
FÚRIA NO TRÂNSITO
O fenômeno
Os especialistas americanos chamam de road rage ao fenômeno que podemos traduzir como fúria no volante. O fenômeno incorpora as nossas mudanças de comportamento quando estamos dirigindo. De fato, todos os indivíduos, desde os mais pacatos até os mais nervosos, estão sujeitos a este padrão de comportamento, sugerindo que ele seja ser universal. Assim, pais usualmente educados gritam obscenidades em frente dos filhos e pessoas tão educadas como insuspeitas são capazes dos piores insultos e dos gestos mais agressivos. É incrível a facilidade com que um pacato pai de família insulta o motorista da frente só porque este parou de repente e é também inacreditável a naturalidade com que uma senhora aparentemente calma e educada dirige os piores palavrões a alguém que lhe atravessa o caminho sem avisar.
Aparentemente as pessoas fazem isto por instinto, sem pensar e sem medir as consequências dos seus atos. Sem atender ao fato de, muitas vezes, levarem consigo os próprios filhos, perplexos de ouvi-los gritar obscenidades, fazer gestos grosseiros e lançar olhares ameaçadores. A dimensão da raiva, aliás, quase nunca é proporcional ao nosso estado de espírito e é isto que mais confunde, pois todos sabem por experiência própria que basta um segundo para a nossa fúria disparar e atingir níveis impensáveis. Em outras palavras, não é preciso um dia de stress ou alguma coisa que nos irrite particularmente para nos enervarmos até ao limite. Basta o motorista da frente fazer uma manobra inesperada para que um outro entre em conflito e perca o controle.
Dados experimentais
Os estudos realizados no campo da psicologia do trânsito, que analisaram experimentalmente as motivações subjacentes a este fenômeno, têm apontado duas conclusões surpreendentes. A primeira grande constatação é justamente o fato de que ninguém está imune a este fenômeno. Todos os indivíduos ficam automática e potencialmente mais agressivos pelo simples fato de se sentarem ao volante de um automóvel. Isto porque todos revelam uma incapacidade nata de resistir à provocação e ao desejo de retaliação. Leon James, psicólogo norte-americano que têm investigado sistematicamente este fenômeno, usou o método de gravação em vídeo para analisar os comportamentos dos motoristas nas estradas. Ele ensina aos motoristas a instalarem uma câmara de vídeo dentro do carro e propõe-lhes que gravem livremente, de forma que esqueçam que são atores do seu próprio filme. Em seguida, o pesquisador utiliza os próprios filmes dos seus alunos visando a mudança de atitudes e de comportamentos. Esta estratégia de mudar os hábitos de dirigir envolve a tarefa de assistir às gravações com cada um dos indivíduos (atores) e perceber até que ponto eles são capazes de reagir a pequenos e grandes acidentes de percurso. O efeito espelho proporcionado pelas gravações é profundamente embaraçoso, mas, altamente eficaz, na medida em que devolve a cada um a exata medida da sua raiva. E a desproporção com que facilmente reage a estímulos insignificantes. O fato de um motorista de táxi estacionar sem fazer o sinal apropriado é quase sempre motivo de insulto instantâneo. A fúria com que o motorista de trás gesticula e as grosserias de seus comportamentos são quase irreais e, nesta medida, o pesquisador aproveita as gravações para sublinhar o exagero e levar os motoristas a interiorizarem uma atitude mais serena. Ao mesmo tempo, ele interroga os alunos sobre as causas da sua cólera súbita e, juntos, chegam mais facilmente à conclusão de que tiveram um comportamento excessivo. A segunda conclusão que parece emergir destes estudos é que guiar num estado de raiva latente é uma espécie de fatalidade moderna. Os próprios motoristas associam o fato a uma sucessão de acontecimentos que partem do acréscimo de carros nas rodovias/estradas que faz aumentar as filas de trânsito, multiplicar a frustração e complicar os nervos, coisa que por si só potencializa o stress, provoca raiva, gera hostilidade e conduz à agressão.
Na verdade, mais ou menos violentos, todos nos revemos neste ciclo infernal. O problema é que os comportamentos de fúria na estrada estão profundamente interiorizados que chegam a parecem naturais. Reagir com paciência e delicadeza quando alguém faz uma manobra errada na estrada não ocorre a ninguém. Para outros estudiosos, a raiva crescente e o descontrole emocional também se prendem com a ideia da morte. O fato de uma manobra mal feita poder conduzir a um acidente fatal, com mortos e feridos, provavelmente pesa no interior de cada um, mesmo que de forma inconsciente. Talvez por isso os motoristas tenham mais dificuldades em resistir à fúria, ao insulto e à agressão verbal ou física.
As estratégias
Fruto de diferentes estudos, algumas estratégias têm sido propostas visando alterar os hábitos rudes dos motoristas e facilitar uma condução mais defensiva do que ofensiva. Por exemplo, quando o trânsito estiver muito compacto, tem sido recomendado que os motoristas tentem manter uma velocidade moderada e a resistir à tentação de ultrapassar filas inteiras de veículos. Em vez de pensar apenas na sua pressa e na melhor maneira de fugir do trânsito, os motoristas devem observar com mais cuidado os movimentos dos outros e antecipar manobras bruscas, impensadas ou perigosas. Todavia, à primeira vista esta recomendação parece infinitamente banal e, até, profundamente chata. Imaginar que, daqui a diante, vamos apostar em facilitar a vida dos outros em vez de procurar a melhor maneira de nos defendermos dos excessos de tráfego é impensável. Para quem, como nós, habituamos a reagir no mesmo segundo, a gritar e a buzinar sem cessar, parece impossível esta contenção de modos e humores. Sempre que alguém à nossa frente sai da sua faixa sem avisar e a manobra nos obriga a brecar forte, podemos fazer duas coisas: retaliar ou evitar o acidente e a discussão.
Os especialistas norte-americanos dizem que, dada a descarga de adrenalina que sempre acompanha o ato de uma brecada repentina, o mais natural é tentar liberar a tensão através de um comportamento vingativo, mas advertem para os perigos do envolvimento numa briga de rua devido a um acidente de trânsito. Eles aconselham que devêssemos treinar a capacidade de admitir o erro dos outros e ensinam um truque: recordar os nossos próprios erros.
Rindo dos erros
Assim como ninguém está imune à raiva, também ninguém está livre de errar e aquilo que hoje condenamos muitas vezes é igual a qualquer coisa que, inadvertidamente, fizemos no passado. Por isso devemos neutralizar o instinto de vingança e manter a calma em todas as circunstâncias. O segredo é o bom humor. Se nos defendermos dos outros com sentido de humor tudo fica infinitamente mais tranquilo. Aplaudir em vez de fazer o clássico gesto obsceno pode parecer ridículo, mas tem um efeito diluidor incrível. Não é tão insultuoso, parece mais complacente e envolvem os dois motoristas numa atitude menos agressiva.
O fato de reagir com humor também ajuda a superar o acontecimento na medida em que permite exteriorizar as emoções. Sabemos que a contenção total de palavras e gestos é nefasta e leva a interiorizar emoções negativas. O sentido de humor pode ser um excelente escape para situações de tensão nas estradas. Às vezes basta um sorriso irônico acompanhando um aceno de cabeça, ou uma piada inócua do tipo "essa manobra não correu nada bem" para descomprimir e seguir em frente. De acordo com os dados obtidos, o fato de fazermos um esforço consciente para não retaliar nem insultar contribui para a redução dos pequenos e médios acidentes nas rodovias.
Outra atitude muito comum na estrada é a competição entre os motoristas. Os estudiosos deste tema não hesitam em considerar alguns destes comportamentos como verdadeiros "atos de guerra". Contra estas declarações de ódio, os investigadores avançam com medidas de proteção que passam essencialmente por neutralizar a vontade de "dar uma lição" ao outro motorista. Também esse passo não é fácil de executar, pois a provocação na estrada dispara em nós uma fúria imediata, mas convém treinar consistentemente a paciência e a capacidade de desprezar quem nos provoca.
Manter um duelo aceso na estrada é outro comportamento ou um impulso instintivo que, para ser contrariado, nos obriga a ter consciência de que é necessário respirar fundo, repor a calma e fazer um esforço sério para assumir uma postura de não confronto. Custa fazê-lo, mas é possível e tem efeitos imediatos muito benéficos, pois ninguém persiste num braço-de-ferro quando não encontra parceiro. Na realidade devemos estar conscientes de que está em nossas mãos evitar as consequências dramáticas dos erros de condução. Muitos comportamentos descontrolados na estrada chegam a ser patológicos e há a necessidade de impedir o ímpeto da retaliação a todo custo. Reconhecer que, muitas vezes, somos levados a agir de forma insensata também ajuda a desminar o terreno, a ganhar tempo e frieza para seguir em frente sem ter que exercer a vingançazinha no momento.
Inteligência emocional
O fenômeno classificado como "fúria no volante" traduz uma incapacidade de admitir as faltas dos outros e revela um desejo perverso de castigar aqueles que erram. Por tudo isto, os motoristas devem treinar a sua inteligência emocional no sentido de adquirir maior resistência à provocação e uma indulgência capaz de os levar a perdoar aos outros os erros que também eles cometem.
De acordo com algumas teorias psicológicas, errar não só é humano como também é muito comum. A percentagem de erro em tudo o que fazemos na vida situa-se entre 4 a 10% e o comportamento de dirigir ultrapassa largamente esta porcentagem. Claro que os erros na estrada são mais perigosos e assustadores e, por consequência, as reações são mais imediatas e violentas. Os especialistas consideram esta escassez de visão, reflexos e raciocínio muito perigosa e sugerem uma atitude de latitude, isto é, aconselham os motoristas a adotarem um comportamento mais realista e abrangente que lhes permita concentrarem-se no comportamento de dirigir, mas também, medir e antecipar os eventuais erros dos outros.
Em outras palavras, é uma atitude com mais latitude e amplitude. Em todo caso nunca é demais destacar a possibilidade de começar a fazer, de forma radicalmente diferente, tudo aquilo que nos habituamos a fazer sempre igual, principalmente nas estradas e, talvez, também, na estrada da vida...