SEU INSTAGRAM ESTÁ CASTRANDO VOCÊ, LENTAMENTE. E VOCÊ PODE ESTAR GOSTANDO

SEU INSTAGRAM ESTÁ CASTRANDO VOCÊ, LENTAMENTE. E VOCÊ PODE ESTAR GOSTANDO

Como lâminas afiadas, planas e enfáticas, as fotografias contemporâneas estão nos castrando. Metafórica e literalmente elas cortam, de dentro para fora, pênis e clítoris, esterilizando desejos, vigores, vitalidades e intensidades. A imagem contemporânea nos deixa pálidos, insossos, apáticos, letárgicos e inexpressivos. Nos rouba o tesão, não só o sexual, mas o da vida.

“São acusações graves”, você poderia contra-argumentar. “É possível sustentá-las”? Infelizmente creio que sim, mas antes preciso falar de Eros e Tânatos.

Na mitologia grega, Eros era filho de Afrodite. Com um alforje cheio de flechas de amor, ele distribuía, paixões, apetites sexuais e vitalidade. Certo dia ele adormeceu em uma caverna onde havia outras flechas espalhadas no chão. Quando acordou pegou sem querer algumas flechas que não eram suas e as misturou em seu alforje. O que ele não sabia é que aquelas outras flechas eram de Tânatos, o deus da morte e da destruição. A partir de então, as flechas de Eros passaram a ser carregadas não só de amor, mas também de ódio; além de desejos de construção, elas estavam igualmente embebidas de sentimentos de destruição.

Para Freud essa mistura é natural no ser humano. Ninguém é somente bondoso, caridoso e bem-intencionado. O “eu”, cindido e dividido, indica que em cada um de nós habita pelo menos dois “EUs”, um consciente e outro inconsciente, e é por isso que o sujeito deseja amor e ódio ao mesmo tempo, planeja erigir e derribar, produzir bondades e maldades com a mesma intensidade. E é assim que vivemos em constante conflito ético, pois o mesmo “eu” que ora deseja o bem alheio, logo depois deseja o mal e a destruição do outro.

A essa altura você já deve ter percebido que há um afeto que antecede tanto Eros quanto Tânatos: o desejo, e é aí que começa o problema contemporâneo diante da imagem e da fotografia. Se concordarmos com os existencialistas e com os psicanalistas, desejo é falta; ou seja, só desejamos o que nos falta, o que não possuímos, o que nos é mistério, desconhecido e diferente de nós. Dessa forma, a falta é também o reconhecimento de algo diferente de mim, um “outro”, de um “não-eu” que existe plenamente em si mesmo, fora de mim, separado de mim, independente de mim. Para que surja o desejo, portanto, é necessário um hiato, uma fenda que separe o “eu” do “outro” para que o segundo apareça como falta ao primeiro. Logo, no trabalho de Eros e Tânatos sempre há um “outro” para amar e odiar, para desejar o bem e o mal. Mas o “outro” permanece.

Mas esses não são os únicos personagens a lidar com a falta e o desejo na mitologia grega. Não podemos nos esquecer de Narciso, outro arquétipo muito interessante para pensarmos o sujeito contemporâneo. Introduzindo a ideia de narcisismo quero argumentar que, de alguma forma, no Instagram, nos outdoors, nas revistas, na TV aberta ou em streamings, consumimos cada vez mais imagens de nós mesmos, o que implica a erosão do outro enquanto falta, enquanto fonte de desejo.

Diferente de Eros e Tânatos, em Narciso a libido é investida primordialmente em si mesmo. Contudo o narcisismo não é um amor por si mesmo. O sujeito do amor próprio estabelece uma separação e uma distinção em relação ao outro, e no final das contas, escolhe beneficiar a si mesmo em detrimento do outro. O sujeito narcísico, ao contrário, não consegue estabelecer limites, até que tais divisas desaparecem. O mundo, então, se torna uma extensão dele mesmo; para o narcisista, o mundo “é” ele mesmo, ou no máximo o mundo todo vira um espelho, e os outros já não possuem existência autônoma fora do “eu” narcísico. Ele não consegue perceber o outro em sua alteridade, então vagueia aleatoriamente nos reflexos de si mesmo até que se afoga em si mesmo.

