
Crise silenciosa: a educação dos talentosos
Há na
literatura vários termos para se referir ao talento intelectual. Para alguns
teóricos, o termo descreve um contínuo de habilidade, variando de “levemente
talentoso” (QI 115-129, topo 2,5%) a “moderadamente talentoso” (130-144, topo
1%), “altamente talentoso” (145-159, topo 0,13%), “excepcionalmente talentoso”
(topo 0,003%) e “profundamente talentoso” (topo 0,000003%), ainda que estas
amplitudes de QI, e respectivas porcentagens de distribuição, possam variar
ligeiramente. Outros termos, comumente relacionados, tais como, “superdotado”,
“alta habilidade”, “alto potencial”, “hábil”, “superior”, “excepcional”,
“supernormal”, “precoce”, “rápido”, “prodígio” e “gênio”, entre outros, são
usados como sinônimos, existindo, ainda, aqueles que significam diferentes
categorias ou níveis de desenvolvimento. Contudo, todos compartilham uma idéia
comum: que há manifestações do potencial humano que diferenciam,
intelectualmente, uma pessoa de seus grupos de referências, os quais podem ser
seus pares, colegas ou conterrâneos.
Por
outro lado, muitas teorias sobre o talento, ou sobre superdotados, são,
fundamentalmente, conectadas às teorias da inteligência. A teoria da
inteligência geral (fator g), teoria do talento que é, define-o como um QI
acima de particular limiar. A teoria das inteligências múltiplas, outra teoria
do talento, já admite, por sua vez, que o talento intelectual é estabelecido,
num domínio particular, pelo desempenho de alto nível. A teoria triárquica da
inteligência é uma teoria do talento em que o talento intelectual é determinado
através do elevado desempenho em uma ou mais áreas, seja esta analítica,
criativa ou do pensamento crítico. Todas, entretanto, fazem referência à
inteligência e à sua mensuração, sem deixar de enfatizar o papel dos processos evolutivos
nas mesmas, com algumas destacando a estabilidade da natureza e o nível do
talento intelectual ao longo da vida, enquanto outras, as transformações
evolutivas que ocorrem no tempo.
Todavia,
independente do termo empregado, e do enquadramento teórico, muitas outras
considerações determinam a relevância que um dado sistema educacional dá ao
talento intelectual. Especialmente no que tange à sua definição, como ele pode
ser identificado e como aquele, identificado como tal, pode ser tratado. Estas considerações
são altamente contextualizadas no sistema educacional considerado, mas,
certamente, envolvem aspectos econômicos, político-culturais e psicológicos
que, embora em um sistema educacional multidimensional e diverso, exigem uma
dimensão de compreensão particularmente importante, ou seja, mecanismos pelos
quais as oportunidades educacionais são distribuídas entre os indivíduos dentro
do sistema. Neste caso, embora haja muitas variantes de tais esquemas de
distribuição, três são salientes dentro dos variados cenários educacionais
atuais: (1) plutocracia/nepotismo/oligarquia, (2) meritocracia e (3)
igualitarismo.
O
primeiro esquema refere-se aos sistemas educacionais em que oportunidades e
privilégios são distribuídos em função da riqueza (plutocracia), influências
familiares (nepotismo) e classe social (oligarquia). Estes mecanismos de
distribuição foram, comumente, característicos dos antigos sistemas
educacionais, tais como, aqueles das antigas civilizações, período medieval e
da era pré-industrial. Porém, ainda que, ao longo dos séculos 20 e 21, estes
mecanismos tenham se desvanecido, seus resíduos são, ainda, altamente
influentes em fracos sistemas educacionais, nos quais, apenas uma pequena
minoria da população tem acesso à oportunidades educacionais, do tipo, por
exemplo, educação superior (como ocorre na maioria dos países africanos).
Influência, esta, que diminui em sistemas educacionais mais fortes. O importante, entretanto, é que, nestes
sistemas, as oportunidades educacionais são motivadas por riqueza, conexões
familiares, privilégios das classes sociais, todas elas externas aos
indivíduos, de forma que o talento intelectual é irrelevante neste processo.
O
segundo esquema, a meritocracia, assume que o acesso às oportunidades
educacionais é baseado na habilidade e nas realizações (mérito), também o
necessitando ser em lugares em que as situações não ocorrem assim. O argumento
que sustenta tal hipótese é o fato de os sistemas educacionais serem
estratificados e agregados, de maneira que as escolas mais avançadas eduquem os
estudantes mais hábeis, viabilizando lhes prosseguir estudos em instituições
universitárias até que, formados, possam retribuir às sociedades que os
apoiaram. No mundo, vários são os sistemas educacionais que têm tentado adotar mecanismos
baseados no mérito. O objetivo? Viabilizar o acesso às oportunidades
educacionais, para a criação de gerações altamente produtivas, que possam
influenciar o desenvolvimento da ciência e tecnologia em seus países. A ideia
de identificar crianças intelectualmente talentosas, tratando-as de maneira
especial, está enraizada nesta doutrina, com seu elemento-chave baseado,
apenas, nas características internas do indivíduo. Todavia, outros aspectos
imediatamente surgem, tais como, no questionamento “De que forma
características internas devem ser selecionadas?”, bem como, “Onde se situam as
linhas divisórias entre crianças talentosas e não talentosas?”, “Como os
critérios de inclusão devem ser definidos?” e “Como os estudantes talentosos, e
não talentosos, devem ser educados num mesmo sistema educacional?”.
Finalmente,
a doutrina do igualitarismo sustenta que, todos os indivíduos devem ser
tratados como iguais, tendo as mesmas oportunidades educacionais e privilégios.
Neste contexto, a suposição é de que todas as crianças, embora diferentes em
seus perfis específicos, têm habilidades e, portanto, também direitos iguais à
oportunidades educacionais que possam lhes desenvolver suas habilidades,
quaisquer que estas sejam. Esta abordagem assume que todas as crianças são
hábeis, embora em graus diferentes, e que é tarefa do sistema educacional
ajustar-se de modo que as necessidades de cada um sejam alcançadas, e suas
habilidades realizadas. Este enfoque muito tem influenciado o conceito e a
educação do talentoso intelectual.
Entretanto,
a maioria dos sistemas educacionais atuais, como, por exemplo, em Israel e
Cingapura, que declaram se basear no mérito, enquanto França e Espanha, no
igualitarismo, adotam uma mistura dos elementos da meritocracia e do igualitarismo,
mas não sem disputas. Estas, refletindo os aspectos sociais, culturais e
econômicos em que tais sistemas estão inseridos, deixam claro que, a realidade
da educação do talentoso intelectual, aqui envolvendo sua definição, processo
de identificação, serviços e resultados desejados, está, necessariamente,
alinhada a tais abordagens ou doutrinas, especialmente, em face das restrições
sociais e políticas que estas refletem. Tudo se assemelha, portanto, a uma
crise silenciosa, em que talentos estão sendo, constantemente, perdidos.