O mendigo inteligente
Muitos
anos são contados desde que estes fatos aconteceram. Era eu ainda jovem,
estudante entusiasmado com as ciências do comportamento. A certas horas do dia,
absorto na busca de agência bancária em bairro remoto, primeiro dia de depósito
de minha bolsa de pesquisa, auxílio que garantiria meus estudos da graduação,
acercou-se de mim figura escurecida pelo sofrimento, barba negra descuidada,
cabelos longos batendo nos ombros, roupas limpas mas surradas pelo tempo que
teimava em não parar. Estaquei, surpreso. Ao que o mendigo, alegando fome,
pediu-me, em polidez incompatível com sua aparência, um trocado. Assustado,
retruquei que, na saída, veria o que poderia fazer. Ao que ele, agradecido,
concordou humildemente. Esperaria na guia, afastado da porta, para não
amedrontar os que da agência se acercavam.
Feito o saque, pagas as contas, eis
que separei dois cruzeiros e ganhei a rua. Conforme prometido, estendi-lhe o
valor, na expectativa que o ofertado fosse, de fato, usado para saciar-lhe a
fome. Curioso o que se seguiu. Em face da aparência bondosa que ele refletia,
ainda que maltratada pela miséria que insistia em ficar, perguntei-lhe que
força o destino havia lhe imposto para que o mesmo se encontrasse naquelas
condições. Respondeu-me ele, mais triste e escuro, que muitas são as razões que
fazem com que um homem não queira mais viver. Retruquei-lhe, então, que, embora
jovem, eu depreendera dos estudos científicos que, diferente do que ocorre no
laboratório, na vida real não nos cabe o controle total das variáveis.
Imediatamente percebi o quanto tais palavras lhe impressionaram. Entretanto, os
compromissos me aguardavam, ao que, despedindo-me, desafiei-lhe, “Supere o
trauma e faça como Jesus, multiplique os pães. Que a gente se encontre na bela
e longa jornada da vida”.
Voltando ao meu cotidiano, os anos
passaram. Muitos deles. Em ocasiões e necessidades similares, vez por outra
retornei na mesma agência bancária. Ainda que não fosse a minha agência
cotidiana, ficava, ela, no caminho pelo qual eu circulava, facilitando-me a
vida. E, nestas, cerceado pela dúvida, e por ali mendigo nenhum avistar, não me
constrangi em perguntar aos vigias, usuários e gerente, o que tinha sido feito
daquele homem.
A resposta unânime, entretanto, me
chocou. Nenhum deles, em época alguma, havia vislumbrado figura semelhante.
Garrei a imaginar se tal figura não teria sido um repente imaginativo, ou, na
pior das hipóteses, um fantasma. Não conciliei resposta para tal dúvida. A
única certeza, entretanto, que me garantia o ocorrido eram os dois cruzeiros,
mais que concretos, ausentes nas minhas parcas economias.
Os meses continuaram a correr. E o
fato já me ia embaçado na memória quando, no retorno pra casa pelas cercanias
da agência, semáforo fechado, eis que um vigia, no carro ao lado,
reconhecendo-me, chamou minha atenção com as seguintes palavras, “Professor,
lembra-se do tal mendigo que o senhor andou procurando, tempos atrás? Pois,
então, rapaz, ele apareceu por aqui em três ocasiões, também perguntando por
uma figura similar a sua. Ah... mas ele não parecia mendigo não...Barbudo, sim,
figura escura, entristecida... mas sóbrio, terno de corte e carro de luxo”.
Aberto o semáforo, porém, só me foi possível agradecer e, enquanto voltava para
casa, tentar encaixar o quebra-cabeça. Quando dei por mim, havia virado a
direção, retomado a avenida e, guiado por uma misteriosa força, me dirigido
para a agência.
Olhando os arredores, nada avistei.
As mesmas árvores, os mesmos bancos, aparentemente as mesmas figuras... só eu
mais envelhecido, mais intrigado e com a memória, mais uma vez, fechando-se
para tais lembranças.
No vinte e cinco de setembro, porém,
meu aniversário, data feliz, retornei à agência, apressado porque aguardado era
pelos meus, um vinho e um bolo em casa, quando um toque suave de bengala pousou
em meus já arquejados ombros. Voltando-me, fixei o olhar numa face
imediatamente por mim reconhecida. Figura escurecida pelo sofrimento, barba
negra bem cuidada, cabelos longos bem penteados, roupas limpas e bem cortadas,
o mendigo de quarenta anos atrás pacientemente me aguardava. Abraço apertado,
olhos marejados, um envelope me ofertou. Abrindo-o, surpreso, encontrei um
cheque de duzentos mil reais. Olhos se encontrando, a amizade se solidificando.
“Suas primeiras palavras, ditas há mais de quarenta anos, que o homem não tem
controle sobre todas as variáveis, me comoveram e impulsionaram. As outras,
multiplique os pães, me irritaram e desafiaram. Muitas são as razões que fazem
com que um homem queira voltar a viver. Eis seus dois cruzeiros. Multipliquei
os pães. Feliz aniversário, amigo.”