
Meus cães inteligentes
Toda
família tem uma estória de animal de estimação para contar. Com a minha não foi
diferente. Ao longo de minha vida, tive cinco cães. Tizil, um vira-lata de cor
negra, à luz do sol parecia ser azulado. A ele ensinei que me acompanhasse à
escola, por ali me aguardando enquanto perdurassem as aulas. Mediano, era ágil
e sempre me protegendo dos “trancos” do futebol ou rusgas, ainda que raras, com
colegas. Fazendo eu o dever de casa, não tardava vinha enrodilhar-se aos meus
pés, como que para me ouvir ler, em voz alta, “Os três mosqueteiros”, “O homem
da máscara de ferro”, “O conde de Monte Cristo” e outros. Sua “carinha” de
choro, contrariada quando tinha que ir dormir, só se dissipava no dia seguinte,
quando, novamente aproximando-se de mim a ler, recebia histórias contadas em
dobro.
Já no início da adolescência,
compartilhei alguns bons anos com Tarzan. Policial, parecia reconhecer que eu
era um apaixonado por futebol, ao meu lado estando em todas as partidas
realizadas na cidade ou região. Nestes ambientes, buscava, imediatamente, as
bolas que, chutadas desajeitadamente, pelos jogadores, ultrapassavam os limites
do campo. Fazia-o muito rapidamente. E com uma marca característica: sempre
entregava a bola para mim, não se afastando enquanto não recebesse um gostoso
afago na cabeça. Tal como eu, era apaixonado por Castro Alves. Atento,
movimentando cabeça e olhos para mais de 180 graus, exultava ouvindo-me recitar
“Vozes d’África” e “Navio Negreiro”. Parecia, sinceramente, entender o drama da
nação africana, a ponto de latir em bom tom quando, por erro, ou cansaço, eu
omitia alguma estrofe que falasse do sofrimento daquele povo. Então, corrigindo
o recitado, acomodavam-se latidos e olhares em seu corpo.
Pimpolho era um Fox Paulistinha,
branco com manchas pretas. Dengoso, gostava de um colo e pular para o abraço,
assistindo comigo o drama que era o jogo do Corinthians, de então, perdendo
para o Santos, de Pelé. Parecia compartilhar comigo as emoções positivas e negativas
de todos os dias, a ponto de ficar triste e chorar quando eu o ficava, bem
como, alegre e animado quando minha felicidade voltava. Com ele ocorreu um
evento que marcou minha vida, custoso de acreditar. Morava eu numa cidade
distante uns 500 km de Ribeirão Preto e, aprovado nos exames vestibulares,
preparava as malas, sem saber se para ali ainda retornaria. Pimpolho, pressentindo
que os contatos comigo rarear-iriam, parecia temer não continuar a integrar
minha lista de prioridades. Mas, tal como a moda de viola, o destino é
traiçoeiro. Um dia, ao chegar em casa, me deparei com Pimpolho ausente.
Aguardei-o, chateado, por três dias. Nada. Percorri quarteirões e interpelei
estranhos. Adoecia buscando resposta. Até que a encontrei, ficando severamente
abatido com ela. Contava-me uma senhora bondosa das cercanias que, próximo
dali, durante a mudança de uma família, esta, talvez aproveitando-se da
afetividade de Pimpolho para com as suas crianças, “seqüestraram” Pimpolho para
dentro do caminhão que os levaria para o nordeste.
Os dias que se seguiram foram
terríveis para mim. Mudei-me sem poder despedir-me do meu fiel amigo, iniciando,
coração pesado, na universidade. Quando só, esbravejava, culpando a mim mesmo
pela negligência em deixá-lo circular sozinho pela vizinhança. Absorto nos estudos, os livros e as
separatas tomavam quase todo o meu tempo. Nem Tonico e Tinoco e Tião Carreiro e
Pardinho, nem os Mariachis e os tangos e fados podia eu ouvir. Mozart e
Beethoven, acompanhados de Castro Alves, tive que deixar de lado. Eu lia e
corria. E corria e lia. Em contrapartida, o mundo maravilhoso da ciência me
habitava. E como fixou-se...
Sete meses se passaram. Sempre o
número mágico sete. Até que, depois de pesado dia de aula, voltando para minha
velha república, por ironia do destino situada na Carlos Gomes, o mesmo que,
junto de Villa Lobos, eu não conseguia mais arrumar tempo para ouvir, vi,
latindo de alegria, o meu apaixonado Pimpolho. Correndo em minha direção,
saltou-me aos braços, derrubando livros e separatas, lambendo-me a face. Dizem
que homem não chora, mas, confesso... naquele dia chorei. A alegria foi tanta
que, naquela noite, ele subiu em minha cama, nela dormindo aos meus pés. Deste
dia em diante, nem os livros nos separaram mais. Ficou, entretanto, o enigma:
como ele sabia que eu estava morando na rua batizada com o nome do maestro?
Seria o faro? O destino? Para mim, a única explicação era ser ele um cão
inteligente.
Minha história com Teca foi mais
curta e triste. Poodle amarelada, encontrei-a, abandonada e doente, nas
cercanias de minha casa. Adotando-a, levei-a ao veterinário e passei a cuidar
dela. Impressionava seu zelo pela limpeza. Nesta época, havia uma pequena horta
no meu quintal, cujas hortaliças eu usava em sanduíches. Teca, habituada a
isso, e antecipando-se a mim, trazia, entre seus dentes, os talos de alface e
couve, feliz em poder ajudar. Pela cara que fazia, parecia não gostar muito do
sabor, mas, ao ver-me mastigá-los, era como se, para mim, eternamente
agradecida, sorrisse. Um dia, voltando do trabalho, mal abrira o portão com o
controle, veio ela, festiva, me receber no outro lado da rua. Mas não chegou a
fazê-lo: ao atravessar, desatenta, foi colhida pelo carro que por ali passava
rapidamente. Nunca consegui esquecer aquilo. Com o coração pesado, enterrei-a
no meu quintal, onde outrora existiam minhas hortaliças. No local, exigiu-me a
dor que plantasse uma muda de roseira. A mesma roseira que, em toda primavera,
desabrocha as mais belas flores. Interpreto esse florescer como a saudação que,
outrora, impediram-na de me dar.
Logan, finalmente, tem sido o
labrador do outono da minha vida. Cor de caramelo, robusto, majestoso e belo, nunca
vi cachorro tão carinhoso. Recebe-me feliz e querendo brincar, parecendo-me que
a vida, para ele, eternizou a pureza de criança. Sabe quando estou triste ou
feliz, magoado ou diferente. Se estou ouvindo Velha Porteira, mal abro a porta
de meu carro, ele adentra ao mesmo, compartilhando comigo a saudade de minha
infância.