O justiceiro

O justiceiro

 

                Recordando saudoso de Jupiá e Três Lagoas, tempos em que meu pai era barrageiro de Urubupungá, ocorreu-me a lembrança das histórias que se contavam sobre um pistoleiro, famoso justiceiro de Mato Grosso, conhecido pela alcunha Camisa de couro. Nessa época, desejoso de assistir, juntamente com meus amigos, filmes ainda impróprios para nossa idade, vez por outra eis que ali assomava o Camisa de couro e, com um 38 apontado para porteiro e bilheteiro, apenas dizia “Pode entrar, molecada!” para a tal proibição acabar. Jubilosos, sem ter que ingresso pagar, entrávamos aos tropelões, sequer imaginando, inocentes que éramos, o perigo que corríamos. Explico: o cabra era um “cabeça a prêmio”, dos mais procurados, naquelas terras do sem-fim.

 

            Uma dessas histórias tratava de um caso de engodo que, não tardou, requisitou a intervenção do espírito justiceiro daquele alma perdida. Dirigindo um jipe ruidoso numa das empoeiradas estradas do lugar, Camisa de couro logo avistou, sentado num apodrecido toco de árvore, um velhinho desconsolado, enrolando, com mãos trêmulas, a metade de um cigarro de palha. O cheiro do fumo, despertando-lhe vontade de pitar, ordenou imediata ré no veículo, ao passo que o camisa já lhe perguntava, “O sinhô tem fumo?”. “Aqui nunca há de fartá”, retrucou-lhe o velho. “Pois, então, o sinhô me dê fumo que eu lhe dou guarida até a cidade, ou onde a jardineira costume passá.” O velho não desfez da oferta e, já sentado, camisa e calça amareladas pelo tempo, chapéu de palha pendendo pela nuca, pele curtida pelas intempéries do clima e agruras da vida, sem contar as mais que calejadas mãos na enxada e arado, recebeu do Camisa de couro um olhar fraternal e curioso, “Que faz o sinhô por estas banda?”. “O sinhô vê aquelas banda cujo horizonte não tem fim? Trabalhei nelas trinta ano, de sor a sor, mal chegano a drumi. Mas hoje, o patrão, sem sequer me oferecê um café, ou um copo d’água, mandô eu arrumá as traia e ir cantá em otra freguesia, sem me dizê obrigado e nem me pagá um centavo siqué.”

 

            Ouvindo isso, olhos apertados em linha de ódio, Camisa de couro mascou forte o resto de fumo e, brecando furiosamente o jipe, gritou “Vamo vortá imediatamente lá pra sede da fazenda!”. O velhinho, apavorado com o que por certo adviria daquele encontro, clamou, “Num necessita, sinhô. A situação vai se cumpricá. Deus assim quis. O distino há de arresorvê tudo”. “Assossegue, amigo. Só vamo cumpri a verdade”.

 

A casa-grande da fazenda logo se desenhou no horizonte. As árvores, reconhecendo o antigo trabalhador, deitaram, serenas e felizes, suas sombras naquele olhar ancião. Os trabalhadores, reconhecendo quem chegava acompanhando o velho, movimentaram-se com rebuliço. “Cadê o patrão de vosmecês?” “Tá na cidade, comprano mantimento”. “Então nós vamo pra lá”. Rumando para a cidade, pistoleiro e velho logo chegam no empório. Dentro deste, meia dúzia de trabalhadores e, ao canto, virando um trago, um almofadinha de terno branco, todo perfumoso, aguardava um moleque finalizar o barbante dos embrulhos. Então, eis que o olhar reluzente do menino, barbante parado em suspenso na mão, fez o fazendeiro se voltar. Reconhecido o velho, deduziu, pela arma na cintura e a camisa de couro, quem a este acompanhava. “O sinhô conhece este velho?”, indagou o Camisa de couro. “Trabalhou pra mim até ontem”, retrucou o fazendeiro. “Então o senhor sabe o que tem que acertá, num sabe?”. O fazendeiro fez menção de se levantar. “Não tenho esse dinheiro comigo agora”. “Mas o senhor há de arranjá, porque do contrário...”. “Do contrário, o quê?”. “Do contrário, de todas as suas terras, só vão sobrá sete parmo pro sinhô se assossegá”. Não tendo saída, o fazendeiro, num acordo rápido com o dono do lugar, mais que depressa, repassou para o velho a grande soma num emborná.

 

            Na estrada, o velhinho exultou, “Mas é muito dinhero! Vai dá até pra comprá alguns arqueire paulista, pra modo de acabá os meus dia asossegado. Mas antes preciso lhe pagá!”. Camisa de couro recusou a oferta. De pagamento, só mais um pedacinho de fumo, pro gorgomilo desamarrá.

 

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