
A noite mais longa da minha vida
Foi
num onze de outubro. Ao lado da cama dela, cabisbaixo e vencido pelo destino,
orava. Só havia me restado aguardar. O que? O desfecho de sua longa e penosa
enfermidade. Enfermidade que mingou-lhe, lágrima por lágrima, a vida. Ela?. Tão
logo tomara conhecimento do que estava, realmente, a ocorrer, não tardou a me
manifestar o desejo que tudo se findasse, então, no dia de N. Sra. Aparecida.
Naquela noite, enfraquecida, quase inerte, mal tivera forças para me balbuciar
que tal hora estava chegando. Mas duas coisas ela ainda necessitava me dizer.
Duas coisas difíceis de dizer e, principalmente, de se ouvir num momento
desses. Primeiro, que me amou muito... e lamentava o passar desenfreado dos
anos sem que ela pudesse ter vivido mais isso. Segundo, que eu a desculpasse
por ela não ter sido capaz de me tornar um homem feliz como ela achava que eu o
merecesse. E falar isso pareceu consumir-lhe quase toda a energia... a tal
ponto que adormeceu quase que imediatamente.
Um desencadear de lembranças se
delineou dentro de mim. A tarde em que a conheci. O momento em que meus olhos
se encontraram com os dela. Os momentos em que lhe recitei os poemas de Castro
Alves. As horas em que sua esperteza em Química salvou-me de exames finais. Lembrei-me,
também, do que ela gostara de assistir no cinema, Os miseráveis, Love Story,
Dr. Jivago, Girassois da Rússia, sem me esquecer dos intermináveis westerns
que, sabendo de minha predileção, ela, pacientemente, assistia e comentava
comigo. O primeiro filho. A descoberta dos cuidados diurnos e noturnos. O
batismo, a primeira comunhão, o primeiro dia de levar um filho na escola.
Noites mal dormidas, cansaço ininterrupto ocasionado pelo filho que trocava o
dia pela noite.
Sua incansável ajuda em ordenar,
alfabeticamente, as referências de minha dissertação de mestrado e tese de
doutorado. Seu sorriso, transbordando alegria quando cheguei a Titular, ainda
está vívido em minha mente. Sua inquebrantável energia para organizar, e
reorganizar, os pertences de toda família quando viajávamos para dentro e fora
do país. Sua ajuda constante para que eu chegasse a termo no pós-doutoramento.
Ah... a surpresa de sua face quando
conheceu as Montanhas Rochosas e outras belezas naturais da grande nação
americana. Seu medo em adentrar em alguns brinquedos e atrações da
Disneylândia. Seu gosto pelo jazz e pela country music; pela Route 66,
atravessando famosos desertos. Eu chamando-a de medrosa quando não quis
acompanhar-me numa das maiores montanhas russas do mundo. Ah... como é difícil
não ter sido capaz de ter me dado um bis de tudo isso a mim mesmo...
Lágrimas deslizaram de seus olhos
quando ela conheceu a Basílica de São Pedro. Saltos de alegria quando viu os
afrescos da Capela Sistina, dizendo-me, de imediato, que aquela obra era uma
inspiração divina.
Empurrava-me, literalmente, para
subir até o pico maior da Torre Eifel, quase me carregando para,
exaustivamente, conhecer o Louvre, o Prado. Veneza a encantou. Mas foi a Capela
de Santo António de Pádova que a fez ajoelhar-se e orar por mais de duas horas,
tão intensa era sua devoção. Disse-me ela que os joelhos inchados valeram a
pena por tão grande alívio da alma.
Então o segundo filho. Uma menina. A
alegria intensa.
Tantos momentos felizes
serviram-lhe, é certo, para se sustentar nas horas difíceis. Na hora,
principalmente, em que lamentou não poder estar viva para ver a filha formada.
Ao que, prontamente, respondi, “Gostaria de ser um deus todo poderoso para ser
capaz, ao menos, de concretizar esse seu desejo”.
Cada passo, cada momento, cada
degrau alcançado na minha carreira acadêmica contou com ela. Não só com seu
apoio e incentivo, mas, principalmente, com uma ação, fosse esta leitura,
indicação ou outro no intuito de enriquecer meus trabalhos. Ao lado disso,
nunca me esqueci, tampouco esquecerei, as cestas de pães que ela, bondosa e
regularmente, entregava no Lar Santana.
De repente, a sensação de um
sussurro me chamando trouxe-me à realidade. O que ouvi? Obrigada por ter estado
comigo mais uma noite. Eram seis horas da manhã... momento em que a vi
segurando minhas mãos para, em seguida, cerrar definitivamente os olhos.
Apesar dos anos passados, esta
última imagem jamais fugiu dos meus olhos... fortemente permanece na minha
agenda mnemônica.