Três categorias de simulacro. Ou: a face cinematográfica da política brasileira

Três categorias de simulacro. Ou: a face cinematográfica da política brasileira

Baudrillard já dizia que credibilidade não tem relação direta com verdade. Credibilidade deriva de crença, e crença é escolha. Mais do que isso, a credibilidade atua justamente nos limites da verdade: quando a dúvida emerge, é na credibilidade que se ancora o discurso. Diante de uma verdade “incontestável” não há credibilidade justamente porque não há, ali, interpretação e escolha, há apenas desvelamento e contemplação.

Evidentemente que essa definição de verdade - bastante hegeliana, diga-se de passagem (e isso não é um elogio) - pressupõe uma efetivação rumo ao absoluto, neste caso, à uma verdade absoluta e monolítica: um grande delírio. Toda verdade carrega em seu âmago uma falta que demanda algum nível de crença, de credibilidade. Por isso, quando o presidente da república diz que os dados do INPE sobre o desmatamento na Amazônia não são verdadeiros, ele está correto. Calma, vou me explicar.

A rigor, não é de verdades que vive a ciência, mas sim de probabilidades e de falseabilidades. Popper, um dos mais importantes pensadores da Filosofia da Ciência do século XX, propõe a falseabilidade como critério de demarcação entre ciência e metafísica. Isso quer dizer que toda proposição que puder ser refutada por experiência empiricamente observável, é científica; caso contrário, a proposição em questão é metafísica (POPPER, 2001, p. 42). A ciência, portanto, trabalha com a validação de testes empíricos que resultam em probabilidades, e não em certezas inequívocas.

A verdade é que a ideia de “verdade” é uma noção velha que vive por aí produzindo meta-narrativas barulhentas. A ideia de “verdade” é, por si só, um simulacro - e dos mais danosos. Isto posto, a temática que interessa a este humilde e falseável texto é justamente a relação entre verdades e simulacros.

SIMULACRO

“Simulacro” é um conceito proposto por Jean Baudrillard, filósofo francês (1937-2007). Segundo o autor, simulacro é o resultado de uma simulação malfeita, que justamente por isso requer certo esforço do interlocutor para que seja aceito como verdade. Existem três categorias de simulacros: os de primeira ordem são aqueles que apenas distorcem o real; os de segunda ordem apagam a ausência de um real; e os de terceira ordem não dão a mínima para o real. Vamos tentar entender isso um pouco melhor a partir de simulacros instrumentalizados pelo nosso presidente democraticamente eleito.

Simulacro de primeira ordem:

Quando o presidente diz que a raiz da crise financeira do Brasil foi a corrupção praticada pelo PT, ele está distorcendo o real: um simulacro de primeira ordem. E isso se explica facilmente. A Veja publicou em 2017: “PT roubou 200.000.000 de dólares, segundo delator”. Duzentos milhões de dólares equivaliam, na época, a pouco mais que 500 milhões de reais. Acontece que em 2019, depois de cortes e contingenciamentos na educação, só o orçamento desta pasta ficou em 120 bilhões de reais.

É aqui que o simulacro exige grande esforço para parecer verdade: mesmo supondo que o delator tenha dito a verdade, 200 milhões de reais não fazem nem cócegas no orçamento de uma única pasta ao longo de um ano, como a da educação. Logo, não foi a corrupção do PT que afundou a economia do país, ainda que não se possa dizer que tal corrupção não tenha realmente ocorrido. Essa distorção do real é, portanto, um simulacro de primeira ordem.

Simulacro de segunda ordem:

O simulacro de segunda ordem é o mais difícil de compreender, mas o presidente eleito democraticamente pode nos ajudar bastante. Nessa categoria, o simulacro esconde a ausência de um real. Vamos partir de um exemplo: imagine uma foto da Gisele Bündchen em uma propaganda de xampu depois de horas de trabalho no Photoshop. O fato de existir uma Gisele Bündchen real esconde o fato de que não existe aquela Gisele Bündchen da propaganda, ou melhor: a Gisele Bündchen real, casada com Tom Brady e mãe da Vivian e do Benjamin, sustenta (se torna o suporte) para o simulacro Gisele Bündchen simulado na fotografia.

