Conhecimento perigoso

Conhecimento perigoso

              Para um empirista como eu, ou seja, aquele que acredita que todo conhecimento provém essencialmente da experimentação, a ciência traz muitas surpresas. Continuamente mudando meus pensamentos sobre muitos fenômenos, ao assim fazer, além de ampliar-me os horizontes, desafia minhas suposições sobre si. E, neste contexto, dentre minhas primeiras suposições, não corroboradas pelas evidências científicas, encontrava-se a credulidade de que diferentes habilidades seriam importantes para desempenhar bem em diferentes arenas profissionais e ocupacionais. A noção de que uma simples habilidade (QI) ou Inteligência geral (g) poderia predizer, num grau apreciável, o sucesso em todas as ocupações e empregos, pareceu-me, à primeira leitura, inacreditável e insustentável. Entretanto, isto é o que ficou claramente demonstrado após adentrar com profundidade ao conhecimento gerado das últimas pesquisas sobre o assunto. Foi-me preciso reconhecer, portanto, que diferentes habilidades cognitivas (por exemplo, verbal, quantitativa e espacial) são intercorrelacionadas.

            Paralelamente a isso, também precisei reconhecer que os fatores ambientais não são os principais determinantes de comportamentos humanos complexos como, por exemplo, a Inteligência geral e outros traços humanos, mas, sim, que as influências genéticas, estatisticamente as mais importantes, se elevam com a idade, enquanto as ambientais diminuem. Consoante a isso, reconhecer, também, evidências científicas que comprovam que Educação não pode, por si só, ser responsável pelas desigualdades intelectuais, sociais e econômicas. Afirmar que crimes, drogas, desemprego, filhos ilegítimos, pobreza, miséria são frutos, simplesmente, do baixo nível escolar, é o que mais grassa nos discursos político-econômicos e educacionais. Todavia, é preciso substituir a ré Educação pela ré Inteligência. E tal substituição, semelhante a outros dardos que ferem o âmago do ego humano, é de difícil aceitação e muitas vezes se constitui numa questão perigosa sobre a qual podemos apenas ouvir falar e nunca investigar sistematicamente. Nomeie-me o problema e eu lhe mostrarei um conjunto de afirmações semelhantes, que culpam educação, ou a implicam de algum modo. Mas, não se sinta constrangido se eu imediatamente lhe desconstruir tal mito.

            Antes de se culpar a educação pelo que quer que seja, cumpre considerarmos a subjacente habilidade intelectual das pessoas sendo educadas, bem como, o papel mediador da mesma, quando este as prepara para se envolver no futuro da nação. Uma consulta, ainda que breve, aos dados publicados das avaliações educacionais, nacionais e internacionais, dos nossos estudantes, nos permite, de imediato, inferir que metade de nossas crianças está abaixo da média de competência cognitiva, ou seja, abaixo da média de distribuição dos escores de inteligência. Em poucas palavras, estão na metade inferior de distribuição dos escores que servem como parâmetro, o que, por conseqüência, limita severamente seu desempenho escolar. Logo, isto é assunto de limitação e não de educação.

            Supondo, por exemplo, um estudante com QI de 135, obtendo este, numa escala de 0 a 10, uma nota 4 em aritmética, verifica-se, facilmente, que o mesmo teve um subdesempenho escolar, ou seja, realizou aquém de sua inteligência. Entretanto, caso seu professor se esforce em melhorar seu desempenho cognitivo, poderá, certamente, alcançar sucesso, haja vista seu elevado QI. Outro aluno, apresentando QI um pouco abaixo de 100 e tirando notas 2 ou 3 na mesma avaliação, caso se dedicasse em elevar seus conhecimentos aritméticos, poderia esperar uma melhoria em seu escore. Entretanto, não serão estas operações algébricas fundamentais que lhe abrirão um novo horizonte. Por quê? Porque não está dentro de seu poder de aprendizagem alcançar um nível ilimitado, ou além, de complexidade, assim como, eu, ainda que apresentando um bom escore de QI, não tenho um poder de resolução cognitiva que me habilite a acompanhar a dedução de um teorema complexo num bom periódico de matemática. Finalmente, considere um estudante de QI de 88, que tenha obtido notas similares. Elevar um pouco seu escore de desempenho só seria possível após muito esforço. Mesmo que a ele fosse ensinado o tanto quanto a sua inteligência permite, ainda seria apenas hábil em compreender simples conceitos matemáticos. No entanto, apesar da limitação, para ele este resultado seria favorável, considerando que o mesmo tornar-se-ia funcionalmente alfabetizado e, plenamente, capaz de aderir à empregabilidade possível. Este estudante, no entanto, ainda será confinado a empregos que requeiram habilidades matemáticas mínimas, uma vez que o mesmo não possui inteligência suficiente para fazer mais do que isso.

            Diante de tais evidências, como devemos proceder para elevar a inteligência? Poderia a educação ser amplamente melhorada, ao ponto de elevar a inteligência? Seria ótimo se nós conhecêssemos como fazê-lo, mas, infelizmente, não conhecemos. A literatura científica pertinente afirma que algumas intervenções podem elevar a inteligência, ainda que temporariamente, de 7 a 8 pontos no QI. Mas investigações sistemáticas revelam que este aumento é, apenas, uma mistura dos efeitos do teste e um leve aumento no fator geral subjacente à habilidade intelectual. Além do que, esta elevação tende a ser insignificante após alguns anos de intervenção e não é duradoura e nem generalizável. Por sua vez, ao falarmos em melhorar amplamente a educação, deparamo-nos com a falsa suposição de que os educadores já conhecessem como educar cada um e que, para tanto, necessitariam apenas intensificar sua dedicação nesta tarefa. No entanto, nós nunca conhecemos como educar total e apropriadamente cada um. O que se tem por certo é que é impossível educar a todos igualitariamente, assim como, é um mito afirmar que todos podem alcançar e ultrapassar seu potencial máximo. Importa enfatizar, também, que mesmo o sistema educacional mais perfeito pouca diferença fará no desempenho de estudantes que se encontram na metade inferior da distribuição dos escores de inteligência (a educação dos talentosos é outro cenário).

            Ao afirmarmos isto, não queremos, entretanto, dizer que as escolas não podem ser melhoradas. Há, certamente, excelentes e maravilhosas escolas. Mas sim que, mesmo as melhores escolas, não podem ampliar os limites do desempenho humano delimitado pela inteligência. Se não tivemos uma grande inteligência quando entramos no jardim de infância, nunca a teremos quando sairmos da faculdade. Nenhuma mudança nas condições ou sistemas educacionais alterará este fato. E esta difícil realidade compromete grande parte das políticas públicas, tornando-as, muitas vezes, ineficazes. Por ser constantemente negada, vilipendiada e atacada, tal afirmação integra, sem sombra de dúvida, o que se cunhou internacionalmente chamar como “idéias perigosas”.

            Concluindo, embora Inteligência possa ser a mais útil ferramenta mental na ampla e vária caixa de ferramentas humanas, ela produz apenas bons resultados quando usada de forma diligente e sábia. Alta inteligência favorece alto nível de realização, mas nunca o garante. Inteligência é, sim, um facilitador geral de aprendizagem e raciocínio quando as tarefas que requerem aprendizagem e raciocínio tornam-se complexas.

 

Compartilhar: