A governanta do arcebispo

A governanta do arcebispo

       Na Coimbra do século XIX, a família Dinis comemorava o nascimento de um novo membro que chegava, a quem coube chamar Stephanus. Ambicionava, a mesma, que este, passado os anos, se ordenasse o primeiro padre daquela tradicional e honrada família. Fato foi que, por coincidência da semântica nominalista, ou não, que lhe coubera, o predicativo “o coroado” consumou-se no futuro, indo se encontrar o padre Stephanus arcebispo da região. Na mesma época do nascimento do arcebispo, nas proximidades dali, nascida em berço humilde e de muita fé, chegara a pequena e ruiva Amanda, cujo sorriso suave encantou, desde cedo, os corações dos que dela se aproximavam. Acolhidos para serem alfabetizados na mesma paróquia, e compartilhando o interesse em ajudar ao próximo, Stephanus e Amanda tornaram-se amigos.

          Os anos passaram. Stephanus seguiu para o seminário e Amanda tornou-se governanta da pequena paróquia local. O carisma da jovem, sempre disposta a colaborar com as matriarcas na realização de comemorações religiosas, quermesses, organização de bazares e casamentos, entre outros, angariaram-lhe respeito e admiração. Ao pároco local, padre Juvêncio, sucederam-se padre Miguel, padre Salvador, padre Francisco, padre Alberto e padre Cícero até que, estando este último com a idade avançada, a Igreja entendeu por bem substituí-lo, ocasião em que pesou a influência e pujança da família Dinis, mais de quatrocentos anos benemérita da igreja portuguesa: Stephanus retornava à região, já ordenado padre.          Grande foi a alegria de ambos ao se reencontrarem. Falaram dos livros que tinham lido, dos lugares que tinham conhecido, dos amigos que haviam se casado, das crianças que haviam nascido e que já estudavam fora do lugar. Então, enquanto Amanda o ajudava a desencaixotar suas coisas, Stephanus aproximou-se de uma grande mesa e, amparando ambos os lados do papel que tinha nas mãos, abriu sobre o móvel seu grande sonho: o projeto para construir no local uma grande catedral. A notícia logo ganhou a aldeia, não faltando adeptos para ajudar a erigi-la. Porém, com o passar do tempo, e as dificuldades que atingiam as vinícolas da região, não tardou que as grandes somas dedicadas para o mesmo fossem escasseando.

          Então, um novo chamado recolheu Stephanus para terras distantes. Superiores, conhecedores da liderança, dedicação e conhecimento profundo do rapaz, bem como, da bem querença que este angariava fosse aonde fosse, logo o levaram para longe. Algumas décadas se passaram. Na aldeia, coube à Amanda comunicar-lhe seguidos falecimentos da família Dinis. Até que, nomeado arcebispo, e autorizada sua visita para perto dos últimos entes queridos que lhe restavam, Stephanus retornou à região. Para sua surpresa, sua família, assim como as demais, mantiveram a construção de seu sonho, esperando, certamente, que um dia para ali ele voltasse: no ponto mais elevado da região, eis que a catedral de seus sonhos ia, com dificuldades, sendo erguida.

          Porém, dias de imensa tristeza chegaram: os últimos familiares de Stephanus dele recebiam a benção final. Tristeza, esta, que acabou por ceifar a saúde do jovem padre. Uma noite, de muita chuva, frio e granizo, uma febre persistente tombou o jovem na igreja e, sem ter como solicitar ajuda a alguém, coube a Amanda dele cuidar. À luz dos lampiões avermelhavam-se mais os cabelos ruivos da jovem. Também seus olhos pareciam mais verdes. A lembrança dos tempos em que se gostavam ressurgiu, não tardando que ambos se beijassem. A febre interna e a paixão comedida incendiaram seus corpos. Uma noite. Apenas uma noite. Mas que lhes escreveria o restante de suas vidas.

          Retornando de viagem, seu abatimento e fragilidade física eram notórios. Preocupados, não tardou que seus superiores compreendessem que a juventude e a saúde física despediam-se do rapaz. Mais décadas se passaram e eis que a notícia de sua definitiva transferência chegava: retornaria a sua terra, para descansar no solo dos seus. Informada de sua vinda, toda a região recebeu-o com festa. E Stephanus se admirou de como crescera a catedral. Visitando-a, então, eis que uma senhora, que um acobreado acinzentado tomara os cabelos, viera recebê-lo. Emocionado e com dificuldades para se deslocar, Stephanus viu-a se aproximar, apertar forte suas mãos e oferecer-lhe uma cadeira para sentar. Perguntaram-se da saúde, das leituras e locais que conheceram e das novidades locais. Até que, intrigado com o crescimento que alcançara sua catedral, ele indagou-a de como seu projeto adquiria aquela dimensão. Quem cuidara de tudo para que seu sonho se mostrasse de tal forma. Surpresa maior lhe aguardava. Estendendo-lhe, com as mãos, um retrato, Amanda lhe apresentava o responsável por tudo: Querubim, seu filho, o ‘abençoado por Deus”.

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