Dito de outra forma, quando o presidente diz que representa a nova política, mesmo fazendo parte dela desde 1991, ele produz um simulacro que oculta a ausência de um real. O “novo” Bolsonaro, em si mesmo, não existe, não há um real que o sustente; para se tornar um simulacro com algum grau de eficiência, ele precisa de um suporte fora dele, no caso, no velho Bolsonaro que esconde o fato de que não existe o “novo” Bolsonaro. E você ainda tem dúvidas de que esse jogo tresloucado funcione muito bem? Assim como muitas pessoas perseguem a beleza fictícia e inalcançável do simulacro “Gisele Bündchen” da propaganda, fazendo grande esforço para não ver a ausência de um real, ainda tem brasileiros que arrumam alguma maneira de defender a “chegada” da “nova” política realizada na república do Twitter.

Simulacro de terceira ordem:

Aquilo que falta à verdade pode ser apreendido na separação (e na distância) entre o signo e o que ele representa. Entre o signo e a coisa a que ele se refere há uma distância incontornável, mas na verdade absoluta, essa distância seria abolida pela identificação plena entre eles a partir da razão. Mas isso dá muito trabalho. Existe outra forma de se resolver esse problema da identificação absoluta: basta libertar o signo daquilo que ele representa. Ora, é isso que faz o simulacro de terceira ordem. Nessa categoria de simulacro, o simulador já não se importa com o real.

O cinema pratica com grande frequência esse simulacro, através de dragões, crianças voadoras, zumbis e elfos. Embora pareça difícil acreditar em dragões só porque o cinema nos apresenta, muitos acreditam que não há desmatamento na Amazônia só porque o presidente assim o diz. Esse tipo de simulacro, embora seja mais pueril, quando funciona, é o mais danoso. Quando as coisas, os signos e as ações são libertos de suas ideias, de seus conceitos, de seus valores, de suas referências, de suas origens e de suas finalidades, entram então em uma auto-representação ao infinito. Os enunciados continuam a funcionar, ao passo que a ideia deles já desapareceu. Perpetuam-se numa indiferença total em relação ao seu próprio conteúdo. O paradoxo é que eles parecem funcionar ainda melhor. Despidos de qualquer referência em relação ao real, esses simulacros já não possuem diferença, não se contrapõem a nada: se tornam iguais a eles mesmos.

É neste momento que o simulacro se torna livre para representar qualquer coisa, por mais fantasiosa e absurda que possa parecer. Ora, se a credibilidade age no limite da verdade, no simulacro ela se torna meta-credibilidade. No simulacro de terceira ordem, quando signo e real se libertam um do outro, não é a distância que é abolida, mas sim a diferença. É o fim da representação e a origem da auto representação, afinal, a relação do signo não é mais com o que ele representa, mas consigo mesmo.

Se a verdade carregava uma falta intrínseca, agora ela é plena, não demanda mais credibilidade: no simulacro ela é absoluta e livre das amarras da realidade. O desmatamento na Amazônia fica livre dos dados do INPE, prescinde deles. O IBGE, a Fiocruz e as pesquisas acadêmicas também perdem qualquer relevância: o Brasil está livre para ser reinventado, as amarras da realidade foram quebradas e agora ele pode ser moldado ao sabor de fantásticas aventuras.

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REFERÊNCIAS:

BAUDRILLARD, J. Simulacros e Simulações. Lisboa: Relógio D’Água, 1992.

POPPER, K. R. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, 2001. 

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João Flávio de Almeida
Doutor/UFSCar
​Professor e pesquisador nas áreas de Análise do Discurso, Filosofia da Linguagem e Tecnologia da Comunicação
Autor de "Palavrareia" (ficção), e "Epistemologia da Errância" (filosofia da linguagem e análise do discurso)

 

 

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