A dama de negro

A dama de negro

            Numa das repúblicas estudantis na qual vivi, reunia-mo-nos todas as terças-feiras com o propósito de discutir temas atrativos na época como, por exemplo, a origem da vida e seus determinantes, as influências genéticas e ambientais, bem como, se havia algo que pudesse ser considerado vida depois dessa vida. Varávamos, então, a noite, discutindo essas temáticas. E, lá pelas tantas, já misturávamos ciência com psicologia, psicanálise, fé, entre outros. Em alguns momentos, os ânimos se acirravam e alguns, veementes, defendiam a idéia de que não havia vida depois da morte, enquanto outros, mais crentes, argumentavam que havia possibilidade da felicidade plena na vida eterna. Os determinantes da vida seriam, então, muito mais que os elementos biológicos e genéticos. E a religião é que daria a essência da vida.

            Ainda que enriquecedoras, muitas idéias pareciam perigosas para a época. Lembráva-mo-nos da afirmação de Freud de que ele havia levado a “peste” (psicanálise) para os Estados Unidos e que seu método, dito “perigoso”, era capaz de revelar segredos d’alma dantes fechados a sete chaves. Passávamos por Darwin, discutindo o peso da seleção natural na evolução da vida. Adentrávamos às idéias de Galton quando, inflamados, discutíamos que a inteligência e a genialidade “corriam” entre famílias. A teoria da Relatividade de Einstein era por nós dissecada, quando tentávamos argüir sua generalidade também para o comportamento humano. Não obstante, tudo parecia relativo.

            Toninho e Márcio eram os oponentes mais diretos. Em alguns momentos, ambos pareciam perder o controle, sendo preciso apartá-los para que socos e pontapés não ocorressem. Toninho, homem de fé, acreditando que a vida era mais que um apanhado de neurônios. Márcio, homem da noite, acreditando que só havia conhecimento oriundo da ciência. Então ocorreu o relato: Toninho, passeava de canoa com amiga querida, quando viu a canoa virar e a amiga desaparecer nas águas. Deprimido, lembrava-se dela sorrindo, rodopiando no seu vestido preto favorito, por muito tempo. Tempo em que tais lembranças se confundiram com as aparições da moça em seu quarto nas insones madrugadas. Neste momento, Márcio, ouvindo o amigo, dele gargalhou, ruidosamente. Como poderia um jovem como Toninho, estudioso da ciência, acreditar naquelas fantasias estéreis e inúteis?

            O tempo passou. A formatura chegou. O baile a todos animando. Porém, Toninho, de família humilde, não pôde para ali trazer nenhum dos seus. Triste, envergonhado e humilhado não viu a dama de negro que ali adentrou. Quem a viu, entretanto, estupefato, foi Márcio. O mesmo Márcio que dele zombara, desacreditando do relato. Mas que agora, vendo-a acercar-se do amigo, não mais dele duvidou.

            Levado por ela para receber o anel de formatura, e festejado o baile, Toninho e sua amiga receberam carona de Márcio. Deixado o amigo em casa, lá foi o zombeteiro amigo levar a tal dama de preto. A pedido desta, parou a alguns quarteirões do Cemitério da Saudade. Morava por ali, ele não precisava se preocupar. Alguns anos depois, o convite de casamento de Toninho. No altar, um padrinho desacompanhado. Porém, mal começara a cerimônia, a surpresa: a mesma dama de preto de outrora adentrava a igreja, tomando seu lugar no altar. Tão jovem quanto antes, nada nela parecia ter mudado. Márcio, o padrinho, ficou arrepiado. Ao término do casamento, Toninho pediu a Márcio que levasse a bela jovem para casa. Era madrugada. O endereço da jovem continuava próximo do cemitério. Márcio começou a suar e a tremer perceptivelmente. A palavra, “Deus” balbuciada pelo mesmo. A jovem, pedindo desta vez para parar na frente do cemitério, dali acenou antes de adentrar ao mesmo e desaparecer. Márcio saiu dali cantando os pneus.

            Dizem os amigos daquela turma que Márcio passou a freqüentar o cemitério quase todos os meses. Não mais, é certo, em busca da dama de preto, mas, sim, para orar que ele não mais perca a crença.

 

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