
As mãos do menino sapateiro
(Esta ficção é dedicada ao Dr. Carneiro,
cirurgião das mãos mágicas)
Em
todo dez de agosto, seu aniversário, meu pai reunia os três filhos ao redor de
uma grande mesa, farta de café com leite preparado por minha mãe, assim como, de
seus doces bolinhos de chuva, aromatizados com sua brandura e amor, para nos
contar algumas estórias da época, visando, com suas parábolas e metáforas, em
nós solidificar os valores da vida. Motivo pelo qual, talvez, os versos
“Naquela mesa ele sentava sempre, e me dizia sempre o que é viver melhor.
Naquela mesa ele contava histórias que, hoje, na memória, eu guardo e sei de
cor. Naquela mesa ele juntava gente e contava, contente, o que fez de manhã. E
nos seus olhos era tanto brilho que, mais que seu filho, eu fiquei seu fã”, ainda
me doam tanto... Como ele faz falta... e suas estórias, também...
Uma dessas estórias contada por meu
pai ainda me comove profundamente. Nela, lá pelas bandas de Ituverava, quando
cana facilmente virava dinheiro de gringo, ele testemunhou um ocorrido que nunca
mais lhe saiu da memória. Era inverno, uma manhã de sábado com brilho de sol
que teimava em ficar, quando uma senhora, família de quatrocentos anos da
cidade, numa sapataria familiar adentrou, em busca de um par de sapatos que lá
havia deixado para reparo. Trabalhando ali, o pai, sapateiro-mestre, a esposa,
cuidando da graxa e do brilho, e o filho, ainda menino, miúdo para as grandes e
ágeis mãos que tinha, por todos notada, cuidando de aparar os arremates finais.
Entretanto, no seio familiar, as tarefas de pai e filho, muitas vezes eram
inversas, quando, o filho, vendo o cansaço abater as vistas exaustas do pai, das
mãos trêmulas deste tomava as costuras mais delicadas, pedindo para que este apenas
cuidasse de as aparar.
Alta, cabelos cor de ouro
envelhecido, presos num severo coque, olhos grandes de rapina, a senhora, com
voz trovejante, mal cruzou a porta, exigiu o que foi encomendado. Ao receber,
porém, o sapato consertado, virando-o várias vezes, aborreceu-se, visivelmente,
com o que nele fora efetuado e, entendendo que tal serviço sequer valia os
míseros trocados que lhe fora cobrado, atirou-o, violentamente, na face do
velho sapateiro-mestre, dizendo, “Um lixo destes você dê aos pobres!”. E, retirando-se
da humilde sapataria, entrou em seu carro, nunca mais ali voltando. O
sapateiro-mestre, vendo a mágoa em que ficara o filho, responsável pelo
conserto, aproximou-se do mesmo e, abraçando-o, consolou-o dizendo “Não se
entristeça, a vida judia, mas também ensina. O tempo é senhor da razão”. Nos
dias que seguiram, porém, cauteloso e calejado que era, o pai vaticinou ao
filho que o mesmo buscasse profissão mais nobre, pois o ofício de sapateiro,
muito em breve estaria em extinção.
O menino cresceu. E o tempo,
modificando-se cada vez mais, veio a confirmar as palavras do pai. As
sapatarias familiares, aos poucos, foram sendo substituídas por pequenas
fábricas e os sapatos, substituídos por outros, cada vez mais descartáveis.
Nessa época, o menino, miúdo para as grandes e ágeis mãos, era, agora, um jovem
médico, de plantão no hospital da cidade. Era inverno, uma manhã de sábado com
brilho de sol que teimava em ficar, quando uma senhora, bem idosa, de família
de quatrocentos anos da cidade, ali adentrou, em desespero, em busca de socorro
para sua única neta, que morria. A cardiopatia congênita que acometia a menina
era a mesma que, anos antes, levara sua mãe, filha da velha senhora, fato que,
talvez, justificasse seu desespero: se perdesse a pequena, a perda seria dupla.
Os atendentes, mais que de imediato,
prestaram os primeiros socorros à menina, tranquilizando a avó ao dizerem que
um habilidoso cirurgião-cardíaco, conhecido pelas mãos grandes, hábeis e
milagrosas, estava de plantão naquele dia. Sua neta estaria, portanto, em mãos
seguras. De fato, o jovem cirurgião, brilhante que era, imediatamente a menina
socorreu, realizando, com sucesso, os procedimentos cirúrgicos necessários.
Vida salva, eis que, horas mais tarde, vem o mesmo ao saguão do hospital dar a
notícia aos familiares.
Alta, mas já curvada pelos anos,
cabelos cor de ouro, agora embranquecidos, lá estavam o severo coque, os olhos
grandes de rapina e a voz trovejante daquela sua velha conhecida que, em manhã
similar, tantos anos atrás, adentrara, agressiva, à sapataria de seu falecido
pai. Ao saber salva a neta, agradecimento esquecido, eis que a velha senhora,
sacando o talão de cheques, imediatamente menciona ao cirurgião sua prontidão
em pagar seus honorários. Perplexo, o cirurgião afasta-se da mesma e,
aguardando que ela erga os olhos ao ouvir sua recusa, assim lhe diz, “Faça
outro o uso de seu dinheiro. Aqui é um hospital público e salvar vidas é nossa
obrigação e juramento”. Mas a senhora, inconformada com sua recusa, chega a destacar
uma folha, pedindo-lhe para preenchê-la com o seu preço.
Diante de todos, mais perplexos que
o próprio médico com a arrogância afrontosa da velha senhora, aquelas mãos
grandes e hábeis, rasgaram, vigorosamente o que lhe era ofertado. Os olhos de
rapina, então arregalados, reconhecem a quem pertenciam aquelas grandes mãos.
Com dificuldade, e respirando pesadamente, indaga, “A quem devo, então,
agradecer?”. “Faça uma oração ao meu velho pai, que me ensinou o ofício de
sapateiro que, um dia, a senhora, renegou”. E, altivo, mãos desembrulhando uma
caixa, acrescentou: “eis seu lindo par de sapatos, talvez um dia possa ainda
usá-los”. Virando-lhe as costas, foi atender outro chamado.