O filho adotivo

O filho adotivo

           Na última sexta-feira, em visita à Universidade de Brasília para participação em evento sobre psicofísica, encontrei, inesperadamente, um amigo, de mais de quarenta anos, que ali fora, exclusivamente, para me cumprimentar. Sob as árvores aprazíveis da área de alimentação do campus, saboreando um café de grãos do planalto, indaguei-lhe as últimas atividades, bem como, o que fazia, então, no Brasil, tão distante de seus pacientes de Boston.

            Este amigo, tão logo nascera, perdera os pais boias-frias em acidente no campo, tendo sido adotado por respeitada figura daquela região, a despeito desta já ter outros seis filhos naturais. Durante todos aqueles anos, não conhecendo, por parte daquela família, nenhum tratamento que diminuísse sua importância, ainda que adotado: educação, formação, respeito e amor sempre presentes. Graduando-se em Medicina, fora especializar-se em Neurocirurgia no exterior, ali se empregando e constituindo família, distanciando-se dos irmãos, os quais nutriam afazeres e interesses bem diferentes dos seus. Com o pai, já viúvo, entretanto, sempre se comunicando por telefone e correspondências, nunca deste se esquecendo, principalmente, nas datas especiais.

            Porém, a despeitando de tal proximidade e interação entre ambos, tanto o pai, quanto os irmãos adotivos, ocultaram-lhe, até recentemente, o sofrível diagnóstico que o patriarca consigo trazia desde o início da meia-idade: um tumor intracraniano, conhecido como neurofibromatose, provocado pela genética e fomentado pelo ambiente. Neste período, os filhos naturais, imersos que estavam na promoção de suas próprias vidas, e usufruto da secular riqueza familiar, não se motivaram em buscar tratamento adequado ao patriarca e, tampouco, participaram-lhe a gravidade da doença, interessados que estavam tanto na herança, que dia após dia mais perto lhes acenava, quanto em não fracioná-la com alguém cujo sangue sequer era o mesmo que o seu.

            Neste clima familiar, não tardou que o mais jovem dos irmãos convencesse os demais, e o próprio pai, já debilitado, a não mais contatarem o irmão adotivo sobre o assunto, qualquer que fosse o meio. Mas, o pai, percebendo a gravidade da doença a consumi-lo progressivamente, ao filho adotivo redigiu carta em que, relatando os progressos que as novas tecnologias implementavam em suas terras, mencionava, com orgulho, a farturosa colheita que aguardavam, muito além do esperado.

            Não obstante, o filho adotivo, habituado que estava a diagnosticar problemas neurológicos, percebeu, de imediato, o tremor e o peso com os quais aquelas palavras foram grafadas, e suspeitando do que poderia estar ocorrendo, ligou ao pai. Percebendo, a despeito das constantes negativas deste, a voz vacilante e alongada com que este falava, mais que imediatamente, providenciou, à revelia dos irmãos, a vinda do pai para o hospital por ele dirigido na sua acolhedora América.

            Submetido a uma bateria de testes, o pai viu-se, da noite para o dia, operado. Cirurgia, esta, tão bem-sucedida, que lhe permitiu longa sobrevida. Nesse meio tempo, o pai, cuidadosamente, redigiu testamento em que manifestava sua vontade de deixar sessenta por cento de todo seu patrimônio aos filhos naturais, divididos em partes iguais, sendo o restante destinado à fundação beneficente fundada e dirigida pelo filho adotivo.

            O tempo passou. O pai adotivo faleceu. E a vinda ao Brasil tornou-se inevitável: os irmãos contestavam judicialmente a herança destinada à fundação. Nesta época, veio a saber que o jovem irmão, líder da contestação, passara a apresentar, precocemente, sintomas similares aos do pai. Alertando-o, falou-lhe sobre a doença, suas consequências, a necessidade de exames e a possibilidade da intervenção. O irmão, apanhado de surpresa por aquela inimaginável adversidade, lançou um olhar sombrio ao horizonte: lá estavam o céu e os pássaros. Por um instante, pareceu entrever, em meio as nuvens, a face do pai. Pareceu ouvi-lo no vento que sussurrava. O que lhe dizia ele? Que para nada servia o dinheiro quando não havia a riqueza da saúde.

            “Vim para buscar meu irmão, amigo. Para fazer por ele o que fiz por meu pai”.

 

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