Sobre o sequestro dos ideais iluministas

Sobre o sequestro dos ideais iluministas

O conhecimento já não quer salvar o mundo, quer matematizá-lo e vertê-lo em lucro.

Ora, a transformação discursiva da realidade em códigos abre espaço para uma nova prática discursiva na tecnociência: a forma de valor de troca (comércio) de saberes. Segundo Jean François Lyotard: “o saber é e será produzido para ser vendido, e ele é e será consumido para ser valorizado numa nova produção: nos dois casos, para ser trocado. Ele deixa de ser para si mesmo seu próprio fim; perde seu valor de uso”. 

Não é novidade que o conhecimento se tornou a principal força de produção nas últimas décadas, motivo de disputas entre corporações e instituições. O ideal iluminista se perde cada vez mais na memória discursiva; o “ousa saber”, de Kant, é saturado por novos pressupostos bem menos românticos. Se nos séculos XVII e XVIII erro e acerto surgiam em termos de verdadeiro e falso, ou em termos de justo e injusto, ele passa agora a aparecer em termos de eficácia e ineficácia em relação à produção de patentes e artigos científicos (LYOTARD, 2015). A tecnociência que invadiu o mundo ocidental por conta da segunda guerra, somada à recuperação do capitalismo na mesma época, impuseram mudanças aos funcionamentos de toda sociedade: a sedentarização, então, ganha novos contornos. Defendemos esta hipótese assumindo o aumento da força dos dizeres corporativos e financeiros dentro de outros espaços discursivos, como o político e o jurídico. Além da filosofia, agora é o estado que também perde o poder de regular o conhecimento. O poder de interpretação e sedentarização dos axiomas logicamente estabilizados fica nas mãos de corporações que buscam exclusivamente o lucro. Quando a riqueza passa a ser medida em informações e patentes, é a tecnociência que passa a regular os sentidos produzidos pelo estado, ou melhor, são as corporações que passam a sedentarizar e administrar os sentidos. O conhecimento, assim, deixa de ter valor de uso de transformação das realidades desfavorecidas, ou mesmo valor de verdade que liberta de crendices e dogmas, e passa a ter meramente valor de comércio; as promessas humanistas do iluminismo dão agora lugar às promessas de enriquecimento e de lucro. É assim que o ethos do cientista se verte em competição e embates políticos. 

No entanto, importa ressaltar e descrever minimamente o processo retórico de adaptação e legitimação da realidade discursiva calcada na codificação matemática, o que pode nos ajudar a observar certas variações no funcionamento social. Uma importante transformação no funcionamento discursivo contemporâneo diz respeito ao modelo teórico e epistemológico que fundamenta a prática tecnocientífica. “O modelo teórico e mesmo material não é mais o organismo vivo; ele é fornecido pela cibernética que lhe multiplica as aplicações durante e ao final da Segunda Guerra Mundial” (LYOTARD, 2015). Já vimos anteriormente que o advento e a propagação da informática na ciência, causa da transformação de todos os inputs e outputs metodológicos em axiomas matemáticos, é causa também de transformações na realidade fornecida pelo discurso científico44. O imperativo computacional, que impõe novas prescrições metodológicas, constrange e conforma todos os dados científicos em dados computacionais, de forma que a maioria dos enunciados científicos passam a “relatar” (interpretar) uma realidade puramente matemática. A realidade discursiva se torna codificável, armazenável e instrumentalizável: ela passa a ter funcionamentos calcados no axioma, na foraclusão extrema, na sedentarização radical do sentido logicamente estabilizado. Daí a credibilidade da ciência: possuindo os meios de instaurar e impor sua própria realidade discursiva sobre as demais, possui também os meios de administrar todas as evidências, todas as “provas” científicas. 

Na velha cidade da língua, o bairro da ciência descobriu que não precisava se emancipar ou se desligar do restante da cidade: ela tomou para si todas as ruas, todas as praças, refez as leis, os hábitos e alterou toda a arquitetura. Os aparelhos ideológicos de estado não são mais as igrejas e a família, são as redes sociais e os algoritmos do Google; e os aparelhos repressivos do estado agora são as empresas de cartões de crédito, os algoritmos de rastreamento do histórico de navegação, as câmeras de segurança nas ruas e as câmeras de auto exposição nos dispositivos comunicacionais móveis. Ainda é o estado que fornece documentos, mas agora são as corporações financeiras que os regulam, ao passo que é nas redes sociais que ocorrem os principais movimentos de interpelação dos indivíduos em sujeitos. Dito de outra forma, passamos por uma mudança sistemática nas funções dos estados: a gestão jurídica e política dos “cidadãos” são retiradas das mãos de administradores (juízes, deputados etc.) e são entregues aos cuidados de algoritmos axiomáticos e autômatos. Os decisores deixam de ser os políticos e juízes tradicionais e passam a ser os programadores pagos pelas grandes corporações. 

Ainda que não seja plenamente controlável (algo sempre erra), os efeitos desta nova sedentarização não são menos repressores. Estamos falando, neste sentido, na constituição de uma realidade discursiva calcada em linguagens artificiais: as linguagens de programação. Uma língua artificial de programação é calcada em axiomas que permitem métodos padronizados de instruções para uma máquina computacional. Através destas linguagens artificiais é possível ao programador transmitir regras sintáticas e semânticas ao computador, tarefa executada através de programas que calculam com precisão os dados coletados (inputs) e transformados em resultados precisos (outputs). Mas isso não é tudo. Uma das principais premissas da linguagem de programação é a produtividade, a facilidade e a simplicidade. No universo das linguagens artificiais existem diversas línguas, com sintaxes e semânticas específicas: PHP, Java, C++, Delphi, SQL e muitas outras. E para que o conhecimento científico possa ser produzido e circulado por estas linguagens axiomáticas, faz-se preciso lançar sobre a realidade discursiva um recobrimento logicamente estabilizado, matematizado, para que os algoritmos possam captar, calcular e entregar resultados automaticamente. As realidades discursivas fornecidas pelas FDs se tornam, por isso, cada vez mais axiomáticas, cada vez mais reduzidas, estáveis e administráveis. A foraclusão do axioma se torna, portanto, o gesto sedentarizador por excelência. 

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João Flávio de Almeida
Doutor/UFSCar
​Professor e pesquisador nas áreas de Análise do Discurso, Filosofia da Linguagem e Tecnologia da Comunicação
Autor de "Palavrareia" (ficção), e "Epistemologia da Errância" (filosofia da linguagem e análise do discurso)

 

Este artigo é um excerto da tese "Para uma epistemologia da errância: erro, hiância e ciência em Michel Pêcheux" - https://repositorio.ufscar.br/handle/ufscar/10843

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