Mas há outra forma de narcisismo, uma que advém do excesso: excesso de si mesmo, já que tudo é espelho. Sem o outro, não há falta, e sem falta não há desejo. O narcisismo é, portanto, um estranho tipo de adoecimento da libido, uma espécie de castração pelo igual em excesso, afinal, para Eros e Tânatos a assimetria com o outro é indispensável.

Mas o que tudo isso tem a ver com imagem, fotografia, Instagram e castração? Nas redes sociais o sujeito contemporâneo devora imagens como quem já não sente sabor, gigabytes aos quilos escorrem pelos cantos da boca, como glutões devoradores de JPGs e PNGs. Há quem diga que, na verdade, são as imagens, iconofágicas, que consomem e devoram os expectadores, mas isso já não é mais verdade. Sem sabor e anêmica, a imagem do outro perde seu valor. A única imagem que importa é a sua, Narciso.

Em algum momento os algoritmos efetuaram uma profunda transformação na forma com que consumimos imagens, e nem percebemos quando, nem como. Talvez por conta da ganância viciante por likes, ou por causa do excesso de imagens alheias, a questão é que hoje nós até vemos as fotografias dos outros nas redes sociais, mas com desinteresse e frieza ligeira. Nossas experiências imagéticas em redes sociais passaram a ser muito mais a exposição de nós mesmos. Agora, a única imagem relevante é a de si mesmo.

E assim revelamos tudo de nós: nada falta. Já não há espaço para a imaginação e para o desejo. Nesse cenário, o outro se torna mero espelho para esta imagem narcísica, objetos de comparação que, por indiferença, perdem a diferença em relação a Narciso. Tudo se torna igual, igual a mim. Mas o pior são os likes: eles se tornaram a porta mais efetiva para esta magnífica sala de espelhos onde habita o Narciso contemporâneo. Voltado ao desempenho, o sujeito só vê no outro um espelho de seu próprio sucesso ou fracasso.

Toda alteridade é apagada, e com ela as proibições e as dificuldades. Diante de si, sozinho na sala de espelhos, Narciso pode tudo. Nenhum mistério sobrevive, nenhuma restrição ou interdição. E assim Narciso expõe o próprio corpo em todos os ângulos, em todos os instantes, mas sem paixão, nem mesmo por si mesmo: ele só o faz porque, na sala de espelhos não há ninguém além dele mesmo, e por isso ele pode tudo. Indiferente, ele se mostra sem limites porque a própria imagem é a única que lhe faz sentido, porque é a única imagem que... existe!

Se pudesse, Narciso faria sexo consigo mesmo, mas não pode. Por vários motivos. Mas o principal é que, saturado de si mesmo, ele já não se excita mais. Não com a mesma intensidade de antes. Agora ele só consegue se excitar minimamente através do olhar do outro. Explorado por si mesmo, cansado de sua solidão, Narciso precisa da aprovação alheia justamente no instante em que faz do outro mero espelho de si mesmo. Finalmente nada mais lhe excita, e Narciso se afoga em si mesmo, mas sem se debater. Inerte, desapaixonado e indiferente, ele morre, morre em si mesmo.

Se o rei Midas transformava tudo em ouro, Narciso transforma tudo em “si mesmo”. A falta produz desejo. O excesso castra.

Em nossos tempos Sartre já não faz mais sentido; o inferno não é mais o “outro”, mas o igual. O inferno é o “mesmo”, a falta de desejo, de libido e de potência de criação e destruição; é a morte, lenta e agonizante, de Eros e Tânatos. Diante da imagem de si mesmo, castrado, Narciso apenas espera. Na sala de espelhos já não há criação e destruição, já não há desejo. Só o que nos sobra é abatimento, desânimo, desídia, desinteresse, frieza, impassibilidade, inatividade, indiferença, indolência, inércia, insensibilidade, languidez, letargia, marasmo, ociosidade e preguiça.

 

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João Flávio de Almeida
Doutor/UFSCar
​Professor e pesquisador nas áreas de Análise do Discurso, Filosofia da Linguagem e Tecnologia da Comunicação
Autor de "Palavrareia" (ficção), e "Epistemologia da Errância" (filosofia da linguagem e análise do discurso)

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