década de 1980. Além do menor tráfego mundial de pessoas, a grande diferença é que teríamos somente a mídia jornalística fazendo circular informações; regulada por diversos órgãos, ela não poderia deixar escapar algum dado equivocado sob pena de multas e repreensões públicas. Não quero com isso fazer vistas grossas aos enormes equívocos que o jornalismo cometeu nas últimas quatro décadas, apoiando ditaduras, golpes e fornecendo interpretações enviesadas a acontecimentos que jornalistas deveriam ter se limitado a “descrever” (toda descrição é, em si, uma interpretação, eu sei, mas continuemos); sobre o isso o jornalismo ainda nos deve uma profunda autocrítica. Mas também não podemos negar que se tivéssemos apenas o jornalismo como fonte de informação, neste caso específico não estaríamos vivendo esse horror de desinformação.

Tudo isso nos revela que, no fundo, o projeto iluminista de orientar o conhecimento pela razão cada vez mais caminha ao fracasso absoluto. A verdade volta a ser regida pela emoção, pelos afetos, pelos mitos e pelos medos. Talvez sempre tenha sido assim, talvez a razão iluminista tenha sido uma grande fake news. Testemunhar a relativização de informações científicas por enunciados religiosos e mercadológicos que circulam, contraditoriamente, por intermédio de dispositivos tecnocientíficos (eles usam seus smartphones para atacar a ciência!), é se dar conta de que o cérebro foi trocado pelo fígado e pelo intestino com uma facilidade assustadora.

Não podemos fechar os olhos para a responsabilidade das redes sociais. No meio desse furacão, os anúncios patrocinados continuam a passear por nossas telas, e quanto mais informações nos dispomos a produzir, mais lucros elas conquistam. Mas esse não é seu maior demérito: nunca na história moderna os intestinos tiveram tanta voz, nunca puderam gritar tão alto ao ponto de deixar rouco o cérebro. Se as redes sociais democratizam o direito à produção de informação, por outro lado permitem a circulação de desinformações que não são mais entretenimentos inofensivos, mas fake news perigosas e letais.

Me ajudem com esse dilema: como dialogar com um intestino digital gigante, do tamanho de um estado inteiro?

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(Foto: Bruno Moretti, Pexels).

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João Flávio de Almeida
Doutor/UFSCar
​Professor e pesquisador nas áreas de Análise do Discurso, Filosofia da Linguagem e Tecnologia da Comunicação
Autor de "Palavrareia" (ficção), e "Epistemologia da Errância" (filosofia da linguagem e análise do discurso)

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